A Cia. Ronald Radde está vivendo um momento delicado. Instalado no Teatro do Museu do Trabalho, o grupo viu parte de seus equipamentos de som e luz, bem como seus materiais cênicos, mergulhados na água da enchente. Até o palco foi destruído na tragédia. Por enquanto, não há previsão de retorno, visto que o prédio, localizado na Rua dos Andradas, 230, no Centro Histórico de Porto Alegre, apresenta rachaduras, entre outros problemas.
Além das perdas materiais, houve outras que, de acordo com os administradores da companhia, são imensuráveis, incluindo uma parcela importante de documentos e fotos históricas da época do Teatro Novo, grupo criado pelo diretor e dramaturgo Ronald Radde (1944-2016) que deu origem à atual companhia. O próximo ato é o da reconstrução.
Uma ponta de esperança surgiu com o projeto Deu pra ti Baixo Astral, que abrigará 10 espetáculos, entre eles três da Cia. Ronald Radde: Peter Pan, Aladdin e Tributo Cazuza: Vida. Estas montagens, de acordo com um dos diretores da companhia, Vinícius Mello, são um alento para a equipe de 25 pessoas que ficou impedida de trabalhar por mais de um mês.
— A Deu pra ti Baixo Astral é uma iniciativa maravilhosa para que a gente possa dar uma respirada, ter uma moral renovada para realizar os espetáculos que a gente tem montado. Também é importante para tentar fazer alguma receita para pagar as contas que já existiam. É um novo caminho para a gente poder ter teatro acontecendo — reflete Mello.
A Cia. Ronald Radde tem, em seu calendário, uma grade de programação voltada para as escolas, com peças que conversam com crianças e jovens. Entretanto, com a situação do Estado e de sua própria sede — que ainda tem muita sujeira acumulada e problemas de infraestrutura —, não é possível retomar as suas atividades junto aos jovens.
— E ainda tem o prejuízo emocional. A gente está tendo que viver um dia de cada vez, cuidando também para não criar expectativas. Está todo mundo tão fragilizado ainda, temos receio de nos mobilizar e gerar mais uma ferida, porque a pandemia já nos deixou muito calejados — conta Mello.
De acordo com o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões no Estado do Rio Grande do Sul (Sated-RS), mais de 1,5 mil artistas e técnicos das artes cênicas — que abrangem teatro, circo, dança e ópera, entre outros — foram afetados pela enchente no Rio Grande do Sul.
Ói Nóis Aqui Traveiz procuram outra sede
O Centro Cultural Terreira da Tribo, casa do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz, localizado desde 2009 na Rua Santos Dumont, 1.186, no bairro São Geraldo, ficou com 1m50cm de água, o que causou graves perdas para a companhia teatral. Instrumentos musicais, adereços cênicos, figurinos, máquinas de costura, máquina de lavar e secar, equipamentos de som, luz e vídeo, cenários e adereços foram inundados.
Ainda não foi possível calcular o tamanho do prejuízo. Entretanto, mais do que bens materiais, parte do acervo histórico da Tribo estava na Terreira para ser organizada para o Museu da Cena — Ói Nóis Aqui Traveiz, que foi planejado pela equipe como um passo importante para a memória do teatro brasileiro.
— Não é um material que se repõe quando se consegue dinheiro, como um instrumento musical. A memória não se compra — salienta a atuadora Tânia Farias, complementando que, entre 28 e 30 de junho, o grupo vai apresentar o espetáculo Ubu Tropical em Belo Horizonte, com instrumentos emprestados.
Tentando salvar o que é possível com mutirões de limpeza, os atuadores — como eles se chamam — estão contando com o apoio da comunidade neste processo de reestruturação, enquanto conseguem emplacar alguns espetáculos em festivais, como Manifesto de uma Mulher de Teatro, que fez parte da iniciativa Recomeça, do Sesc, no começo do mês.
