Após quatro anos sem atividades presenciais, a Bienal do Mercosul voltou a Porto Alegre: nesta quinta-feira (15), será dada a largada oficial para a 13ª edição. Até o dia 20 de novembro, gratuitamente, a megaexposição vai apresentar obras de cem artistas vindos de mais de 20 países, refletindo sobre o tema Trauma, Sonho e Fuga. As obras estão espalhadas por Margs, Memorial do RS, Farol Santander, Cais do Porto, Casa de Cultura Mario Quintana, Fundação Iberê Camargo, Instituto Ling, Casa da Ospa, Instituto Caldeira e vias do Centro.
A curadoria-geral ficou a cargo de Marcello Dantas, carioca de 55 anos que concebeu o Museu da Língua Portuguesa e a Japan House, em São Paulo, e o Museu do Caribe, na Colômbia, e é referência no uso da tecnologia para a arte e na curadoria de mostras experienciais. É esta a proposta que ele traz à capital gaúcha.
— Esta não será uma Bienal para ver, mas para viver — avisa.
Como foi definido o tema desta edição da Bienal, "Trauma, sonho e fuga", e o que significa?
É uma equação de três palavras, três conceitos, que de alguma forma abordam a natureza das coisas indizíveis, aquelas que a gente simplesmente não consegue dizer. É para isso que a arte serve, para trazer essas coisas à tona. E a gente começou o trabalho da Bienal exatamente no auge da pandemia, no início de 2020. Curamos a Bienal inteira praticamente dentro do espírito da pandemia, então toda essa latência que estava nas pessoas esteve também no processo, de modo que era inevitável que isso se manifestasse nas obras. Não a pandemia, mas as consequências psicológicas, criativas e de natureza reflexiva que as pessoas produziram a partir desse trauma coletivo. Naquele momento, a ideia de trauma havia passado de uma noção individualizada para uma noção coletiva. De repente, todos sabiam o que aquilo significava. É um ponto de partida, um marco de transformação da sociedade, e eu acreditei que toda arte que fosse produzida a partir desta experiência seria de alguma forma afetada por ela. O sonho surge porque, na realidade do isolamento social, começa a existir nesse período uma propensão grande à manifestação do inconsciente, que vem na forma do sonho e manifesta aquilo que não se pode dizer. Quando estamos em isolamento, qualquer tipo de isolamento, a presença do sonho se torna ainda mais potente. E fuga, como conceito, é a estratégia de como você sair de uma coisa para outra. A fuga também faz parte desse indizível, é uma estratégia silenciosa, porque é algo de que você não pode falar a respeito, pois falar a respeito significa destruir a própria ideia.
Não é uma exposição sobre pandemia. É uma exposição sobre o seu impacto psicológico, humano, artístico e criativo. Mas nem por isso é uma Bienal triste. É uma Bienal reflexiva, mas libertadora. Ela estabelece que há uma luz em meio a isso tudo, uma luz de empoderamento, de consciência, de entender que essas coisas são divisores de água para uma nova existência.
Como você percebe o impacto da pandemia nas obras desta Bienal?
Está lá o tempo todo, porque está na nossa sensibilidade, naquilo que a gente coloca como importante. Caso contrário, seria como você fazer uma obra durante a Segunda Guerra Mundial, que não se referenciasse ao que estava acontecendo no entorno. Seria impossível. É uma coisa forte demais, grande demais para se negligenciar. Ainda assim, não é uma exposição sobre pandemia, bem importante dizer. É uma exposição sobre o impacto psicológico, humano, artístico e criativo que esse evento teve nas pessoas. Mas nem por isso é uma Bienal triste. Não é isso. É uma Bienal reflexiva, mas libertadora. Ela estabelece que há uma luz em meio a isso tudo, uma luz de empoderamento, de consciência, de entender que essas coisas são divisores de água para uma nova existência.
Esta será também uma Bienal do reencontro, algo muito bonito.
Isso é muito forte. A minha condição para fazer esta Bienal foi que ela fosse presencial, física, coletiva e de experiências de contato entre as pessoas, pois o apetite das pessoas por se conectarem novamente é muito grande.
O que se priorizou na seleção de artistas e obras?
