Por Cesar Paz
Empreendedor e Articulador do Coletivo POA Inquieta
“O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá…”
Em O Meu Guri, música de Chico Buarque de 1981, “chegar lá” tem dois sentidos. Na ilusão da “meninice” das favelas significa ter sucesso, ascender, de qualquer forma, a um padrão cada vez mais global de consumo que a sociedade impõe. Na sabedoria ingênua da mãe excluída, significa saber que o filho vai morrer jovem pelos inevitáveis desvios dessa jornada.
Saindo da cena cultural e aterrissando na vida cotidiana, a desigualdade é ainda pouco visível para as lentes de quem está em condição privilegiada ou não quer vê-la. Na prática, a desigualdade se estabelece como parte estrutural das nossas vidas e das nossas relações sociais nas cidades. É um pedinte aqui, um sem-teto acolá, uma reportagem nos jornais e, em geral, um território central com boa assepsia contra a exposição das diferenças.
Especialmente no Brasil, a desigualdade econômica e social sempre foi um tema politicamente polarizado. Simplificando muito, a esquerda defende que pobre é vítima de um sistema desigual, enquanto a direita entende que pobre tem pouca motivação para o trabalho e/ou estudo. No meio desse caminho cheio de espinhos, temos, entre outros temas, a histórica dívida social, as políticas públicas de inclusão e a geração versus a distribuição de renda.
Segundo André Torreta, consultor especialista em consumo de classes C, D e E, o Brasil é vice-campeão mundial de concentração de renda. O Catar nos ganhou dessa vez. Apenas 1% da população mais rica do nosso país detém 28,3% do PIB nacional.
Numa perspectiva global, conforme Yuval Harari, o 1% mais rico é dono da metade da riqueza do mundo. O historiador alerta também que a biogenética e a inteligência artificial poderão produzir, no futuro, uma divisão da humanidade entre uma classe de super-humanos e uma subclasse de homo sapiens inúteis, deflagrando um salto quântico na desigualdade.
Nesse contexto, deparamos com a pandemia do coronavírus e começamos a abrir espaço para debater temas importantes para a redução gradual da desigualdade. A pressa certamente está no fato de que a covid-19 talvez esteja expondo pela primeira vez a desigualdade de forma cristalina. O vírus, inclusivo e democrático, não tem preferência pelas áreas centrais e/ou periféricas.
Num eventual colapso do sistema de saúde pública, os leitos privados de UTI poderão ser todos ocupados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e os respiradores direcionados, sem exceção, às traqueias de pobres e miseráveis.
No protocolo médico para destinar um respirador, um senhor abastado de classe alta pode ser preterido pelo “meu guri”, aquele mesmo lá do início do texto…
Pois é,
“Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá…”