Quando frequentar espetáculos ainda era um sonho longínquo em meio à pandemia, as plataformas digitais se consolidaram como uma alternativa para continuar levando cultura e lazer ao público, que buscava um escape durante o confinamento. Agora, com a melhoria do estado pandêmico, a arte volta a pulsar próximo ao público por meio de mostras, do cinema e de apresentações. Mesmo assim, na contramão desse movimento, a série infantil de teatro Sótão da Flor, uma iniciativa audiovisual criada no período agudo da crise sanitária, foi renovada para uma segunda temporada e lançada no YouTube no final de julho.
O motivo é simples: o que começou como uma obrigação se transformou em uma nova faceta a ser explorada por grupos de teatro. O meio audiovisual surge, assim, da vontade de experimentar, como um "novo braço" desses coletivos para continuar levando cultura a um maior número de pessoas.
— Nunca vamos abrir mão do teatro, ponto. Gostamos muito de estar ali com as pessoas. Mas o audiovisual também é bacana, então a gente também vai trazer isso para perto, é outra forma de contar uma história — adianta o ator e dramaturgo Jonas Piccoli, um dos fundadores do Grupo Ueba Produtos Notáveis, responsável pela série e que, assim como toda a classe cultural, viu-se obrigado a migrar para o mundo digital para sobreviver.
O início da aventura do grupo de Caxias do Sul nesse formato se deu com a produção do filme Fábulas do Sul, baseado em um espetáculo que o grupo já apresentava — eles queriam manter distância das peças de teatro gravadas, algo abominado por diversos grupos teatrais. Além disso, com a enxurrada de lives, o grupo refletiu sobre o que seria mais atrativo e sobre como teatralizar um filme, já que não se trataria do cinema propriamente dito, mas de uma peça com múltiplas câmeras, que se tornasse interessante mesmo sem ocorrer na frente do público — algo considerado por Piccoli como crucial no teatro, que, na sua visão, se torna monótono em duas dimensões sem os recursos cinematográficos.
As pessoas ainda continuam querendo assistir a alguma coisa em casa
JONAS PICCOLI
Ator, dramaturgo e um dos fundadores do Grupo Ueba Produtos Notáveis
Agora, com a retomada da vida social, o coletivo tem sido bastante procurado para apresentações presenciais. Porém, mesmo assim, os artistas pretendem seguir transformando suas peças em filmes — longe de serem produções hollywoodianas, é claro, mas disponibilizando o conteúdo de forma gratuita em plataformas como YouTube, considerado pelo grupo como o "teatro de rua da internet".
— A gente recebe muito feedback das crianças, mesmo no pós-pandemia, o que nos surpreendeu. As pessoas ainda continuam querendo assistir a alguma coisa em casa — explica Piccoli.
A manutenção do investimento nesse meio justifica-se, na opinião do dramaturgo, pelo retorno do público e pelo alcance de mais pessoas. Desta maneira, o audiovisual virou um outro braço do Ueba. Dois filmes já estão nos planos para serem produzidos em 2023: As Aventuras do Fusca A Vela (que já recebeu diferentes olhares com um espetáculo e um livro e agora inaugura uma nova história) e O Incrível Caso do Sumiço das Letras — ambas peças infantis apresentadas pelo grupo há vários anos.
Com os trabalhos online, o grupo conseguiu ampliar o público atingido. Para Piccoli, os espectadores gostam de assistir a produções em casa, mas, ao mesmo tempo, voltaram em peso para o presencial — alguns, inclusive, passaram a frequentar os espetáculos após terem tido contato com os trabalhos do coletivo na pandemia. Ele vê, portanto, uma mistura das modalidades. Porém, ao mesmo tempo, entende que também haverá uma audiência apenas de plataformas digitais, e outra, de teatro.
Por se tratar de uma nova linguagem, desafios são inerentes ao processo. O artista conta que a maior dificuldade foi conseguir reproduzir fielmente as cenas na gravação, pois o teatro é dinâmico, com improvisos e piadas que mudam a cada apresentação. O exagero teatral também não condiz com a tela, em sua opinião, obrigando os atores a se conterem.
Além disso, o tempo necessário para captar uma cena também é mais longo. No conjunto da obra, são diversos os detalhes que variam em comparação ao ofício que os artistas já estavam acostumados a desenvolver há mais de 20 anos. Por esses mesmos motivos, Piccoli considera imprescindível trabalhar com profissionais do ramo audiovisual.
Novos formatos
Para além dos meios utilizados para divulgar a arte, os formatos também variaram. No caso do Projeto Gompa, que também decidiu realizar experimentações em função da crise sanitária, quatro trabalhos audiovisuais foram produzidos no período. Agora, com base em um deles, A Mãe da Mãe da Menina, o grupo de Porto Alegre teve a ideia de trabalhar com um curta-metragem, que atualmente está em processo de desenvolvimento e de captação de recursos para viabilizá-lo. Neste momento, porém, o Projeto está voltado ao presencial novamente.
