Primeiro, a mãe. Maria Carpi foi patrona da 64ª Feira do Livro de Porto Alegre, em 2018. Depois, o filho. Fabrício Carpinejar foi o homenageado do evento em 2021. Agora, é a vez do pai. Carlos Nejar foi anunciado pela Câmara Rio-Grandense do Livro como o patrono do tradicional evento em 2022.
Não é a primeira vez que escritores com laços sanguíneos compartilham o posto. Os irmãos Leopoldo Bernardo Boeck e Nelson Boeck foram patronos em 1974 e 1994, respectivamente. Pais e filhos já foram contemplados: José Bertasso (1983) e Henrique Bertasso (1977) e Erico Verissimo (1976) e Luis Fernando Verissimo (1991). Houve até casal de patronos: Luiz Antonio de Assis Brasil (1997) e Valesca de Assis (2017) – vale ressaltar que Maria Carpi e Carlos Nejar estão separados há mais de 40 anos.
É a primeira vez que um filho patrono viu também os pais homenageados pela Feira. E a pioneira no posto foi mãe. Nascida em Guaporé em 1939, Mari Carpi mora em Porto Alegre desde os 15 anos. Ao longo da vida, ela foi professora, advogada e defensora pública. Só aos 50 começou a publicar seus livros.
— A poesia entrou na minha vida desde o dia em que nasci, através de minha sensibilidade. Porém, como escritora, a poesia esperou por mim — afirma a poeta, hoje com 83 anos.
Maria lançou obras como Nos Gerais da Dor, Desiderium Desideravi, Vidência e Acaso, A Migalha e a Fome e O Cego e a Natureza Morta. Também organizou as antologias pessoais como Pequena Antologia e Caderno das Águas. Em 2021, lançou seu primeiro livro infantojuvenil, O Quebra-Galho e o Faz de Conta. Apesar de já ter lançado 18 livros, define-se como uma autora mais inédita do que publicada.
— Estou sempre refletindo poeticamente. Então, escrevo. Não tenho pressa. Sou apaixonada pela lentidão. Penso que todos os meus textos formam um único livro — diz.
Para Carpinejar, só os livros de sua mãe que já foram publicados a tornam uma das maiores autoras do Brasil. Ele descreve que Maria trabalha com uma “lírica da transcendência”.
— A mãe não escreve poema solto. Ela faz todo o livro em torno de uma reflexão filosófica ou toda uma engenhosidade de metáforas. É uma poesia de dobras — define o filho.
Além de Fabrício, Maria teve outros três filhos: Rodrigo, Miguel e Carla. Com formação em Direito, deu aulas e estudou para concursos públicos, até se tornar defensora. Um pouco sobre sua história pode ser lido em Coragem de Viver, que Carpinejar lançou em 2021. O autor descreve a obra como “uma biografia de amor do filho pela mãe”.
Carpinejar lembra, no texto, que Maria comprou parte da edição de seu primeiro livro sem que ele soubesse. “Achei que estivesse fazendo sucesso”, diverte-se na publicação. O escritor recorda que a mãe o ensinou a ler quando a escola desistiu dele porque não conseguia acompanhar os colegas. Quando o filho virou patrono da Feira, em 2021, Maria recordou desses tempos.
— Lembrei de uma brincadeira profética que fiz quando ele, criança, não conseguia ser alfabetizado na escola e o alfabetizei em casa, com poesia. "Fabrício, se aprenderes a ler, também poderás ser um escritor" — ela relata. — O que mais amo no Fabrício é sua cordialidade. Ele faz da poesia uma acolhedora morada.
Carpinejar conta que decidiu virar escritor graças à mãe, após ler Nos Gerais da Dor. O livro de Maria Carpi causou um espanto no filho:
— Eu não sabia como ela escreveu aquele livro! Nunca vi a mãe na frente do computador. Quando li, pensei: "Meu Deus, essa não é minha mãe, é outra pessoa". É uma voz falando que a dor é uma pessoa que te confronta.
Sobre Nos Gerais da Dor, Maria descreve a experiência de ter sido patrona da Feira do Livro da Capital como a mesma de ter publicado seu primeiro livro, aos 51 anos:
— Uma “alegria madura e pronta para 'valsar' na praça.
