Considerada uma das mais importantes historiadoras da psicanálise, Élisabeth Roudinesco transita por diferentes temas: de identidade e gênero a imigração, passando ainda por literatura, feminismo, revolução francesa, judaísmo, entre tantos outros. A psicanalista francesa apresenta nesta quarta-feira (19) a penúltima conferência presencial do Fronteiras do Pensamento 2022. Indo ao encontro do tema do ciclo de palestras deste ano, Tecnologias para a Vida, a pesquisadora convida o público a refletir sobre Tecnologia, Pulsão de Morte e Derivas Identitárias.
Por motivos de saúde, Roudinesco não pôde viajar ao Brasil como antes previsto. Mas o encontro presencial continua marcado: sua fala previamente gravada será exibida no palco da Casa da Ospa, em Porto Alegre, às 20h, com tradução simultânea, e a historiadora Mary Del Priore estará no local para fazer a mediação e interagir com o público. Oportunamente, os inscritos no evento presencial terão acesso a uma videoconferência exclusiva com a intelectual para propor questionamentos.
Aos 78 anos, Roudinesco é autora de mais de 20 títulos, traduzidos para mais de 30 idiomas. Nascida em Paris, é graduada em Letras e Linguística pela Sorbonne e mestre e doutora pela Universidade Paris VIII. É professora na École Normale Supérieure e preside a Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise.
Publicou História da Psicanálise na França, Dicionário de Psicanálise e as premiadas biografias Jacques Lacan e Sigmund Freud na sua Época e em Nosso Tempo. Seu mais recente e polêmico livro é O Eu Soberano: Ensaio sobre as Derivas Identitárias. Roudinesco também escreve há mais de duas décadas para o jornal Le Monde. Já esteve em Porto Alegre em 2016 para participar do Fronteiras do Pensamento.
Na palestra, a pensadora aliará a tecnologia à psicanálise, buscando mostrar como se dá a relação entre os dois nos tempos atuais, nos quais homossexualidade, imigração, especismo e ações afirmativas precisam ser discutidos e aprofundados. A pesquisadora também abordará ideias freudianas, como a "pulsão de morte" (tendência à destruição), e conceitos do seu mais recente livro, como o de derivas identitárias.
Na visão da psicanalista, essas derivas partem de um desejo bem-intencionado de emancipação da extrema esquerda, que, no entanto, ao invés de assumir um compromisso com um mundo melhor, orquestrado pela classe trabalhadora e pelas massas, se concentrou nas minorias. Isso levou, em sua percepção, a uma substituição da busca da emancipação por movimentos de afirmação de identidade, que almejam visibilidade e reconhecimento ou exprimir indignação, privilegiando gênero, raça e sexualidades em detrimento de perspectivas de transformação social.
— A designação identitária, porém, tem algo fortemente criticável porque ela coloca o sujeito em apenas um território como se nós fizéssemos parte de uma raça, de um gênero, de uma religião. É um perigo porque embute a retração dos valores universais de cada sujeito — afirmou Roudinesco em entrevista ao jornal Estadão.
A psicanalista cita como exemplo dessas derivas identitárias o uso de terminologias raciais e a substituição do sexo pelo gênero. Ela acredita que muitas delas estão promovendo retrocessos, com um excesso de jargões e neologismos que obscurecem a situação real, como "cisgênero", "branquitude" e "interseccionalidade".
— A questão do gênero foi revolucionária ao introduzir a noção de que ele é uma construção social e psíquica e não apenas uma diferença anatômica de sexo, mas houve uma guinada no sentido contrário quando se passou a negar o sexo em detrimento do gênero. Ambos, sexo e gênero, são necessários — explica.
Além disso, alega a autora, isso leva a uma espécie de "perseguição" às democracias ocidentais, que, por terem produzido o colonialismo, teriam um espírito sistematicamente racista e colonialista. Roudinesco sustenta que esse pensamento é incorreto, visto que há leis que reprimem o racismo, a homofobia e a misoginia. Deste modo, não considera justo ser chamada de colonialista apenas por ser europeia, francesa e branca, assim como não aceita que movimentos mais radicais digam que, por ser branca, não compreende os negros. Na opinião da psicanalista, o debate tornou-se "violento e insultante".