— Talvez em algum momento se volte a fazer alguma temporada, mas é difícil pensar uma continuidade para os trabalhos audiovisuais, porque eles ficam em um limbo entre o teatro e o audiovisual — explica Camila Bauer, diretora do grupo, ressaltando que o desaparecimento da categoria de espetáculo virtual dos festivais também dificulta o entendimento do uso desses trabalhos.
Além disso, os artistas também não pretendem mudar o foco de atuação, mas abrir uma porta para o audiovisual como parte das criações do coletivo, que também já teve incursões em podcast, com membros investindo em uma formação na linguagem audiovisual.
Outro grupo que decidiu atuar com um curta foi a tradicional Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz. Produzido na reta final da fase aguda da pandemia, Ubu Tropical teve sua primeira exibição em julho; a próxima será em outubro. O curta-metragem traz a linguagem do cinema mudo, em preto e branco. Ele é resultado de um desejo do coletivo de também se afastar do teatro filmado e se aproximar da linguagem do cinema.
— Isso, para nós, foi uma experiência muito importante, porque a gente viu que é possível, com a aparelhagem que temos, que é restrita, conseguir um resultado bem satisfatório — pontua Paulo Flores, um dos fundadores do grupo, destacando o trabalho como o início de um aprendizado sobre o que querem desenvolver no setor.
O grupo teatral já tinha uma relação com o meio audiovisual: eles já trabalhavam com documentários e já haviam publicado uma série de DVDs dos espetáculos em 2006. O interesse, portanto, precedia a pandemia, que forçou uma oportunidade. Desta maneira, durante a crise sanitária, os artistas divulgaram no YouTube vídeos, séries e alguns filmes.
Com tudo de ruim que a pandemia nos castigou, alguma coisa boa ficou
PAULO FLORES
Fundador da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
A Tribo fará ainda registros em vídeo do novo projeto Arte Pública, lançado recentemente. Com a exibição de Ubu Tropical, a Ói Nóis Aqui Traveiz retomou as atividades presenciais na Terreira da Tribo, localizada na Capital, e está focada em divulgar esse trabalho. Portanto, Flores conta que o coletivo ainda não parou para pensar em um novo projeto audiovisual, mas ele certamente virá, em decorrência do entusiasmo com o resultado do curta e de uma vontade antiga de experienciar com o cinema.
— Acho que, de alguma maneira, com tudo de ruim que a pandemia nos castigou, e o pessoal da cultura, então, muito mais, porque por dois anos a gente ficou impedido de trabalhar, alguma coisa boa ficou. Para nós, foi investir na questão do audiovisual. A gente teve tempo — destaca, ressaltando, porém, que o foco se manterá no bom e velho teatro, visto por eles como um elemento de transformação.
Expandindo a atuação
O GRUPOJOGO, por sua vez, não descarta a possibilidade de fortalecer o audiovisual como um de seus focos principais. Durante a pandemia, o coletivo porto-alegrense buscou oferecer experiências audiovisuais na internet e também produziu podcasts. Hoje, tem inclusive um núcleo audiovisual, que oferece serviços para terceiros — uma outra intersecção do meio nos trabalhos do grupo. Além disso, o número de produções aumentou no pós-pandemia, bem como o público atingido.
— Agora, estamos produzindo mais e, ao mesmo tempo, com essa digitalidade, demos uma furada na bolha que só acompanhava o nosso trabalho sempre pelo presencial — salienta o ator e diretor Alexandre Dill, o que também atribui aos conteúdos gerados nas redes.
Os próximos espetáculos do GRUPOJOGO, Prédios Espelhados Matam Passarinhos e Um Fascista no Divã, ainda oferecerão uma experiência audiovisual ao público. Porém, Dill ressalta que o objetivo é sempre criar uma vontade em quem está em casa de presenciar a apresentação.
Para o diretor, o modelo ainda é mantido pois este é o momento de experimentar, sem desperdiçar oportunidades. Ele sustenta que seria purista dizer que nada atravessaria o teatro, o que considera impossível. O coletivo, assim como tudo ao seu redor, vai sendo modificado e assumindo distintas linguagens para comunicar diferentes propósitos.
Futuro do setor
Em relação ao futuro do teatro, Piccoli, do grupo Ueba, acredita na questão híbrida. Ele vê ainda uma potencialidade do digital em atrair o público para o presencial e uma tendência de disponibilizar trabalhos na internet com esse mesmo fim.
Dill concorda: ele argumenta que quem souber utilizar as redes sociais a seu favor e publicar bons conteúdos, com qualidade técnica, conseguirá furar a bolha. Por outro lado, crê que as apresentações digitais funcionam em determinados locais, mas, em Porto Alegre, foram algo passageiro, devido a um pensamento local de que o teatro deve ser do modo tradicional.
Camila, do Projeto Gompa, por sua vez, não vê uma continuidade do teatro virtual. Ele “sempre vai perder para o audiovisual”, em sua visão, porque é montado com recursos de teatro, mais baratos, e, consequentemente, tem uma qualidade mais frágil. Além do mais, não é a especialidade dos artistas, diferentemente do teatro de palco. Isso, entretanto, não impede o cruzamento com o audiovisual, tal qual ocorre agora, que familiarizou os artistas com os processos de produção nesse meio e gerou vontade de investir nesse caminho.