Por Maria Carpi
Poeta, autora de “O que Resta Está Por Vir” (Ed. AGE, 2019)
Estou escrevendo um livro em parceria com meu filho, Fabrício Carpinejar, cujo título ele escolheu: A Coragem de Viver. Será um diálogo sobre esse tema. Mas há tempos venho meditando – por coincidência – que maior do que a coragem de viver seria a coragem de sobreviver.
Sobreviver individualmente depois de inúmeras guerras, catástrofes e pestes que sofreu a humanidade já é difícil. Primo Levi são suportou ter sobrevivido. Ele que saiu do Holocausto.
A desistência ocorre quando a esperança se esgota dentro da gente: o anseio individual não encontra mais reverberação comunitária.
É um homem? Não é triste um homem?
Se vive há muito em solidão.
Se acha que o tempo terminou.
(De 'Mil Sois', Primo Levi)
Assim também é o assombro de uma mãe sobreviver ao filho: Stabat Mater, de Pergolesi.
Teríamos que levantar das cinzas os livros do incêndio da Biblioteca de Alexandria ou rememorar, tochas vivas, os poemas banidos como nos convoca Anna Akmátova desde o grupo da poética resistência. Mas agora, mais do que nas guerras, surge uma sobrevivência como povo.
De nossa cultura herdada de geração em geração. De nossas vitórias sobre a intolerância e barbárie. De nosso idealismo de encontrar, sempre de novo, a terra da promessa. Inclusive a sobrevivência da humanidade no paraíso terrestre. Mais, a sobrevivência desse paraíso.
Ao sobrevivermos estamos dando outra oportunidade à vida.
O medo de morrer, a pulsão da morte nos corações, conseguimos driblar com o tempo adiado. A morte será sempre um depois, e só vemos a morte do outro. Só vemos a morte alheia.
Todos os medos são disfarces do medo primordial de que vamos morrer.
Essa comum desdita ou nos junta ou nos afasta do convívio. Somos aterrorizados ou aterrorizamos os demais, até descobrirmos que o verdadeiro inimigo, na maioria das vezes, está dentro de nós. Enquanto uns participam da existência com dignidade, sabedoria e fraternidade, outros a tornam insuportável.
Um homem cruel tem embutido um terrível medo de perecer. E um homem que pratica o bem responde com respeito à vida.
As religiões, sem justificativa da ciência e da filosofia, mas como artigo de fé, nos propõem uma sobrevida, em compensação de bem vivermos. Como poeta, tenho certeza de que a construção de uma sociedade justa compartilhada já tem em si sua recompensa.
Agora nos cabe a coragem de sair de uma moral utilitária ou de privilégios de ideologias partidárias para exercermos a ética comunitária que nos ensina a responsabilidade de sobreviver coletivamente.
Duas máximas de Paulo, o Apóstolo dos Gentios, valem em dias difíceis, anulando qualquer inclinação de onipotência:
A cada dia o seu fardo.
Não vos preocupeis com o dia
de amanhã que pode não vir.
Quando a nossa sensibilidade se abre a uma teia de comum respeito, o medo de morrer é suplantado pela coragem de sobreviver. Não mais uma sobrevivência seletiva, mas sobreviver com a responsabilidade de cidadão do mundo. A coragem de sobreviver será então um amálgama da fraternidade entre os homens.
Os sobreviventes são testemunhas da caminhada e têm na própria pele o manuscrito da esperança. A coragem de sobreviver como povo ganha outro timbre: a maior união através de um sofrimento comum. Mas um sofrer que se alicerça na alegria de finalmente estarmos juntos no propósito de fazermos da terra o lugar da reconciliação. A alegria serena de nos esvaziar do medo da finitude e repartir o pão da vida.
E, recordando os que tinham de escapar às pressas para o exílio ou em busca da possibilidade de sobrevivência, vem-me à mente a frase de comando: peguem só o necessário. A filósofa Maria Zambrano, ao partir da Espanha para o exílio, não deve ter levado nenhum livro. Levou a Pátria no coração.
Mas ter coragem de sobreviver é também estar pronto para perder.
As glórias do sangue derramado. A vida por perdida, achada. Na contramão da esperança, ir perdendo aos poucos, em cada lance da escada da fortuna. A cada lance de dados do acaso. Não vir a perder apenas na serenidade, na placidez monacal, mas com gosto, com apetência da perda, sem lucro da certeza do outro lado, da outra margem, outro barco ou banco, outro canal, outro dia para ganhar o que se perdeu. Perder limpo de nuvens. Uma perda sem a promessa de novo torneio da sorte sazonal. Uma perda que é um ganho de novamente estarmos unidos.
Meu pensamento volta ao Primo Levi. Ele não suportou ser sobrevivente do Holocausto. A humanidade ainda não se levantara dos genocídios. Ele queria a sobrevivência coletiva.