Não é nenhuma novidade que a humanidade precisa caminhar rumo a uma transição ecológica. O filósofo francês Luc Ferry fez questão de ressaltar esse fato na quarta conferência presencial do Fronteiras do Pensamento 2022, realizada na noite desta quarta-feira (21), na Casa da Ospa, em Porto Alegre. Na palestra As Sete Faces da Ecologia Política Hoje, o autor de 71 anos, com mais de 70 livros publicados, forneceu ao público um panorama das atuais correntes ecológicas.
— A ecologia atravessa todas as correntes políticas. Quando eu era mais novo, a ecologia era algo da extrema esquerda. Hoje, mesmo a direita quer ser ecológica. Por isso, é importante refletir sobre essas diversas correntes — pontuou. — A poluição dos mares é muito grave, ninguém nega com seriedade o aquecimento global, é uma realidade. Temos de ir em direção a uma transição ecológica, mas temos de escolher entre essas correntes ecológicas.
Ferry é reconhecido por obras que trouxeram a filosofia de volta ao cotidiano. Apesar de a espiritualidade e a tecnologia serem temas recorrentes em suas obras, se debruçou, no evento desta quarta-feira, sobre a evolução da ecologia ao longo dos últimos 40 anos. A palestra foi baseada no mais recente lançamento do autor, Les Sept Écologies ("As sete ecologias", em tradução livre), ainda não publicado no Brasil.
A abertura da noite ficou por conta do Duo Winter e Colombo da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), composto por flauta e violão — como parte da tríade de música, debate público e artes formada pela parceria entre a orquestra, o ciclo de palestras e a Bienal do Mercosul. O mediador da noite foi o professor Rodrigo de Lemos.
O filósofo francês, um dos mais lidos da atualidade, destacou que adora estar no Brasil, um país no qual a ecologia se desenvolveu consideravelmente nos últimos tempos. Segundo Fery, nos anos 1990, existiam somente duas correntes ecológicas. Uma diversificação e o desenvolvimento do campo foram notados na atualidade.
Dessas duas correntes, uma era a revolucionária, que descreveu como anticapitalista, baseada no decrescimento. Trata-se de uma corrente conservadora, que ambiciona o regresso ao mundo que existia antes do desenvolvimento da civilização capitalista moderna — que era brutal, na visão de Ferry. A segunda é a social democrata reformista, que busca simplesmente corrigir os efeitos perversos do desenvolvimento capitalista.
— Eu defendo o ecomodernismo, que acho genial. Vocês podem escolher entre as sete, cada um escolhe o que quiser — antecipou o pensador.
Agora, contudo, os defensores do decrescimento se dividem em quatro correntes: há os anticapitalistas de sempre, para os quais o desenvolvimento sustentável é uma piada e o crescimento verde não existe. Para eles, é preciso parar o crescimento. Porém, Ferry argumenta que ninguém quer isso — no pós-pandemia, todos querem ainda mais o retorno do crescimento —, pois leva à falência de empresas, ao desemprego e, consequentemente, à miséria, e as pessoas querem consumir e ganhar dinheiro.
— Ninguém consegue vender democraticamente o decrescimento, é preciso impor, é uma tirania bem intencionada, buscando “salvar o povo contra ele mesmo” — argumentou.
Há ainda as ecofeministas, que acreditam que as mulheres e a natureza foram oprimidas e dominadas pelo macho branco ocidental capitalista, e, portanto, buscam defender a natureza e os animais — um pouco do que Greta Thunberg afirma em seus discursos, conforme o filósofo. Outra visão é a decolonial, parecida com a anterior, porém na qual o colonizado, discriminado racialmente e também explorado, assume esse papel. A quarta vertente do decrescimento é a vegana, composta por pessoas que não consomem nenhum produto de origem animal ou que tenha sido testado em bichos.
Já a quinta corrente da ecologia política, considerada interessante e apaixonante pelo autor, apesar de não concordar com ela, é a dos catastrofistas. Os defensores argumentam que já é tarde demais, o colapso do mundo é iminente e as pessoas terão de lutar pela sobrevivência. Eles acreditam que não podem “vender” o decrescimento, que poderia salvar o mundo, pois ninguém compraria, motivo pelo qual falam sobre a catástrofe. Segundo esse pensamento, após a calamidade, a humanidade terá de se organizar em biorregiões — pequenas células que gerem a si mesmas, enraizadas em determinado local.