Nitidamente, há uma escolha forte por instalações e experiências coletivas. Ou seja, é uma Bienal muito menos contemplativa e muito mais participativa. É sobre integração, sobre cidade, sobre participação, sobre labirintos, sobre formas e sobre situações, e muito menos sobre imagens, fotografias e pinturas, por exemplo. Acho que isso se manifesta por várias razões. Primeiro, porque acho que todo mundo queria uma plataforma de contato, não uma plataforma de contemplação. Talvez, ainda, pela minha característica como curador, de buscar coisas que flertem com a multidisciplinaridade. E também porque talvez o problema hoje não se resolva com uma imagem. A gente não tem uma solução, não tem um signo, uma foto, uma imagem que resolva tudo. Somente através de uma vivência você vai poder saber se o problema se resolveu dentro de você, não só através dos seus olhos.
O que você entende por "problema"?
O problema sempre é a pergunta: "Qual é a cara do nosso tempo?". É isso que uma Bienal deveria fazer: trazer a cara do nosso tempo à tona. Estamos em um momento de divisão, complexo e globalmente de uma incerteza gigante, o que faz com que as coisas não se sintetizem na forma de uma única imagem.
A presença de minorias sociais é algo cada vez mais reivindicado dentro do mercado da arte. Isso foi uma questão na seleção?
Sim. Minoria é uma coisa até complicada de falar, porque no Brasil as exclusões ocorrem nas maiorias. Mas a Bienal está bastante mista e tem artistas de todas as origens. E é um evento internacional, o que acaba trazendo uma multiplicidade de etnias enorme.
Uma novidade desta edição é a chamada aberta, por meio da qual artistas puderam propor seus projetos. Como se deu esse processo?
O primeiro canal de aceitação de projetos para a Bienal foi a chamada aberta, na qual quase 800 pessoas se inscreveram. Uma característica da chamada aberta é que ela foi uma chamada aberta às cegas. Então, a gente não sabia se a pessoa era homem, mulher, negro, indígena, branco, do Brasil ou de outro lugar. Os projetos foram analisados totalmente às cegas por cinco pessoas diferentes. Só foram levados à frente para serem analisados pelo grupo os projetos que tiveram pelo menos três votos. E aí, no final, nós fixamos em 20 selecionados e acabamos fazendo 19, porque um deles teve um problema técnico. Foi dada uma verba para cada artista, uma verba para a produção da obra e, lá no Instituto Caldeira, foi aberto um espaço para a produção.
Pode ter funcionado como uma porta de entrada para artistas mais jovens, então?
Sim. Isso foi uma premissa minha, de que nós precisávamos ter essa porta aberta. Porque, na real, essa porta é sempre muito difícil de se abrir. Ainda mais em uma situação de pandemia, em que até visitar o ateliê de um artista já era uma coisa complicada.
As obras produzidas a partir da chamada aberta têm ligação forte com a tecnologia, não?
Isso é até engraçado. Fomentamos a ideia de que se produzisse obras de base tecnológica. Criamos uma parceria com a PUCRS, criamos várias situações para que isso acontecesse. Mas, para a minha surpresa, uma parte significativa dos projetos que foram aprovados são de base biológica.
Mas a tecnologia estará presente na Bienal?
Súper. O Farol Santander inteiro é isso, o Instituto Caldeira tem bastante também.
Explorar o uso da tecnologia é marca sua como curador.
Eu acho que quando estava começando isso, há 30 anos, era algo disruptivo, fora da casinha e tudo mais. Hoje, não dá nem para dizer que exista alguma grande diferença entre obras de base tecnológica e qualquer outra obra. Há poucas semanas, uma pintura que foi produzida por inteligência artificial ganhou um concurso. É uma pintura, só que uma pintura cujo artista é um computador. Essa é uma obra de base tecnológica? Ou não? Bom, é uma pintura, no sentido mais tradicional da palavra. A gente tem, por exemplo, muitas obras que são de base biológica, que trabalham com fungos, mas que utilizam tecnologia no processo que está por trás.