— Devemos lutar contra o racismo e a homofobia existentes na sociedade civil, mas não acusar os países mais antigos de todas as infâmias — afirmou em entrevista a GZH. — A luta para combater a discriminação é uma luta social, e não uma luta identitária.
A pensadora aborda, na mesma obra, a hipótese de que movimentos como o antirracismo, o feminismo, o anticolonialismo e LGBTQIA+ "já não se perguntam como transformar o mundo para que ele seja melhor". Ela adverte que as pessoas se acomodam na posição de vítima e não querem melhorar, apenas castigar e punir, e que é preciso haver um limite. Ocorre, assim, por meio da busca pela autoafirmação, uma hipertrofia do "eu", na qual se exclui tudo o que foge a si mesmo, resultando na destruição da alteridade.
Contudo, a pesquisadora acredita que os movimentos identitários são fenômenos passageiros (por isso, derivas) — sintomas de um mundo em transformação e resultantes de uma crise do pós-colonialismo e do pós-comunismo. Mesmo assim, têm aspectos positivos, por evidenciarem o problema das minorias. Apesar disso, estão condenados, porque se tornaram punitivas com a cultura do cancelamento, o boicote aos espetáculos e a releitura de obras de arte.
Em O Eu Soberano: Ensaio sobre as Derivas Identitárias, a psicanalista francesa traz ainda outras polêmicas, como a questão da autorização de tratamento hormonal para transição de gênero por adolescentes. A autora é contrária às intervenções cirúrgicas para redesignação de sexo e ablação de seios em menores de 18 anos, visto que são operações irreversíveis. Ela ressalta, porém, que não se opõe a permitir que crianças e adolescentes mudem seu nome ou se vistam com roupas do sexo oposto — embora estejam, muitas vezes, perturbadas e lidando com um outro tipo de questão. Para a pesquisadora, é preciso esperar, ouvi-los, cuidar deles e tratá-los se forem casos psiquiátricos.
— Basicamente, há um problema hoje que é a intervenção no corpo para resolver problemas psíquicos — pontuou.
A autora também relaciona as angústias identitárias aos transtornos narcisistas (conflitos de identidade entre si mesmo e a imagem de si), que classifica como o problema da atualidade, algo reforçado pelas redes sociais.
— São transtornos desse tipo que dominam hoje em dia, e é por isso que vemos por aí essa vontade de dominar o corpo e de mudar o psiquismo através das intervenções físicas e cirúrgicas, algo que é realmente problemático — enfatizou, atribuindo os transtornos à queda dos ideais coletivos e a uma reflexão sobre a diferença entre os sexos.
Apesar das críticas às derivas identitárias, Roudinesco ressalta que o maior perigo é o ressurgimento das teorias identitárias da extrema direita, de retorno ao nacionalismo, de racismo e da "grande substituição". A intelectual constata que vivemos uma época "inacreditável", na qual metade do mundo é governada por ditadores, inclusive em países democráticos — figuras que atacam a "destruição da família", os homossexuais, os transgêneros e acusam o Ocidente de ter "ideias frouxas". Para Roudinesco, isso não pode ser nutrido, e o maior perigo, quando não há comprometimento com o coletivo, é o fascismo.
Programação presencial e online
A temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento conta com 12 conferências presenciais e online. O último encontro será no dia 9 de novembro, com o físico e astrônomo Marcelo Gleiser. No ambiente virtual, Maria Homem, Martha Gabriel, Rodrigo Petronio, Mayana Zatz, Jorge Caldeira e Sidarta Ribeiro compartilham suas ideias, e as conferências presenciais também estão disponíveis na plataforma até 15 de dezembro. Inscrições para ter acesso aos eventos presenciais e aos conteúdos digitais ainda podem ser realizadas pelo site.
O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre, Dexco e Icatu Seguros, com parceria acadêmica da PUCRS, parceria empresarial de Uniodonto, Sinergy e Colégio Bertoni Med, parceria institucional do Pacto Global e promoção do Grupo RBS.