Com visões progressistas sobre o mundo e um cafezinho na mão, Tabajara Ruas prova que 80 anos são apenas um número. Diretamente do local que abriga a base de produção de seu novo filme e prestes a completar oito décadas de vida, o aclamado escritor e cineasta gaúcho rememorou a carreira marcada por sucessos literários e cinematográficos e projetou os próximos passos — que não envolvem desacelerar tão cedo.
O escritor não considera a data como extraordinária. Ele planeja comemorar na quinta-feira (11) apenas com o que é "bom na vida": um churrasco após o término do expediente na Walper Ruas Produções, acompanhado da família e dos amigos, assistindo futebol.
— Se é para falar em comemoração, comemoro ter vivido, e, por acaso, são 80 anos, o que é bastante. A vida toda da gente é, na verdade, cada dia uma surpresa. Ao longo da vida, tive experiências diferentes em quase tudo que é área, não só do trabalho, mas da vida mesmo. Ao longo de 80 anos, tive meus amigos, minha família, meus filhos, a poesia, a música, então não me queixo — pontua, destacando que são muitos os momentos memoráveis.
Ruas gostaria, no entanto, de apagar o lado obscuro da vida, vinculado à ambição desmedida pelo poder que, em sua visão, deforma a sociedade.
— Vivi um longo tempo da minha vida sob uma ditadura militar e não é interessante, nem alegre, nem sequer uma aventura nos moldes daquelas aventuras românticas de Hollywood. Não, é uma coisa brutal — enfatiza.
Amiga de Tabajara Ruas, a escritora e jornalista Cíntia Moscovich considera o autor o "legítimo sucessor" de Erico Verissimo, que fala sobre a formação da identidade gaúcha e brasileira e sobre a resistência contra os anos de chumbo.
— É um autor dos grandes épicos, com a diferença de que o Tabajara surge na literatura sul-riograndense e brasileira já na época da ditadura, então é um autor épico como era o Erico, mas tem um viés mais rebelde, é um autor de livros clássicos libertários — explica, citando como exemplo a obra O Amor de Pedro por João, um dos maiores motivos de orgulho do escritor.
Cíntia também o caracteriza como um autor universal, cujas obras causaram assombro desde a estreia.
— É um autor cuja qualidade nunca caiu, só evoluiu. Ele tem um texto que é impressionante em termos de qualidade, precisão, pesquisa e informação. E é uma coisa notável, ele logo entendeu que essa precisão, esse apuro da linguagem, poderiam ser facilmente transpostos para o cinema. A imagética era tão forte que ele entendeu que podia lidar com isso com uma câmera na mão — ressalta.
O ator gaúcho que deu vida ao general Antônio de Souza Netto, um dos personagens mais memoráveis de Ruas, concorda. Werner Schünemann revela que o considera um dos maiores escritores do Brasil e um pilar da cultura brasileira.
— Os diálogos são um primor, inesquecíveis. Sempre tive essa admiração pelo apuro da linguagem, e como cineasta, ele tem o mesmo apuro — descreve. — Para mim, o Tabajara tem um significado muito especial. Netto foi o turning point na minha carreira. A partir disso, a Globo resolveu fazer A Casa das Sete Mulheres, e, assim, encaminhei a minha carreira em um sentido completamente diferente do que ela vinha sendo até então.
O artista destaca também a importância das obras de Ruas para a cultura brasileira pela forma como ele trabalha as características e a história do Sul ,"como pouca gente fez". Considera ainda que as produções o alçam ao patamar de um dos grandes diretores que o cinema brasileiro produziu.
— Acho que este é o grande mérito do Tabajara, mostrar de uma forma que fique marcada na memória do espectador. O cinema do Tabajara Ruas não sai da retina, fica lá — define Schünemann.
Próximos passos
O trabalho de Tabajara Ruas retornará às telas com Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez. A produção será complexa, fazendo uso de trens e com cenas de ação na cidade. O filme é uma versão totalmente nova do livro homônimo do autor e será ambientado em Cacequi, visto que não há mais locomoção de trens na ponte que integra o cenário original, em Uruguaiana. A história aborda o rito de passagem da adolescência para a vida adulta e se aproxima de questões humanas como o sentimento de culpa. As filmagens começarão em 15 de setembro, e a previsão de lançamento é para a metade de 2023.
Após as filmagens, os próximos passos envolvem voltar para Florianópolis para aproveitar o verão, regado a muita leitura e música. Em seguida, vários projetos já estão nos planos da Walper Ruas Produções, inclusive dois filmes de longa-metragem — um já engatilhado, intitulado Edifício Bom Fim, um filme de terror que será roteirizado por Ruas e dirigido pela esposa e sócia Ligia Walper. Em paralelo, o autor está escrevendo ainda um monólogo sobre a síndrome da impostora, que atinge as mulheres.
Nas horas vagas, Tabajara Ruas gosta de viajar, ler e assistir a filmes. E apesar de apreciar intercalar o trabalho com períodos de inatividade e contemplação, desacelerar não está entre os planos.
— Eu me canso disso e aí vou escrever, vou ler. Um dos trabalhos mais produtivos que se tem é a leitura. O que alimenta a alma é a leitura. Então leio, e ler é tudo, é um trabalho e é um repouso. Mas a gente tem de sempre estar fazendo alguma coisa, tem de ter uma ambição mínima, para não ficar sem perspectiva existencial — pondera.
Apesar disso, questionado sobre se ainda gostaria de realizar algo, afirma que, se pudesse, aboliria o futuro. Por quê?
— Porque o futuro é cansativo, a gente sempre tem de estar bolando alguma coisa para fazer. O bom seria não ter nada para fazer no futuro. Mas isso é bem impossível. Então, já que isso não dá, eu gostaria que não existisse o futuro. — Que só existisse o agora?, pergunto. — Que só existisse o agora.
Quem é Tabajara Ruas
Marcelino Tabajara Gutierrez Ruas nasceu em Uruguaiana, na Fronteira Oeste do Estado, em 1942. Cursou Arquitetura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Det Kongelige Danske Kunstakademi, em Copenhague. Por sua atuação política contra a ditadura militar, Tabajara precisou viver no exílio entre 1971 e 1981. Nesse período, passou por Uruguai, Chile, Argentina, Dinamarca, São Tomé e Príncipe e Portugal.
Apesar de sua formação como arquiteto, Tabajara tem relação estreita com a literatura e o cinema. Seu romance de estreia, A Região Submersa, saiu primeiro no Exterior e só foi ser publicado no Brasil em 1978. A seguir, ele escreveu outros romances, como O Amor de Pedro por João (1982), Os Varões Assinalados (1985), Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez (1990), Netto Perde Sua Alma (1995) — vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Narrativa Longa, em 1996 —, O Fascínio (1997) e O Detetive Sentimental (2008).
Seja na narrativa literária ou cinematográfica, uma parte da obra de Tabajara é permeada pelas histórias e pelos mitos do Rio Grande do Sul, como é possível observar em Netto Perde Sua Alma e A Cabeça de Gumercindo Saraiva — ambas as obras adaptadas ao cinema. Tabajara também teve incursões na literatura juvenil e em roteiros para quadrinhos.
O lado cineasta de Tabajara é igualmente prolífico: assinou o roteiro de variados projetos (por exemplo, Anahy de las Misiones e O Tempo e o Vento) e dirigiu cinco longas e um documentário. Ao lado de Beto Souza, adaptou Netto Perde Sua Alma em 2001, que recebeu o Kikito de Melhor Filme em Gramado e fez trajetória em festivais nacionais e internacionais.