Acredito que o lugar da arte é no espaço público, pois é lá que causa o que de fato deve causar. Temos algumas propostas de arte pública na Bienal justamente por causa disso. A arte pública é o terreno que inclui a todos dentro da discussão artística. Enquanto estamos fechados em uma galeria ou em um museu, estamos sempre em um processo excludente.
O consumo da arte também já foi atravessado pela tecnologia?
Acho que existem camadas. Por exemplo, quando a gente pensa em consumo enquanto fruição, você ir e observar, temos o apoio de QR codes, realidade aumentada etc. Nesse sentido, a presença da tecnologia na vivência da experiência artística é muito verdadeira, está lá, em todo canto. Já no consumo enquanto compra de objetos artísticos, você tem um mercado de NFTs crescente. Mas é uma coisa que, no fundo, é a busca por certificados de valor. Tem muito mais a ver com o lado financeiro do que com qualquer outra coisa, é menos sobre arte e mais sobre dinheiro. Por isso que, no consumo de arte enquanto uma experiência da vida, eu sou muito defensor da arte pública. Acredito que o lugar da arte é no espaço público, pois é lá que causa o que de fato deve causar. Temos algumas propostas de arte pública dentro da Bienal justamente por causa disso. A arte pública é o terreno que inclui a todos dentro da discussão artística. Enquanto estamos fechados em uma galeria ou em um museu, estamos sempre em um processo excludente.
E quais são as estratégias para atrair um público que talvez não tenha o hábito de ir a museus?
A gente vai plantar conceitos muito provocadores, vai gerar curiosidade. Serão experiências diferentes, coisas que as pessoas ainda não viveram. Por exemplo, deitar em um divã e experienciar o método da Lygia Clark, abraçar obras, entrar dentro de uma gaiola... A maioria das obras são muito vivenciais, o que acho que mobiliza muito as pessoas. Esta não será uma Bienal para ver, mas para viver. Acho que esta é uma mudança de linguagem que ajuda profundamente a construir uma plataforma de inclusão.
Como foi planejar uma Bienal neste cenário pós-pandemia e em um momento que é difícil para a cultura no Brasil?
Isso foi um dificultador real. A gente tem neste momento um governo que trabalha essencialmente contra qualquer atividade cultural, e com a Bienal não seria diferente. Tivemos todos os problemas de tempo de aprovação e toda a dificuldade de captação de recursos de um Brasil que tirou a cultura da pauta governamental. Foi isso o que aconteceu no Brasil. A gente trabalhou dentro da realidade que tínhamos e, dentro desta realidade, a gente está entregando bastante coisa. São mais de cem obras, sendo a maior parte delas comissionadas, de artistas de mais de 20 países, entre supernomes e artistas jovens. Há uma entrega muito forte, ainda mais se pensarmos que não estamos falando de quadros pendurados nas paredes. A nossa menor unidade é de 50 metros quadrados. Temos obras de 300 metros quadrados, de dois quilômetros. A gente realmente peitou essa parada.
Recentemente, saiu na Folha de S. Paulo uma reportagem relatando insatisfação com a sua condução por parte de alguns dos artistas participantes desta Bienal. Falou-se também em "fuga de artistas", pois pelo menos cinco teriam desistido de participar da Bienal. O que aconteceu?
