Sentado ao lado da cachorra Artemísia no apartamento do bairro Auxiliadora onde mora há 38 anos, Ivo Bender é a personificação dos elementos que caracterizam suas peças teatrais e seus contos: sarcástico, trágico e sempre sujeito à irrupção do fantástico, no sentido literário. Como nesta declaração que surgiu durante a conversa com a reportagem:
– Se eu soubesse que a velhice é uma coisa tão terrível, teria me matado aos 50 anos. Mas ninguém me disse isso.
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Bender também gosta de drama, mas tem motivos para comemorar os 80 anos, que completa nesta segunda-feira. Apesar do problema de visão que o impede de distinguir os rostos das pessoas e que o força a escrever no computador com fonte tamanho 48, segue produzindo como sempre. É considerado o mais importante dramaturgo gaúcho em atividade, embora não escreva mais peças teatrais. A última, intitulada Diálogos Espectrais (2004), já foi motivo de leituras dramáticas, mas permanece inédita no palco. Trata da relação de um tradutor com a poeta Emily Dickinson, a quem Bender venera e cujos versos ele mesmo verteu ao português.
Desde 2010, quando publicou o livro Contos (L&PM), tem se dedicado à narrativa breve em prosa. Em 2015, ganhou o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria conto com uma segunda coletânea, Quebrantos e Sortilégios (Terceiro Selo). E está pronto para lançar um terceiro livro do gênero – ele considera a escrita do conto "mais fácil" do que a dramaturgia. Pretende ir nesta terça-feira à editora para dar notícias sobre o mais recente trabalho. Segundo a Dublinense, ainda não há título, nem previsão de publicação da coletânea.
Durante o encontro com a reportagem, Bender narrou demoradamente e com evidente prazer alguns dos novos contos, muitos deles inspirados – como é seu costume – nas próprias lembranças familiares, transfiguradas em um registro fantástico.
– Na verdade, não sou contista, mas um contador de histórias. Às vezes, não tenho para quem contar, então narro para esta aqui – declara, acariciando a cachorra que chama de Mísia.
Bender, que deplora o teatro engajado e ficou insatisfeito com suas próprias incursões no teatro político durante a ditadura militar ("Era preciso fazer", diz ele), é um agudo observador dos descaminhos da nação hoje:
– Chegar aos 80 anos em um país selvagem, arcaico e injusto como o Brasil é um ato heroico. Chegar a esta idade, quando tudo conspira contra a pessoa, contra o envelhecimento, o amadurecimento... Olha o que está acontecendo, estamos parados. Hoje (quinta-feira passada), estão julgando um cafajeste no Congresso (referência a Eduardo Cunha). Sobreviver dentro dessa coisa insuportável é um tour de force.
No último dia 14, Bender foi homenageado pela Escola de Espectadores de Porto Alegre com leituras dramáticas dirigidas por Camila Bauer e debates com a presença dele e de interlocutores como o ator Marcelo Ádams e o dramaturgo Diones Camargo. Em 2012, foi o homenageado da 5ª FestiPoa Literária. Um ano antes, em seus 75 anos, ganhou uma semana de atividades no 6º Festival Palco Giratório. Mas suas peças têm sido raramente encenadas nos palcos do Estado.
– Ou o texto teatral está sendo desacreditado ou serve de pretexto para um diretor qualquer cometer suas loucuras – especula Bender. – No momento, o teatro que interessa (aos artistas) é aquele que é improvisado sobre um romance ou conto. Ou, então, aquele que é criado por meio de exercícios durante os ensaios.
Por causa da dificuldade de visão, o autor não frequenta mais salas de espetáculos. Considera frustrante a experiência de não poder ver a expressão no rosto dos atores. Mas o impedimento não arrefeceu sua convicção na força de um teatro que dispensa o excesso de recursos e soluções extravagantes:
– O teatro é um espaço vasto, no qual cabe de tudo, do teatro engajado ao teatro do absurdo. Só que tem que ser bem feito. Você pega os gregos, por exemplo. É texto descarnado de qualquer decoração. Você pode fazer em frente a uma cortina preta com os atores vestidos de preto e de pés descalços. E deu.
Ivo Bender pelas novas gerações:
"O Rio Grande do Sul, apesar de reconhecido como um dos centros mais importantes de produção teatral no Brasil, não tem uma representatividade similar, na literatura dramática, à já alcançada nas artes do palco. Ivo Bender é o nome mais importante da dramaturgia de nosso Estado não apenas porque escreve peças desde 1961, mas porque o fez ininterruptamente e com rara e constante qualidade artística. Transitando com sucesso entre comédias, tragédias e peças para crianças, além de ensaios teóricos e traduções, Ivo é o mais bem sucedido e versátil de todos os que se dedicam à dramaturgia por estas terras."
Marcelo Ádams, ator e professor da Uergs
"A importância de Ivo para o nosso teatro foi o seu pioneirismo, sua coragem de escrever numa cultura deficiente como a nossa, numa época em que a atividade do dramaturgo era difícil, quase improvável. Mas, acima de tudo, o que mais admiro no autor é o seu apreço pela palavra, sua inteligência nas escolhas narrativas e o aprimoramento constante dos seus textos, o que deixa claro seu profundo respeito não apenas pelo teatro, mas também pela literatura. Me impressiona que um autor da sua importância ainda não tenha sido nomeado a patrono da Feira do Livro de Porto Alegre."
Diones Camargo, dramaturgo