Um dos mais importantes dramaturgos gaúchos, tendo praticado a narrativa breve na última fase da carreira, Ivo Bender morreu na madrugada desta segunda-feira (25), aos 82 anos, em Porto Alegre. Estava internado desde o dia 2 de junho no Centro de Tratamento Intensivo do Hospital Moinhos de Vento devido a um quadro de insuficiência cardíaca. O velório será a partir das 11h desta segunda no Instituto Estadual do Livro (IEL), do qual ele foi diretor. O enterro será às 18h, no Cemitério João XXIII (veja a repercussão no meio artístico).
Bender deixa uma extensa obra com 36 peças, escritas entre 1961 e 2004, e dois livros de narrativas curtas: Contos (L&PM), de 2010, e Quebrantos e Sortilégios (Terceiro Selo), de 2015, que venceu o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Conto. Trabalhava em uma terceira coletânea.
Sua diversificada produção para o teatro é marcada principalmente pelos elementos do absurdo, como em As Cartas Marcadas ou Os Assassinos (a primeira peça, de 1961), e do fantástico, este o mais predominante, verificado em textos como Quem Roubou meu Anabela? (1972). Criou também um teatro mais experimental (A Terra Devorada, de 1963) e político (Sexta-feira das Paixões, de 1975), embora posteriormente tenha demonstrado desagrado com a ideia de "teatro engajado". "Era preciso fazer", declarou em entrevista a Zero Hora há dois anos, sobre a época da ditadura.
O teatro voltado para o público infantil mereceu sua atenção em peças como O Auto do Pastorzinho e seu Rebanho (1972) e O Macaco e a Velha (1978). Polivalente, trabalhou como ator, diretor e professor.
– Na segunda metade do século 20, Ivo foi provavelmente o mais importante dramaturgo do Estado. Abriu novos caminhos para a dramaturgia local, fora de uma temática regionalista, o que é importante para a universalização de nossa literatura. Quando viu que não tinha muito espaço para fazer teatro, por várias razões, enveredou pelo conto, gênero em que criou toda uma mitologia fantástica relacionada ao mundo rural gaúcho – analisa Regina Zilberman, professora de Literatura da UFRGS, que foi sua orientadora de mestrado e doutorado.
Um dos principais estudiosos da obra dramática de Bender, o ator e professor Marcelo Ádams lembra que boa parte de sua produção se deu durante a ditadura militar:
– Não era uma crítica explícita, porque o momento histórico não permitia, mas em vários textos teatrais ele abordava com certo bom humor a censura e a dificuldade de ter uma expressão mais libertária. Além disso, era um homem de teatro, formou uma geração inteira de alunos. Como ser humano, era muito inteligente.
Muitas da peças de Bender são pinceladas por um senso de ironia e sarcasmo que era marca de sua personalidade. Por ocasião de seu aniversário de 80 anos, em 2016, declarou a Zero Hora: "Se eu soubesse que a velhice é uma coisa tão terrível, teria me matado aos 50 anos. Mas ninguém me disse isso". Questionado em 2011 se havia criado uma poética "benderiana" que perpassa toda a sua produção, afirmou: "Nunca tinha pensado nisso, nessa unidade. Já me dava por afortunado por ter escrito comédias e dramas. Mas a pergunta cabe. Talvez a presença do fantástico seja um elemento que tu vais encontrar disperso por esses textos".
Tragédia grega no Rio Grande do Sul
Ponto alto em matéria de elaboração estético-teatral foi a Trilogia Perversa, publicada em 1988 pela Editora da UFRGS, recriando episódios da tragédia grega em terras gaúchas. As peças foram encenadas pelo diretor Decio Antunes em 1996, 2000 e 2002. Colheita de Cinzas - 1941 atualiza Clitemnestra e Electra na grande enchente daquele ano; As Núpcias de Teodora - 1874 adapta Ifigênia em Áulis, de Eurípides, à revolta dos Muckers; e A Ronda do Lobo - 1826 leva os irmãos Atreu e Tiestes ao início da colonização alemã no Estado. Nascido em São Leopoldo, Bender fazia, com estas peças, um percurso pelo imaginário teutônico que lhe era íntimo.
Lembranças familiares que ganharam contornos fantásticos motivaram os contos que o autor publicou a partir dos anos 2010, depois de ter deixado de escrever para o teatro. Justificou a escolha declarando, em entrevistas, que considerava a prosa um gênero "mais fácil" que a dramaturgia. Sua última peça foi Diálogos Espectrais (2004), objeto de uma leitura dramática em 2006, sobre uma conversa imaginária com Emily Dickinson (1830-1886), a quem Bender venerava. Em 2002, ele havia organizado e traduzido uma coletânea de poemas dela pela editora Mercado Aberto. Outros autores que verteu para o português foram Harold Pinter (1930-2008), com quem tinha em comum a queda pelo absurdo, e Racine (1639-1699), que considerava um modelo.
Ivo Bender recebeu diversas homenagens em vida por sua contribuição aos palcos e às letras. Em 2011, a Secretaria da Cultura de Porto Alegre e o 6º Festival Palco Giratório Sesc/POA realizaram a Semana Ivo Bender, com leituras dramáticas e espetáculos. No mesmo ano, foi o ganhador do prêmio Fato Literário, do Grupo RBS, na categoria Personalidade. Em 2012, foi homenageado pela 5ª FestiPoa Literária e, em 2016, a Escola de Espectadores de Porto Alegre prestou um tributo com leituras dramáticas e debate.
Se os seus livros de contos podem ser facilmente encontrados nas livrarias, os textos das peças estão fora de catálogo. Pode-se garimpar em sebos a edição mais recente de seu Teatro Escolhido (Editora da UPF/IEL, 2005), a Trilogia Perversa (Editora da UFRGS, 1988) e Nove Textos Breves para Teatro (Editora da UFRGS, 1985). Bender também deixou o estudo Comédia e Riso - Uma Poética do Teatro Cômico (Editora da UFRGS/EDPUCRS, 1996). Para quem deseja ler mais sobre o autor, o Instituto Estadual do Livro dedicou a ele, em 2017, um volume da série digital Escritores Gaúchos, que pode ser baixado aqui, com artigos e entrevista.
Leia depoimento do dramaturgo Diones Camargo sobre o legado de Ivo Bender:
"A importância de uma figura como Ivo Bender para a cena teatral e para a cultura do RS não se restringe a somente um aspecto: dramaturgo, professor, tradutor, contista, desde muito cedo Ivo nos mostrou (tal como seu colega estadunidense Eugene O'Neill) que é perfeitamente possível ser um erudito, desses que percorrem sem embaraço os labirintos da cultura clássica ocidental, e ao mesmo tempo permanecer um autor profícuo, um artista que não se deixa soterrar pelo conhecimento, mas que se vale dele para se tornar – ele próprio – agente de novas ideias e reflexões. Só isso já bastaria para incluí-lo na lista dos grandes dramaturgos brasileiros. Mas acrescente a este currículo inúmeras montagens de suas peças tanto dentro quanto fora do país, publicações em diversas editoras nacionais, estudos teóricos sobre aspectos do drama, da comédia e da tragédia grega, além de elogiadas traduções de grandes poetas e dramaturgos estrangeiros.
Por fim, fica a lembrança do homem gentil que era conhecido pelo o humor inteligente que nunca descambava para a obviedade ou agressividade. E, acima de tudo, fica o legado do artista reconhecido pela busca da palavra exata e pelo ritmo ideal da escrita – trabalho de Sísifo (porém, nem sempre inútil) de todo o poeta, dramaturgo e escritor que se preze.
EVOÉ, IVO!"