Por Marcelo Ádams
Ator e professor de teatro da UERGS
Morto no último dia 25, Ivo Cláudio Bender (1936–2018) pertencia a uma linhagem de dramaturgos que, ao menos no Brasil, começa a rarear. Aumentam por aqui os autores que integram coletivos, mas que também podem ser seus próprios encenadores e atores, multiplicando as funções exercidas no espetáculo teatral.
Nesse sentido, Ivo era um autor à moda antiga, pelo processo quase sempre solitário em que criava seus textos – embora existam exemplos de peças escritas a pedido, como A Casa por Trás das Dunas (1969) e Surpresa de Verão (1985). O apego a regras de composição dramática, que poderia resultar em textos de estrutura mais conservadora, não impediu, antes contribuiu, para que se destacasse na atenção à verossimilhança das situações, à coerência psicológica das personagens e à herança da Poética aristotélica.
Reconhecida autoridade não apenas em criação literária, mas também em cultura grega clássica, Ivo se declarava um seguidor do "velho Aristóteles". Por isso pode causar surpresa a constatação de que o estagirita não foi o único deus que o leopoldense homenageou. Nosso melhor dramaturgo não via impeditivos em admirar as bem armadas tragédias gregas, concisas e certeiras na busca da catarse e, ao mesmo tempo, escrever suas próprias peças em uma atmosfera exalada (mesmo que não declarada) das ideias de Bertolt Brecht. Bender comprovou que não há problema no fato de que uma bem articulada construção dramática apareça em uma forma teatral de tendência épica (algo que o próprio Brecht dialeticamente também demonstrou com primor). Assim, Aristóteles e Brecht se unem, ainda que desviando os olhos um do outro, para o bem do teatro.
Exemplos bem-sucedidos da dialética benderiana são Queridíssimo Canalha (1971) e Mulheres Mix (2001). A primeira é uma comédia cáustica que, em vez de criar personagens que vivem, morrem, comandam e sofrem golpes nesta "terra brasilis", opta pelo conhecido recurso de localizar suas ações em algum país gêmeo do nosso, no qual há regime parlamentarista. Mas esse disfarce é um jogo, pois identificamos nesse país fictício cada uma das mazelas que o Brasil sofria e ainda sofre, embaladas por uma aguda crítica política e social.
Corrupção e assassinato de desafetos são as estratégias de poder do protagonista Ulisses de Lamarr, que compartilha conosco, seus conterrâneos, um tanto de sua visão antiética, na forma de uma canção de extrato brechtiano: "Examinem sua vida já vivida e, sem dó nem compaixão, hão de achar um traço de união entre nós que nos mostramos por inteiro e sem pudor, e entre os senhores mesmos que mascaram o despudor com o mais falso recato, disfarçando de amor e retidão seu imenso desamor e sua voraz ambição!".
Lamarr, que no breu de seu porão tortura e mata pessoas e ambiciona ser primeiro-ministro, tem a lábia para aparentar facetas menos perversas, o que levou Bender a intitular seu texto como Queridíssimo Canalha. Atualmente, exaltando práticas como as de Lamarr e com semelhante ambição pelo poder, há Bolsonaro. Este, entretanto, em eventual qualificação, certamente perderia o "queridíssimo", restando-lhe apenas o outro adjetivo.
Uma vida dedicada à escrita e à docência resulta em uma afirmação segura: Ivo Bender foi o dramaturgo mais importante que o Rio Grande do Sul produziu: é autor de 36 textos para teatro, traduções de obras de Racine, Pinter e Dickinson, e teórico que tematizou o trágico e o cômico em seus escritos. Aos dois volumes de contos publicados, após 2010, será acrescentado em breve um novo, Rosa Noturna.
Os textos teatrais, cuja produção findou em 2004 com Diálogos Espectrais, são exemplos da sofisticada carpintaria dramática e relevância nos temas escolhidos. Versátil em suas tramas, escreveu textos inspirados pelo teatro do absurdo europeu (a trilogia cômica Pequeno Oratório Lúdico de Aspérula), verdadeiras tragédias gaúchas (a Trilogia Perversa, que adapta mitos gregos para regiões de colonização alemã no Interior) e textos para crianças internacionalmente reconhecidos (a trilogia d’O Macaco e a Velha, produzida em EUA e Alemanha).
Um homem que viveu com e pela arte, que deixa todos nós, alunos, amigos, colegas de teatro e admiradores de sua obra, satisfeitos pelo encontro de vida e saudosos de seu bom humor, de sua coerência como homem e de sua contribuição para a arte. Evoé, Ivo!