Essa história é muito engraçada. Vamos lá, cinco artistas citados pela Folha de S. Paulo. Claudia Melli saiu do Gasômetro (a Usina do Gasômetro seria um espaço expositivo desta Bienal, mas a reforma necessária não ficou pronta a tempo) e foi para o Instituto Caldeira, simplesmente mudou de lugar. No meio do caminho, ela ficou sem lugar, pois o trabalho precisava de uma vidraça. Ela ficou fora da Bienal algumas semanas. Quando encontramos um vidro adequado, ela foi realocada. Depois, Daniel Lie. Estava marcado também para o Gasômetro. Ele fez uma obra pensando no Gasômetro e, no momento em que a prefeitura não entregou para a gente o Gasômetro — mesmo tendo prometido inúmeras vezes, por escrito —, a obra dele não faria mais sentido se não fosse no Gasômetro. Aí também temos a Maria Lynch, que é um caso que olha (revira os olhos)... Ela mandou um projeto para a Bienal que simplesmente exigia que portas ficassem em pé por conta própria. Ou seja, era tecnicamente impossível. Você não tem como fazer uma porta abrir e fechar sem ter pelo menos um suporte para segurar a porta. Enfim, era todo um desenho que na perspectiva parecia bom, mas na prática era inexequível. Avisamos que o trabalho não teria como ser feito, e ela disse: "Não importa, eu quero fazer a Bienal nem que seja com um alfinete". Eu disse: "Tá bom, um alfinete conceitual você pode fazer" (risos). Ela mandou uma outra proposta absolutamente fora de qualquer contexto, e a gente falou não. Assim como falamos para outros 900 artistas que mandaram projetos. Só que ela, por ser mimada, simplesmente não conseguiu aceitar a ideia. Mas preciso dizer ainda uma coisa muito importante: o motivo do meu não categórico foi uma carta que ela enviou para a Fundação Bienal solicitando intervenção sobre a curadoria. Ela de fato escreveu essa carta (mostra foto da carta para a reportagem). Aí, acho que ela ultrapassou um limite. Ela termina a carta com a seguinte frase: "Aguardo um posicionamento da Fundação para reparar a situação, visando a continuidade do meu trabalho e a garantia da minha participação na Bienal". Ou seja, não é fuga, como disse a Folha de S.Paulo, uma vez que ela está tentando loucamente participar da Bienal. E, por último, temos o caso do Silêncio Coletivo, que na verdade foi uma bobagem. Eles mandaram a proposta de fazer esta obra (mostra foto da obra para a reportagem). Conceitualmente a obra é boa, porque fala de açúcar, café, colonialismo, todos os processos destas coisas no Brasil. Eu coloquei a quantia de R$ 20 mil para fazer essa obra, o que me pareceu absolutamente adequado. Eles queriam R$ 80 mil. Eu disse que, por R$ 80 mil, não tinha como, e eles não quiseram fazer.
Em algum momento chegou a ser acertado esse valor de R$ 80 mil?
Esse valor nunca existiu. Eles fizeram um cálculo de quanto tempo iriam ter de trabalhar para fazer a obra, quanto ganhariam por hora etc. Mas todos os cachês dos artistas da Bienal são iguais, todo mundo ganha exatamente a mesma coisa, não existe compensação. Você pode gastar 15 minutos para fazer uma obra, e ela ser boa, ou você pode ser como a Lídia Lisboa, maravilhosa, que está há um ano e meio costurando meias de pessoas para a obra dela, que é a coisa mais linda. Ela vai ganhar o mesmo dinheiro que quem fez em 15 minutos. A Bienal não é uma fonte de renda para os artistas, é um momento de visibilidade.
O orçamento foi um problema para a Bienal?
A gente teve de fazer readequações, porque captamos 80% do autorizado (cerca de R$ 10 milhões captados). O principal impacto no orçamento foi com os custos de transporte das obras, que foram muito altos. Prevíamos gastar algo perto de R$ 1 milhão, mas gastamos mais de R$ 2 milhões. Fora passagens aéreas, que estão muito caras. Tudo isso somado a Ucrânia, petróleo, dólar, problema logístico mundial pós-covid, falta de navio... Outro grande impacto foi a necessidade de realizar obras de adequação em alguns espaços da Bienal, que acabaram sendo mais custosas do que a gente imaginava.
Ainda sobre o orçamento, há o relato de que 14 artistas foram desconvidados por conta de questões financeiras e depois convidados novamente. Isso ocorreu?
Ocorreu e foi totalmente um erro. Havia uma necessidade de adequação de orçamento e a gente fez isso, sempre trabalhando com os artistas. Foi feita uma lista dos projetos que precisariam ser readequados, mas tudo decidido com os artistas. Em um belo momento, alguém da produção — e essa pessoa foi punida — soltou uma carta de cancelamento para as pessoas. Isso enquanto eu estava dentro de um avião indo para o México. Quando eu chego no México e abro meu celular, essa carta está lá. Imediatamente peguei o telefone, disse que aquilo não podia acontecer e que desfizesse a carta. Isso durou algumas horas. Nenhum desses artistas foi cancelado.