Pioneiro da internet no Brasil com o fanzine por e-mail CardosOnline, o escritor André Czarnobai, outrora popular pela alcunha “Cardoso”, preparava seu segundo romance, a distopia satírica O Sensual Adulto, com a promessa apalavrada de publicar por uma grande editora. A escrita do livro se estendeu por vários motivos, entre eles a necessidade profissional de se dedicar a outros projetos. Quando o livro de fato deslanchou, em 2019, o cenário econômico havia mudado, e as chances de publicação por uma editora tradicional eram nulas.
Cardoso estava conversando sobre o assunto com um amigo em um bar de São Paulo quando um cara na mesa de trás se virou e se apresentou como um dos fundadores da plataforma de financiamento coletivo Catarse. E foi assim que o autor do CardosOnline enveredou por um campo cada vez mais comum para os escritores nacionais: o do crowdfunding.
— Até tentei colocar o livro em outras editoras. Duas me falaram que, com a suspensão das compras dos livros didáticos, tiveram que rever seus projetos. O curioso é que mesmo quem recusou falou que o livro era bom, que tinha de publicar. Meu interesse era mesmo esse, não estava buscando chancela de mercado, embora fosse bom ter um certo selo por trás. Mas acho que o mercado hoje não depende mais disso — comenta Czarnobai.
É um caminho que vem sendo cada vez mais trilhado no Brasil. Originalmente restritas a autores independentes, as campanhas para financiamento de livros têm sido comuns não apenas em editoras pequenas, de nicho, mas em casas mais tradicionais. A Record viabilizou no ano passado a reedição de luxo da série de fantasia iniciada pelo brasileiro Eduardo Spohr com A Batalha do Apocalipse.
— A literatura até demorou a seguir essa trilha, por questão de conforto dentro de um mercado tradicional que estava aquecido e dando resultado ao natural. Com a crise, houve uma reinvenção necessária. É só ver que o mercado da música teve que se reinventar 20 anos atrás. Já o mercado editorial teve que pensar mais sobre seu modelo só agora — comenta o editor Rodrigo Rosp, que vai publicar neste ano pela Não Editora a coletânea de contos políticos Fake Fiction, tornada possível via crowdfunding.
O financiamento coletivo consiste em um autor convocar amigos, colaboradores e potenciais leitores para que ajudem a financiar o projeto antes de ser realizado. Para nos atermos ao assunto literatura: no sistema tradicional, um livro é publicado, e o preço de capa de cada exemplar é calculado para cobrir os custos de produção, como projeto gráfico, arte de capa, impressão, transporte e armazenamento.
No crowdfunding, o valor de produção é orçado e garantido antes mesmo da impressão por quem acredita na ideia ou deseja ajudar o autor. A plataforma cobra uma taxa, bem como os sistemas de pagamento online. Há modelos de projetos que só são realizados se o valor das contribuições chegar ao orçamento previsto. Em outras modalidades, o valor arrecadado pode ser parcial, complementado mais tarde pelo autor ou pela editora com recursos próprios.
Crescimento
Em teoria, não é novidade. No Brasil, nos anos 1970 e 1980, autores iniciantes ou independentes já haviam experimentado vendas de “bônus” antecipados aos leitores para financiar um livro. Em sua atual encarnação, o sistema se consolidou com o impulso da internet, das redes sociais e das várias plataformas online que surgiram para conectar criadores e público.
A primeira delas foi o Indiegogo, originalmente voltada para o cinema independente, em 2007. Uma das mais famosas é o Kickstarter, aberta em 2009 com a ideia de ampliar as áreas de atuação abrangidas pelas propostas.
No Brasil, uma das primeiras experiências se deu com o Catarse, fundada em 2011 e até hoje a maior ferramenta de financiamento coletivo no país. Ao longo de quase uma década, a plataforma viu saírem do chão jogos, música, gravações de DVDs, projetos arquitetônicos e mesmo iniciativas sociais. Os quadrinhos descobriram o potencial da ferramenta cedo, mas a literatura em prosa só intensificou o uso nos últimos quatro anos.
— Comecei fazendo financiamentos coletivos para criadores independentes, como quadrinistas, por exemplo, que não achavam como viabilizar suas obras. Essas pessoas continuam fazendo projetos, mas notamos que houve nos últimos dois anos uma diversificação dos usuários. Vejo duas motivações para isso: a primeira, certamente, é a crise do varejo, que se intensificou nos últimos anos com a concordata das grandes redes de livrarias. A segunda é a liberdade que dá ao criador — diz Raíssa Pena, diretora de publicações do Catarse.
A literatura pode ter demorado um pouco a embarcar no bonde, mas vem mostrando crescimento constante tanto no número de projetos quanto nos valores arrecadados. Esse dado é parte de um quadro maior no qual a própria indústria do livro tenta se reorganizar. A crise recente das grandes livrarias é um dos motivos, mas há outros. De acordo com a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), o faturamento do setor editorial geral (incluindo vendas para o governo) diminuiu 25% entre 2006 e 2018.
— Percebemos esse aumento da publicação via crowdfunding, mas não só, está havendo também uma alteração de mercado, um movimento de abertura de pequenas livrarias e independentes. O mercado vem se renovando e usando a criatividade após o pior da crise, em 2017 e 2018 — comenta o presidente da Câmara Brasileira do Livro, Vitor Tavares.