Natural de Caxias do Sul, Fabrício Carpi Nejar é poeta, jornalista e professor. Ele passou a assinar unindo os sobrenomes dos pais desde a publicação de seu primeiro livro, As Solas do Sol (1998). Aos 49 anos, acumula 48 publicações, entre poesia, crônicas e livros infantojuvenis. São mais de 750 mil exemplares vendidos. O que mais marcou sua experiência como patrono, conta, foi o contato com o público, "visceral e intenso":
— Há um respeito à figura do patrono, como uma autoridade intelectual. Isso é um hábito que só existe no Rio Grande do Sul. Ultrapassa qualquer esfera da homenagem. Você tem a Praça da Alfândega. Você abre a Feira. Você fecha a Feira com o sino. É quase como um ser mitológico do Estado.
Sendo filho de poetas, Carpinejar puxou um pouco do pai e da mãe em sua escrita. Com cada um deles aprendeu lições que carrega em seu trabalho. De sua mãe, ele absorveu o que chama de dialética.
— Juntar as palavras díspares. Ver que o contrário funciona, desafia o visível. Unir o alto e o baixo. O coloquial e o sagrado — sublinha.
Com o pai, aprendeu a ler em voz alta para corrigir:
— O poema tem que sobreviver ao teste da voz. Para fugir de cacofonia, de ambiguidades. Você limpa o poema pela voz. O poema é um som escrito.
Também com 83 anos, Carlos Nejar diz que já não esperava ser patrono. Ainda mais recebendo o bastão de seu próprio filho. Porém, o poeta sinaliza que "as coisas que não se esperam são mais belas e felizes". Para Nejar, essa homenagem do evento teve múltiplos significados:
— O primeiro é ser lembrado pelo Rio Grande do Sul. Eu sei o quanto a Feira do Livro é importante na minha terra. O segundo é ter recebido o bastão de meu amado filho. Isso tem sido muito especial para mim. Terceiro é ser patrono no aniversário de 250 anos da cidade.
Poeta, ficcionista, ensaísta e tradutor, além de advogado, Nejar tem uma carreira prolífica na escrita em suas mais de seis décadas de trajetória. Lançou obras como Livro de Silbion, Danações, O Poço do Calabouço, História da Literatura Brasileira, entre outros trabalhos envolvendo poesia, romance, ensaio, contos e livros infantojuvenis. A partir de 1989, passou a ocupar a cadeira número 4 da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Nejar também foi professor de Português e Literatura em escolas estaduais e teve atuação na área jurídica, como advogado e procurador de Justiça. Por meio dessas ocupações, circulou pelo interior gaúcho e se afeiçoou à região do Pampa, elemento muito presente em sua obra.
Radicado há mais de três décadas no Rio de Janeiro, Nejar ainda se classifica como um homem do Pampa. Ele reflete que ficou muito ligado aos costumes e à cultura do Rio Grande do Sul, preservando hábitos como vestir poncho e "consumir linguiça frita já de manhã cedo".
— A minha palavra é uma palavra do Pampa. O Rio Grande do Sul se tornou também a terra do meu coração. Posso viver no Rio de Janeiro, em Vitória (ES), amo os lugares onde passo, mas nada substitui o Rio Grande — atesta.
Entre os três patronos, cada um tem seu método próprio de criação: Maria Carpi escreve em agendas de anos passados. Segundo Carpinejar, é como se ela escrevesse andando para trás. Por sua vez, o filho é alguém que usa o celular, capaz de digitar livros inteiros no bloco de notas. Já Nejar anota tudo em cadernetas.
Carpinejar lembra do pai escrevendo a todo momento – fosse na frente da TV ou almoçando. Para Nejar, se o poema lhe nasce, precisa ir adiante, independentemente do que estiver fazendo.
— Escrevo à mão, tanto a poesia quanto a ficção ou a crítica. Preciso sentir o pulsar do vento na palavra. Preciso sentir a palavra viva. No computador eu não sinto isso — diz o novo patrono. — Tento deixar que as palavras me inventem.
Após a escolha de seu pai para ser patrono, Carpinejar brinca que, a princípio, não há mais nenhum Carpi ou Nejar para ser homenageado pela Feira. Agora é esperar pelos netos:
— Vamos dar um descanso de algumas décadas (risos).