Palco não apenas de arte, mas de resistência, o Teatro de Arena, tradicional espaço cultural nos altos do Viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre, sobrevive há mais de cinco décadas — entre altos e baixos, que incluem a ditadura, um longo período de fechamento e a pandemia. Com o passar do tempo, consolidou-se como um local de liberdade e de pesquisa, propício à experimentação e ao debate artístico. O centro, construído com suor pelos próprios artistas, preparou uma programação especial nesta segunda-feira (17) para comemorar os 55 anos de existência e 31 anos de reabertura (confira detalhes ao final do texto).
— Costumo dizer que ele tem vida própria, no sentido da luta e da resistência. O Teatro de Arena me parece imortal. Ele continua sendo procurado. Os artistas continuam querendo estar no Arena — salienta Gabriela Munhoz, diretora do teatro.
A história do Arena remonta à própria ditadura, quando atores do Grupo de Teatro Independente (que, posteriormente, viraria Teatro de Arena de Porto Alegre - Tapa), que disputavam datas nos raros espaços da Capital, idealizaram um lugar próprio. A construção teve início em dezembro de 1966. O local foi inspirado sobretudo no teatro homônimo localizado em São Paulo — o nome remete ao formato, em U. A descoberta do velho porão foi feita pelo artista Jairo de Andrade. Com dedicação, o teatro foi construído pelos próprios atores, utilizando picaretas e cimento. Nascia, em 17 de outubro de 1967, um dos espaços mais importantes para a cultura e a história de Porto Alegre e do Estado.
Com coragem e determinação, os artistas buscaram enfrentar o cerceamento da liberdade de expressão, apresentando espetáculos questionadores e inteligentes, com peças de autores como Plínio Marcos, Oduvaldo Vianna Filho, Consuelo de Castro, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. Para burlar a rigidez de pensamento, utilizavam diferentes artifícios. Mesmo assim, inevitavelmente sofreram os horrores da repressão, com ameaças, violência e censura.
— O Teatro de Arena foi um espaço importante no sentido de que não havia teatros, espaços públicos que a gente tem hoje. Não tinha a Casa de Cultura Mario Quintana, o Theatro São Pedro estava aos pedaços, então ficávamos restritos a poucos espaços — avalia Antônio Hohlfeldt, presidente da Fundação Theatro São Pedro e jornalista cultural, destacando que a história do teatro é, de certa maneira, um pouco da história de como a cultura se desenvolve na Capital.
O Arena funcionava ainda como espaço de militância, sediando reuniões políticas de estudantes e sindicalistas, e desenvolvia outras atividades além dos espetáculos, como debates e leituras dramáticas de autores cujos textos eram proibidos de serem encenados. Em dado momento, chegou até mesmo a ter uma revista. Conforme Hohlfeldt, locais pequenos como o Teatro de Arena — que propiciava uma proximidade com o público — conseguiam sobreviver em meio à censura, que cancelava peças às vésperas de sua estreia, pois o custo de manutenção era mais baixo.
— Tornou-se um centro de encontro, convergência. Claro que enfrentou censura, proibições, ameaças, reacionarismo dos moradores do prédio que reclamavam do barulho. Então, de fato, espaços como esses se tornaram aqueles espaços de resistência, onde a gente podia se encontrar, saber o que estava acontecendo, discutir — lembra.
O teatro resistiu aos horrores da ditadura até 1979 — enfrentando dificuldades devido à censura e à discriminação na distribuição das verbas oficiais. Contudo, com a reabertura e o surgimento de novos espaços culturais e alternativas de espetáculos, não conseguiu competir e resistir aos problemas financeiros, que inviabilizaram sua continuidade. Assim, fechou as portas na Borges de Medeiros, 835. Ele permaneceria em silêncio por 12 anos, até ser adquirido pela Secretaria de Estado da Cultura.
Durante esse tempo, avalia Hohlfeldt, grupos que quisessem apresentar espetáculos mais combativos e posicionados em relação à realidade brasileira perderam um espaço propício para tal.
Contudo, a cidade não conseguiu ignorar a presença calada do teatro no coração do Centro Histórico. Com o objetivo de recuperar o espaço e preservar sua memória, nomes como o então diretor do Instituto Estadual de Artes Cênicas, Dilmar Messias, o secretário da Cultura, Carlos Jorge Appel, e aquela que seria a primeira diretora da nova fase do Arena, a artista Sônia Duro, deram início a uma batalha.
Foi assim que, em 1988, o Teatro de Arena foi considerado um espaço de utilidade pública. Após passar por uma reforma, reabriu em 13 de março de 1991. A partir daí, passou a abrigar diferentes propostas, sendo palco de experimentações e pesquisa. Atualmente, a instituição está voltada a projetos variados, que contemplam teatro, dança e música — e preserva uma tradição até hoje: a de debater os trabalhos nele realizados.
— As pessoas se encontram lá, se identificam. O Teatro de Arena pulsa arte — avalia Gabriela.
A diretora ressalta que os artistas que procuram o teatro são normalmente estudiosos e pesquisadores engajados nas causas humanas e sociais - o Arena, assim, busca sempre manter uma agenda diversa.
Além de espaço de espetáculos, o teatro também se tornou um repositório da memória da censura, passando a abrigar o Centro de Documentação e Pesquisa em Artes Cênicas (Espaço Sônia Duro). O acervo conta com arquivos oriundos do Departamento de Censura da Polícia Federal, com 2,1 mil textos dramáticos, de autores nacionais e estrangeiros, adultos e infantis, livros de artes cênicas e uma videoteca com o Projeto Memória Viva — idealizado por Dilmar Messias, no final da década de 1980, com o objetivo de registrar e organizar o depoimento de figuras representativas na área das artes cênicas e, consequentemente, ampliar a memória artística do Rio Grande do Sul.
