Na entrevista que me concedeu em 2016, por ocasião de seus 80 anos, Ivo Bender narrou demoradamente, e com evidente satisfação, algumas das histórias que figurariam em seu terceiro livro de contos, que acaba de ser lançado postumamente. Bender morreu em junho último, aos 82, deixando uma obra de 36 peças de teatro e, até então, duas antologias de narrativas breves – Contos (L&PM), de 2010, e Quebrantos e Sortilégios (Terceiro Selo), de 2015.
Foi o próprio Bender que afirmou na ocasião de nossa conversa: "Na verdade, não sou contista, mas um contador de histórias". Rosa Noturna, que sai pela editora Movimento, confirma a autoimagem do autor. São oito contos em apenas 80 páginas, sendo que a narrativa do título, organizada em duas partes, leva 31 páginas.
Bender se confirma não apenas um notável contador de histórias como um leitor da tradição. Praticamente todas as histórias são reescritas de narrativas que formaram o imaginário gaúcho ou mundial pela via da literatura, da religião e da história. Outras podemos suspeitar que tenham sido inspiradas em suas memórias familiares, referência que era declarada pelo autor.
Mas, como podem imaginar os que são familiares à produção do autor, nada em Rosa Noturna soa realista. Muito pelo contrário: tingido pelo fantástico, este livro derradeiro tem a marca de sua obra, tanto no teatro quanto na prosa.
Sua reescrita da tradição é feita de modo sempre transgressor, como aponta a professora Léa Masina no prefácio. Açougue Modelo, o primeiro do volume, retorna aos Crimes da Rua do Arvoredo, que motivaram a lenda de que um casal produzia deliciosos embutidos de carne humana. Como nas demais narrativas, o horror é um pretexto para falar sobre a relação entre o interdito e a morte. Para além do fantástico está o mecanismo pelo qual um amor proibido, seja pela traição ou pelo incesto, precipita a tragédia.
Reencontro com Emily Dickinson
Bender sempre foi um admirador dos gregos, tendo escrito sua Trilogia Perversa, em 1988, a partir da combinação da tragédia clássica e da história da colonização alemã no Rio Grande do Sul. Descendentes de imigrantes também são os irmãos Cristiano e Herta, que vivem uma ambígua relação em Dias de Mel, uma das narrativas de Rosa Noturna.
No conto-título, um jornalista do sul do Brasil vai a Londres para encontrar Bram Stoker, o autor de Drácula, que está em busca de inspiração para um novo romance. Juntos, eles empreendem uma viagem para conhecer a história da misteriosa condessa húngara Elisabetha Bátory e encontram Elisa, uma descendente de sua linhagem que mexerá com a cabeça do fleumático escritor irlandês.
Muitos dos personagens de Bender estão à procura de um afeto perdido e/ou do preenchimento de um vazio, como o Caim que estabelece uma relação de competição com Abel no conto de ares bíblicos Gêmeos ou o garoto doente que recebe a visita da mãe morta depois de ter a visão de Lilith (tida como a primeira mulher de Adão) em Ao Clarão da Lua, um dos raros contos abertamente emotivos do livro.
A deterioração da saúde causada pela impossibilidade do amor reaparece em Fim de Jornada, narrativa que encerra o livro, na qual a poeta Emily Dickinson anseia por um homem casado. Aqui, Bender reencontra a poeta de sua devoção, a quem já havia dedicado a última peça teatral (Diálogos Espectrais, em 2004), além de ter traduzido seus poemas. Alguns dos versos figuram em meio a esta narrativa que conclui, desde o título, outra jornada exemplar: a do próprio Ivo Bender.