Mesmo sem estar presente fisicamente na Casa da Ospa na noite desta quarta-feira (19), Élisabeth Roudinesco relembrou ao público do Fronteiras do Pensamento por que é uma das psicanalistas mais influentes da atualidade. Na conferência intitulada Tecnologia, Pulsão de Morte e Derivas Identitárias, a pesquisadora se debruçou sobre ideias de seu mais recente livro, O Eu Soberano: Ensaio sobre as Derivas Identitárias, abordando temas como o perigo do pensamento retrógrado e extremista e questões identitárias de sexo e gênero, racismo e feminismo — um conjunto de pautas que, ao ver de Roudinesco, têm resultado no isolamento do "eu" e na negação do outro.
O evento começou com apresentação do Duo Alves & Marquetti, que encantou o público com Beethoven e Gliere. A participação é resultado da tríade cultural formada pelo Fronteiras do Pensamento, pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) e a Bienal do Mercosul.
A historiadora Mary Del Priore conduziu a penúltima conferência presencial da temporada (a última será com Marcelo Gleiser em 9 de novembro), fazendo a mediação com o público antes e após a fala gravada da psicanalista francesa, que não pôde viajar ao Brasil por motivos de saúde. Autora de mais de 20 títulos traduzidos para mais de 30 idiomas, Élisabeth Roudinesco lembrou que, apesar de a tecnologia ter revolucionado a existência por meio de invenções como a inteligência artificial, o metaverso e o próprio teletrabalho, não nos protegeu do antissemitismo, de "crenças estúpidas" e do crescimento ditatorial recente.
Assim, o progresso da tecnologia e da ciência tem sido acompanhado pela contestação de aquisições de liberdades individuais, pelo retorno a ideias arcaicas ou mortíferas, por ofensas e insultos e, sobretudo, um esgotamento do ideal coletivo e do desejo de mudar o mundo — uma expressão da raiva recorrente que contesta tudo. Movimentos contra vacinas, bem como teorias conspiratórias e fake news, encontram na tecnologia um meio de difundir suas teses.
Na visão da autora, nem robôs, nem o progresso da ciência conseguirão acabar com essa "parte maldita da humanidade", a que Freud chamou de "pulso de morte", que age no sentido da autodestruição. A pesquisadora observou que fazer mal a outro é também destruir a si mesmo.
— Aí está a miséria moderna: é o si mesmo contra tudo — pontuou. — As luzes se opõem agora a um movimento que contesta as luzes, o progresso, e se baseia no ódio à revolução em geral.
Esses movimentos, conforme ela, são acompanhados por extremismos dos dois lados, que, perigosamente, favorecem o aumento da força da extrema direita, com a tese da "grande substituição", na qual seriam substituídos por uma horda de bárbaros, de diferentes etnias e orientações sexuais que destruiriam a família, o patriarcado e a pátria, sem fé nem lei. Eles cultivam ideias nacionalistas e reivindicam a pureza racial, não tendo se tornado identitários como seus inimigos — pelo contrário, são habitados por projetos de segregação. Anseiam pela contrarrevolução mundial, baseada na rejeição do que chamam de sistema, que inclui os saberes, as universidades e a democracia, alegando que esta já não representa verdadeiramente o povo.
Também para a psicanalista, o extremismo está diretamente vinculado à pulsão de morte, pois visa à destruição do outro, às guerras, alimentando a loucura de profetas e atacando os "politicamente corretos". Essas ideias são encarnadas por ditadores e até mesmo por dirigentes de países democráticos. Sob os nossos olhos, alegou a intelectual, o mundo está se desconstruindo.
— Penso que é preciso, em períodos conturbados, de globalização, ditaduras e guerras, criticar todas as formas de extremismo — sublinhou Roudinesco.
Deriva nos movimentos sociais
Ela enfatizou ainda que uma grande deriva está em ação nos movimentos sociais, como o indigenista, feminista, negro, entre outros: há um excesso de reivindicações de identidade, com uma mudança na linguagem e uma possível banalização em meio a um contexto de extrema radicalização.
A psicanalista argumentou que os estudos de gênero tiveram um excelente início, mas, posteriormente, permitiram as derivas identitárias — que Roudinesco acredita que estão promovendo retrocessos. Deste modo, as reivindicações de minorias substituíram as lutas políticas de classes oprimidas, dando a uma questão subjetiva maior importância.
Roudinesco lembrou também que, além das designações anatômicas do sexo, há questões de gênero, uma construção social e psíquica. Ela sustentou, no entanto, que não podemos opor os dois nem tentar substituí-los.
Quanto aos estudos decolonialistas, a psicanalista refutou a ideia de que todos os países ocidentais são colonialistas. Apesar de o racismo e a homofobia serem um fato, ela não acredita que as instituições democráticas reproduzam essas práticas de forma estrutural.
Do mesmo modo, enfatizou que o conceito de raça não existe, há somente diferenças de pigmentação, mas somos apenas uma única espécie humana. Além disso, Roudinesco não acredita que se pode lutar eficazmente contra o racismo utilizando terminologias raciais. Na visão da autora, de modo geral, um ser humano é constituído por várias facetas sociológicas, biológicas e psíquicas, e não apenas uma identidade.
Para a pesquisadora, o cenário atual gera um isolamento em si mesmo e a negação do outro. Uma das facetas, conforme a autora, é a dominação sobre outra pessoa, vinculada também à pulsão de morte, pois pode levar à destruição — e pode ser tanto individual, em relacionamentos, quanto coletiva, como ocorre com gurus ou ditadores.
Por fim, Roudinesco salientou que nunca se deve abandonar a esperança, porque, através da humanidade, o ser humano é capaz de se libertar até mesmo das piores situações e opressões, sendo habitado por um desejo libertador e uma vontade de não se deixar exterminar por poderes totalitários.
Programação presencial e online
Com o tema Tecnologias para a vida, a temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento realiza conferências presenciais, na Casa da Ospa, e online. As duas modalidades de transmissão são disponibilizadas após o evento pelo site.
O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre, Dexco e Icatu Seguros, com parceria acadêmica da PUCRS, parceria empresarial de Uniodonto, Sinergy e Colégio Bertoni Med, parceria institucional do Pacto Global e promoção do Grupo RBS.