A sexta é a dos reformistas, que creem em um desenvolvimento sustentável e no crescimento verde. Essa vertente atrai os chefes de empresas e de governo. Para Ferry, entretanto, o problema é que ela não corresponde ao nível do problema trazido pelo aquecimento global, pela poluição dos mares e pela erosão da biodiversidade. Além disso, na opinião do francês, as conferências do clima realizadas por chefes de governo não têm nenhum efeito. Ele admitiu que os decrecentistas têm razão ao apontar a sua ineficácia, mas reconheceu que é um esforço brindável.
Ecomodernismo
Por fim, há a corrente do ecomodernismo, defendida pelo autor, sobre a qual existe um manifesto publicado. Ferry destacou três ideias de que gosta nesta visão: a primeira é o desacoplamento, que defende a separação das atividades que poluem, como o transporte, a indústria e a agricultura. O francês lembrou que há quase 8 bilhões de indivíduos no mundo, sendo que 4 bilhões vivem em somente 3% do território do planeta, nas cidades.
Uma das ideias dessa corrente é ter 10% do planeta ocupado pela humanidade e os outros 90% utilizados como uma enorme reserva de estado selvagem da natureza, que poderia absorver os gases de efeito estufa e recriar a diversidade, onde as pessoas poderiam passear — porém, sem atividades poluentes ou transportes, apenas bicicleta.
O escritor salientou que é preciso reorganizar os centros urbanos, dando origem às cidades de 15 minutos, onde tudo estaria a uma distância de 15 minutos a pé ou de bicicleta.
— Nossas cidades são estúpidas, onde a gente mora, trabalha, faz compras, vai à escola, ao cinema. São bilhões de quilômetros perdidos por nada, e não é agradável — sustentou.
A segunda ideia é a da economia circular, segundo a qual tudo pode ser reciclado, conforme a própria natureza, na qual “não existe lixeira”. Esta ideia também é apresentada em um manifesto. Ferry afirmou que a economia circular é radical, pois rompe com a primeira revolução capitalista.
— Poderíamos imitar a natureza, seria algo muito inteligente, conceber produtos industriais para serem desmontados ao final do uso — enfatizou o pensador.
Outro ponto que atrai Ferry é a ideia de uma ecologia que não seja da culpa, mas da inteligência e da compreensão. Isto é, não pensar na punição, mas no lucro, motivo pelo qual funciona melhor e é mais inteligente do que o decrescimento, conforme o autor — mostrar para empresários, por exemplo, que terão lucro ao investir na sustentabilidade, ao invés de tentar diminuir as atividades. Ferry acredita que o ecomodernismo é também uma visão radical da ecologia, tanto quanto o decrescimento, mas é mais eficaz.
Portanto, como defendeu o autor, há uma paisagem largamente diversificada na ecologia política. Em relação ao Brasil, Ferry apontou ainda que a ecologia política é muito forte no país e que vê uma corrente essencialmente mais favorável ao decrescimento anticapitalista — e destacou novamente o olhar ecomodernista como uma alternativa. Já de maneira oposta, o filósofo enxerga a China como uma catástrofe, por ser um país que polui muito e coloca o desenvolvimento muito acima da ecologia.
Superpopulação?
Luc Ferry aproveitou a temática do meio ambiente para abordar a questão populacional do planeta. De acordo com pesquisas apresentadas pelo autor, disponíveis no livro Planeta Vazio, a ideia de uma superpopulação é falsa, e o mundo estaria indo, na verdade, rumo à redução populacional — com menos crianças e mais idosos. O francês advertiu, no entanto, que isso não é necessariamente bom, pois levanta muitos outros problemas e questões.
O autor destacou três motivos que levam a esse cenário: a urbanização, com os filhos se tornando mais dispendiosos, ao contrário da época em que ajudavam no campo — nas palavras de Ferry, quanto mais urbanizado um país é, menos crianças têm. Em segundo lugar, vem a liberdade das mulheres, acompanhada do desmoronamento das religiões nos países ocidentais, com métodos de contracepção e a diminuição do desejo de ter múltiplos filhos. Por último, surge o progresso, com o estado de bem-estar social.
Programação presencial e online
A temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento conta com 12 conferências presenciais e online. Passarão pela Casa da Ospa ainda Élisabeth Roudinesco e Marcelo Gleiser. No ambiente virtual, Maria Homem, Martha Gabriel, Rodrigo Petronio, Mayana Zatz, Jorge Caldeira e Sidarta Ribeiro compartilham suas ideias, e as conferências presenciais também são disponibilizadas posteriormente. Inscrições para ter acesso aos eventos presenciais e aos conteúdos digitais ainda podem ser realizadas pelo site.
O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre, Dexco e Icatu Seguros, com parceria acadêmica da PUCRS, parceria empresarial de Uniodonto, Sinergy e Colégio Bertoni Med, parceria institucional do Pacto Global e promoção do Grupo RBS.