— Precisamos recuperar as condições para comprar o nosso material de trabalho e poder fazer os nossos espetáculos. Arcamos com um aluguel que não pagamos neste mês porque houve um acordo com a imobiliária e o proprietário. Mas, daqui a pouco, vamos ter que pagar, e o custo é de R$ 16 mil. Só que não temos mais condições de manter esse aluguel. Precisamos de outro espaço para transladar o material e, assim, poder entregar os prédios que ocupamos — revela Tânia, salientando a importância de reestabelecer as condições de trabalho, em especial a questão da escola de teatro do grupo.
Em 2022, foi anunciado que a Terreira da Tribo teria uma nova sede cedida pela prefeitura de Porto Alegre no 4º Distrito. Segundo Tânia, ainda precisa de uma grande reforma, mas a burocracia é grande. Deve levar tempo para que o grupo se mude para este local, diz Tânia:
— Precisamos de uma solução imediata neste momento.
Cia. Stravaganza terá programação intensa
O Estúdio Stravaganza, que fica na Rua Doutor Olinto de Oliveira, 68, no bairro Santana, é a casa da Cia. Stravaganza. Apesar de não ter sido atingido diretamente pela enchente, o espaço ficou impossibilitado de continuar com suas atividades por mais de um mês, adiando estreias, ensaios e oficinas. A retomada ocorre no dia 29 com a Feijoada Stravagante, uma ação em prol dos profissionais das artes cênicas afetados pela enchente.
O evento, que ocorre na sede do grupo teatral, das 12h às 16h, contará com cardápios tradicional e vegano, bem como apresentações artísticas de Gloria Crystal, Lauro Ramalho (Laurita Leão), Everton Barreto (Lady Cibele) e Janaina Pellizzon como Madame Zara.
— Me preocupo com os artistas que pararam de trabalhar durante esse tempo, e muitos vivem só do teatro. Isso é grave, porque você investe numa produção e pensa: "Agora, essa peça entra em cartaz e vamos recuperar o que investimos". Se isso não acontece, é bem complicado — explica a diretora da Stravaganza, Adriane Mottola.
No espaço também ocorrem oficinas de teatro. Se antes da enchente havia 20 alunos por turma, agora o número caiu pela metade. Isso mostra como a cultura sai enfraquecida de momentos de tragédia, sendo um dos primeiros investimentos cortados, segundo a coordenadora do grupo. Mesmo assim, a retomada está planejada com a ideia de levar arte para as pessoas que sofreram com o drama nos últimos tempos.
A companhia está com o mês de julho repleto de atividades, com três montagens dirigidas por Adriane Mottola. A ideia é movimentar cerca de 35 artistas e técnicos que ficaram sem trabalho durante a pausa. No dia 5, estreia o espetáculo Kassandra, com atuação da atriz e bailarina trans Estrela Dinn. A peça também será apresentada nos dias 6, 7, 12, 19 e 26 de julho, sempre às 20h.
Em 10 de julho, a companhia lança uma experiência cênico-gastronômica. O público será convidado a assistir ao espetáculo Mritak — A Comédia da Vida e participar de um jantar indiano em três tempos, com entrada, prato principal e sobremesa. Com horário fixo às 20h, a peça ainda será encenada nos dias 17, 24 e 31 de julho.
Já em 13, 20 e 27 do próximo mês, bem como em 3 de agosto, sempre aos sábados, às 20h, haverá o retorno da peça A Mulher que Queria Ser Micheliny Verunschk, com texto de Wilson Freire. Os ingressos para todos os espetáculos poderão ser adquiridos na plataforma Sympla.
— A arte cura. E não só o teatro. Quando temos o cuidado de ler um livro, ir ao cinema, ver uma exposição, são momentos férteis na vida. Então, quando a pessoa se aproxima da arte, seja artista ou não, é quase um bálsamo. A pessoa começa a pensar diferente, abre horizontes, cria caminhos — reflete Adriane.