A segunda conferência presencial do Fronteiras do Pensamento 2022, com o tema Tecnologias para a Vida, convidou o público a refletir na noite desta quarta-feira (31) sobre uma realidade consolidada em um mundo cada vez mais conectado: a globalização. Enfatizando a proeminência do território local, Frédéric Martel, um dos autores franceses mais lidos da atualidade, compartilhou seus pontos de vista sobre o assunto na palestra Uma Noção de Lugar no Brasil: Globalização Ecológica e Digital, na Casa da Ospa, em Porto Alegre. Em sua 11ª viagem ao Brasil, o sociólogo e jornalista utilizou o país como referência para explicar o fenômeno.
A abertura da noite ocorreu ao som de Miniaturas Brasileiras, de Edmundo Villani-Côrtes, reproduzida pelo quarteto de violoncelistas da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), graças a uma tríade entre artes, música e debate público formada por Fronteiras, Ospa e Bienal do Mercosul — esta última por meio da exposição de uma obra no salão. O mediador da noite foi o professor Rodrigo de Lemos.
Martel é autor de Mainstream (2012) e Smart (2015), obras consideradas fundamentais para refletir sobre as indústrias criativas e a cultura digital em diferentes territórios, e do polêmico best-seller do New York Times No Armário do Vaticano (2019). Apaixonado pelo Brasil, já morou no país e o visita quase que anualmente nas últimas duas décadas. Conhece de Porto Alegre a Brasília, da Amazônia à Mata Atlântica. Cada um de seus livros contém ao menos um capítulo sobre o país. Em suas pesquisas de campo, entrevistou dezenas de brasileiros, viu as queimadas, viajou com seringueiros, entre outras aventuras.
— Poderia dizer que sou um viciado no Brasil, e é como um amigo do Brasil que vou falar esta noite — alertou o sociólogo e jornalista.
O pensador iniciou a palestra abordando o soft power, ou seja, a influência de um país internacionalmente através da cultura, dos valores, do digital e das mídias.
— Sou obrigado a constatar que o Brasil vai mal, muito mal em termos de soft power — declarou.
De acordo com o pesquisador, nos últimos quatro anos, o Brasil perdeu influência e, hoje, está na 26ª posição em termos de soft power. Martel relembrou que anteriormente o país florescia, falava-se da música, de como havia conseguido tirar parte da população da pobreza — em suma, era um modelo, visitado e observado para vislumbrar o futuro. Atualmente, apontou, quase não se fala do Brasil na França, e quando o país é mencionado, é em razão das queimadas, da recusa de ajuda do G7, dos crimes em alta. Na imprensa mundial, a visão é crítica. Contudo, o jornalista ressaltou que não julga a situação do país, muito menos política, constatando apenas a realidade e as impressões.
Ele salienta que apesar de algumas pessoas acharem que tudo continua bem no Brasil, há menos turistas, não somente em função do coronavírus, e problemas ecológicos. O francês afirma que é preciso corrigir a imagem para que as pessoas queiram vir para o Brasil, o que precisa ser embasado na realidade, e não apenas na midiatização.
Martel estuda a globalização cultural há 25 anos, buscando entender mais sobre o lugar onde se vive. Ele afirma que cada pessoa tem múltiplas identidades — em relação ao lugar de onde vem, classes sociais, afinidades —, que pode optar por tornar públicas ou não. E longe da crença de que as fronteiras desapareceriam com a globalização e a digitalização, o pensador sustenta que a cultura, a identidade e as diferenças, e principalmente o lugar onde vivemos, impedem essa utopia sonhada pelas grandes empresas no Vale do Silício.
— Vejo a fragmentação, em vez do mainstream (dominante), observo fluxos múltiplos e contraditórios, trocas locais e regionais — destaca. — Nunca somos seres globais.
Para ele, adentramos o século digital e não é mais possível voltar atrás. Essa digitalização é uma nova etapa da globalização. Além disso, na visão de Martel, passamos dos bens culturais aos serviços criativos.
Em sua pesquisa de campo, o autor observou que a internet é um lugar onde não há fronteiras físicas, mas simbólicas — compostas por elementos linguísticos e contextos culturais ligados a personalidade, identidade e território.
— Estamos sempre ligados a um território mesmo na internet. Somos globalmente conectados, mas localmente situados — explica Martel.
Portanto, até mesmo nas plataformas globais, o que se verifica é uma regionalização — a exemplo do Spotify, no qual as mais tocadas no Brasil incluem músicas brasileiras, seguidas das norte-americanas e, por fim, latinas. Ocorre, desta forma, uma preferência por conteúdos locais. E, assim, as fronteiras permanecem.
Contudo, em relação às famosas bolhas sociais, frequentemente criticadas, o francês contesta a ideia de que as pessoas se isolam nas redes sociais e recebem apenas doutrinação de determinada ideologia, e que, por isso, seriam lugares nos quais as fake news se multiplicariam. Na visão de Martel, se vivêssemos em bolhas, não haveria discussões. Além disso, como defende, somos produto de múltiplas identidades, portanto, convivemos com outras bolhas. Elas não se comunicam, mas as pessoas circulam. Há também diversidade dentro das próprias bolhas. Ele avalia ainda que as bolhas não são necessariamente negativas e que podem ser espaço de solidariedade.
O mundo digital permite conciliar o globalismo e o localismo, segundo Martel. Mesmo em cidades isoladas, é possível participar de conversas globais. No entanto, o autor salienta que o lado negativo do localismo é que pode levar ao esquecimento da capacidade de lutar por problemas complexos de nossa época, como a crise climática e as guerras, os quais precisamos resolver. Para além da transição digital, o pensador lembra que vivemos uma transição ecológica, que afeta diversos setores e consiste não apenas em se tornar ecorresponsável, e sim levar em conta diferentes dimensões da nossa vida. Não basta apenas viver em uma cidadezinha. Para ele, é preciso constituir massa crítica e encontrar modelos econômicos que permitam sobreviver.
Em relação a onde vivemos na era da globalização e da transição ecológica, cerne de sua pesquisa ao redor do mundo, e ao movimento que vê se delinear no futuro, ressalta que a geolocalização é a resposta — uma mistura do local e do global. Estamos geolocalizados em termos de identidade e de cultura: gostamos de navegar, mas ligados ao território.
Programação presencial e online
A temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento contará com 12 conferências presenciais e online. Passarão pela Casa da Ospa ainda Steven Johnson, Luc Ferry, Élisabeth Roudinesco e Marcelo Gleiser. No ambiente virtual, Maria Homem, Martha Gabriel, Rodrigo Petronio, Mayana Zatz, Jorge Caldeira e Sidarta Ribeiro compartilham suas ideias. A programação completa pode ser conferida no site.
O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre, Dexco e Icatu Seguros, com parceria acadêmica da PUCRS, parceria empresarial de Uniodonto, Sinergy e Colégio Bertoni Med, parceria institucional do Pacto Global e promoção do Grupo RBS.