O austríaco Peter Handke, o mais recente ganhador do Nobel de Literatura, é um autor que gosta de misturar gêneros. Seus romances começam como diários, ou como roteiros, suas peças incluem digressões. E, claro, seus livros de não ficção são pura literatura, como comprovam o lançamento no Brasil de Ensaio sobre a Jukebox e Ensaio sobre o Louco por Cogumelos.
Os dois livros fazem parte da nova leva de reedições da obra de Handke por aqui, impulsionada pelo anúncio do Nobel, em outubro de 2019 – uma aclamação não isenta de polêmica, já que o autor, nos anos 1990, foi um fervoroso apoiador dos sérvios na guerra nos Bálcas e um defensor de Slobodán Milosevic, o ditador local condenado por crimes contra a humanidade.
Estes são os primeiros dois volumes de oito livros de Handke que a Estação Liberdade prevê publicar no Brasil, entre eles os demais livros da série de "Ensaios" e alguns dos clássicos do escritor que tiveram ampla circulação no Brasil mas que hoje estão há tempos fora de catálogo, como O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, Breve Carta para um Longo Adeus e Falsos Movimentos.
Os dois livros apresentados agora pela editora são parte de um conjunto de obras intituladas "ensaios", usando a palavra no sentido mais próximo ao que o francês Michel de Montaigne (1533-1592) usava: experimentos tateantes em que uma consciência se dedicava a passear pela realidade usando um tema como pretexto. No caso de Handke, todas as suas novelas/ensaio começam com circunstâncias banais nas quais o narrador (que é o autor, mas também pode não ser) está disposto a escrever ou a refletir sobre um tema que, ele adverte em mais de um livro, “pouco ou nada encerra de relevante para o mundo”. Mas é uma irrelevância enganosa, uma vez que a prosa distraída e experimental de Handke passeia por gêneros, informações, estilos, propondo a cada passo novos olhares sobre a condição humana, o processo da escrita e os traumas da Alemanha do pós-Guerra.
Em Ensaio sobre a Jukebox, o narrador se encaminha para uma modorrenta aldeia espanhola a fim de encontrar lá um exemplar de jukebox igual à que alegrava sua existência na infância. Essa busca, que se expande territorialmente, já que o ensaio foi publicado em 1990, quando esses dispositivos pareciam em vias de desaparecer antes de seu renascimento na era digital, serve também como uma jornada estética, em que Handke pula de assunto em assunto, da literatura às transformações da Europa.
Ensaio sobre o Louco por Cogumelos, por sua vez, é uma elegia afetiva sobre amizade e obsessão, com o narrador recontando a vida de um amigo que se torna paulatinamente maníaco por varrer os bosques da região em que vive à cata de cogumelos, para escrever o que, espera, seja o grande tratado sobre o assunto. Uma compulsão que o fará desaparecer. Publicado em 2013, é o mais recente livro do ciclo, que também inclui A Tarde de um Escritor (1984), Ensaio sobre o Cansaço (1989) e Ensaio sobre o Dia Bem-Sucedido (1991). Todos devem ganhar edição ou nova edição no Brasil.
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Ensaio Sobre o Louco por Cogumelos
De Peter Handke
Tradução de Augusto Rodrigues. Estação Liberdade, 160 páginas, R$ 44.
Ensaio sobre a Jukebox
De Peter Handke
Tradução de Luis S. Krausz. Estação Liberdade, 119 páginas, R$ 38.
Prateleira
Lançamentos recentes
M
De Antonio Scurati
Com mais de 800 páginas, M narra a ascensão do fascismo na Itália pela história de seu líder, Benito Mussolini. Vencedor do prêmio Strega, uma das principais láureas da literatura italiana, toma Mussolini como narrador e apresenta um panorama dos personagens que possibilitaram a chegada do ditador ao poder. O romance foi pensado como o primeiro de uma trilogia e também dará origem a uma série de TV. Tradução de Marcelo Lino. Intrínseca, 816 páginas, R$ 79.
Mulheres dos Escombros
De Scheilla Nunes Gonçalves
Livro no qual a assistente social e professora universitária Scheilla Nunes Gonçalves discute a situação das mulheres da periferia diante do que ela define como a crise contemporânea do capitalismo. Para ela, a emergência recente de uma atitude reacionária contra as mulheres põe em questão o alcance dos supostos avanços dos últimos anos, algo que se verifica principalmente na condição vulnerável das mulheres em áreas periféricas. Editora Revan, 304 páginas, R$ 57.
Vai Começar A Sessão
De Sérgio Augusto
Reverenciada eminência do jornalismo cultural brasileiro, Sérgio Augusto tem no cinema um reconhecido campo de atuação, como crítico, repórter e ensaísta. Este volume reúne textos publicados entre 2011 e 2018 no jornal O Estado de São Paulo. Com o raro equilíbrio de erudição e prosa saborosa, o jornalista percorre de filmes clássicos a joias a serem descobertas, de astros e estrelas e figuras que brilharam à sombra dos holofotes, de episódios históricos a causos mundanos. Objetiva, 533 páginas, R$ 75.
A Ocupação
De Julián Fuks
Vencedor dos prêmios Jabuti e José Saramago, Julián Fuks retoma seu alter ego, o escritor Sebastián, para explorar três planos narrativos: a relação com o pai enfermo; a rotina de uma ocupação em um hotel abandonado; e sua própria visão da paternidade. Fuks, que realizou uma residência artística numa ocupação de São Paulo, tece personagens e cenários verossímeis, e não esconde certo desconforto por ser um homem de classe média naquele ambiente. Companhia das Letras, 134 páginas, R$ 44,90.