Novo revés
Como outros espaços culturais, o Teatro de Arena sofreu um novo revés em 2020, com a chegada da pandemia, que o obrigou a fechar as portas novamente. Conforme a diretora, nesse período, buscou-se viabilizar movimentos e eventos dentro do que era possível, para que o espaço não ficasse parado. Para ela, o grande número de artistas apaixonados pelo Arena os compele a encontrar jeitos de existir no teatro e enfrentar as dificuldades. Assim, o movimento de retomada das atividades se deu a partir de maio de 2021, respeitando os protocolos sanitários.
Para comemorar os 54 anos do Arena, foram realizados oito dias de apresentações presenciais com público. Para a equipe, celebrar o aniversário foi fundamental no momento de transformação e tentativa de retorno à normalidade. Desta maneira, o Teatro de Arena mostrou, mais uma vez, que resistiu: sobreviveu à pandemia e estava pronto para seguir de portas abertas para o público e grupos, fomentando a cultura.
Assim, de janeiro em diante, o Teatro de Arena promoveu produções próprias em datas pontuais, como o Mês da Visibilidade Trans; o Mês da Mulher, em março; o Mês da Mulher Negra, em julho; o Dia do Patrimônio Cultural, em Agosto; e agora, em outubro, a comemoração do aniversário do teatro.
— Acho que a gente está em um ótimo momento, teoricamente em um final de pandemia, com uma casa pulsando arte, e a gente está vivo. Acho que a arte está viva mais do que nunca, e nesses tempos difíceis, acho que fazer arte, viver arte, é o melhor que a gente pode fazer — pontua Gabriela.
Em nota enviada à reportagem, a secretária de Estado da Cultura, Beatriz Araujo, destacou que o Teatro de Arena "nasceu e sempre atuou como um núcleo de resistência cultural" e citou os investimentos feitos no local no último ano. "Temos muito a celebrar. Com recursos do Programa Avançar na Cultura, por exemplo, foi possível fazer investimentos da ordem de R$ 100 mil desde 2021, para manutenções e contratação dos serviços de adequações prediais, além da aquisição de novos equipamentos e realização de eventos. Outra providência importante foi a digitalização dos mais de dois mil textos do acervo, para garantir sua conservação e proporcionar acesso em meio virtual, o que facilita muito o trabalho dos pesquisadores", disse.
Beatriz Araujo também comentou que o Arena, ao reabrir, "manteve sua identidade como espaço de lutas e incorporou ações afirmativas em suas programações". "O evento Mulher Negra na Arena 2021 marcou a retomada do espaço, propondo reflexões sobre o universo das mulheres negras no audiovisual, nas artes cênicas, nas tradições, na filosofia e nas relações de trabalho. A diversidade presente na cultura brasileira é complexa e abrange os povos originários, os grupos LGBTQIA+, PCDs e comunidades vulneráveis. O Teatro de Arena abraça essa pauta, que hoje integra a resistência contemporânea brasileira nas artes e na cultura", frisou.
Motivos para celebrar
Para comemorar a data especial, o teatro preparou uma programação para esta segunda-feira, a partir das 19h, regada a muita cultura, mesclando diversos segmentos das artes — e reforçando seu papel histórico.
— É um reduto de artes diversas, de militância, muito artista passou por lá. Muita história foi contada. Muita gente entrou lá batalhando por sobrevivência artística. E a história do teatro de Arena é linda. Dos artistas lá atrás, que construíram ele, teve gente que se estabeleceu ali que tinha aquilo como casa. Eu acho que tem muito a ser celebrado e comemorado. Acho que vai ser bem bonito e emocionante — enfatiza.
A abertura ficará por conta do duo de dança dos bailarinos e sapateadores Léo Dias e Gabriella Castro, cujas histórias com a dança se misturam àquelas vividas no Teatro de Arena no início de suas carreiras. Em seguida, será exibido um vídeo com homenagens a atores que passaram pelo centro cultural e que partiram no ano de 2021: Mauro Soares, Marlise Saueressig e Sirmar Antunes.
A celebração se encerra com Ay Mi Amor, um espetáculo cênico-musical pautado por canções latinas que contam a história do excêntrico casal de personagens de origem espanhola, internacionalmente famosos, La Negra y El Blanco Nieves. A obra já esteve em cartaz no Teatro de Arena em 2020, dentro da programação do Porto Verão Alegre, e foi sucesso de público. Em tom intimista, através de voz, violão, percussão, castanholas, baile e performances, Daniel Debiagi e Ana Medeiros passeiam por um repertório que inclui canções de diferentes épocas, desde boleros dos anos 50 a sucessos da atualidade. A relação de amor, paixão, ciúmes e desavenças dos personagens é ilustrada musicalmente com bom humor e atuações que beiram o improviso em uma atmosfera de cumplicidade com o público.
E o Arena segue cumprindo seu propósito com uma agenda movimentada, que contempla desde o teatro infantil ao adulto até shows de música. Em novembro, estão programadas produções alusivas ao Dia da Consciência Negra, comemorado no dia 20. Além disso, conforme Rodrigo Marquez, presidente da Associação dos Amigos do Teatro de Arena, há novos planos no horizonte, como uma digitalização do acervo, acompanhada de um remodelamento do Espaço Sônia Duro.
— O teatro está ali, está vivo, está acontecendo — finaliza Gabriela.
55 anos do Teatro de Arena
- Nesta segunda-feira (17), às 19h
- No Teatro de Arena (Av. Borges de Medeiros, 835, Centro Histórico), em Porto Alegre
- Ingressos podem ser solicitados gratuitamente até domingo (16) pelo e-mail agendateatrodearena@gmail.com