Em um vídeo popular nas redes sociais, a estrela norte-americana Elizabeth Olsen, durante uma entrevista, surpreendentemente aparece falando em português. Mas, não, a atriz não domina a língua. E não estava sendo dublada. O resultado, que é impressionante, foi obtido graças à inteligência artificial (IA). Entretanto, o que é um entretenimento e motivo de empolgação na internet está gerando dor de cabeça para os profissionais da voz no Brasil.
Tal preocupação surge por conta do potencial da máquina, que se mostrou capaz de traduzir o que é dito pelo artista originalmente, mantendo o timbre vocal e, ainda, sincronizando a sua boca com as frases. Ou seja, será possível ver Tom Cruise falando em português, com a sua voz, em um novo Missão: Impossível, por exemplo. Mas qual é a consequência de tal movimento? O fim da relação humano-humano, podendo causar a extinção da classe trabalhadora dos dubladores.
Além disso, existe o temor de que a máquina determine o fim da adaptação feita pelos estúdios de dublagem, que realizam uma contextualização, explorando a bagagem cultural das pessoas. Por exemplo, no clássico episódio Vamos ao Cinema? (1979), de Chaves (1973-1980), quando o protagonista do seriado diz "era melhor ter ido ver o filme do Pelé", na versão original, ele diz "era melhor ter ido ver El Chanfle".
No Brasil, tal frase não faria sentido, uma vez que o personagem cita um filme de Roberto Gómez Bolaños, o criador do Chaves, que fez muito sucesso no México e nunca foi lançado nos cinemas nacionais. Os responsáveis pela dublagem tiveram o cuidado de adaptar a frase para um contexto que os brasileiros entendessem, mas sem retirar a essência da obra original.
Para Luiz Feier Motta, dublador, caxiense e voz nacional de Sylvester Stallone, a escalada da inteligência artificial é algo a ser temido — uma espécie de "ficção se tornando realidade":
— Será O Exterminador do Futuro e, por isso, deve haver uma regulamentação muito séria. A inteligência artificial tem que ser o coadjuvante, jamais o protagonista. Ela tem que ajudar no sincronismo, na limpeza do áudio, como uma ferramenta auxiliar da dublagem, jamais substituindo a voz do dublador. Até porque passar emoção via inteligência artificial vai demorar. A inteligência artificial é aquela coisa linear, jogada fora.
Os dubladores organizados
Essa regulamentação que está nas orações de Motta é pelo que trabalha o movimento Dublagem Viva. A iniciativa, puxada por um coletivo de dubladores, tem como seu principal pedido: proteger os artistas de voz brasileiros, através da aprovação de alguns Projetos de Lei (PL) que estão em fase de tramitação ou, até mesmo, conseguir um decreto presidencial preventivo, que determine o que pode ou não ser feito por ferramentas de IA.
O mais importante dos PLs é o 2338/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco e que tem relatoria do senador Eduardo Gomes. O documento em tramitação no Congresso visa assegurar os direitos dos artistas e criadores com o avanço da IA, especialmente a generativa — que pode criar novos textos, imagens, vídeos, áudios ou códigos. De acordo com Angela Couto, uma das porta-vozes do Dublagem Viva, o movimento nasceu no final do último ano, após os artistas perceberem que a legislação de direitos autorais no Brasil abre muitos precedentes para o avanço de tecnologias, como a IA.
— A inteligência artificial estaria livre para ganhar um espaço que não está regulamentado e correria esse risco que o colega (Feier Motta) coloca, de extermínio da profissão — explica Angela. — E isso ficou muito mais latente no final do ano, quando o SAG-AFTRA (sindicato dos atores dos EUA) fechou um acordo em que os atores podem dar o consentimento para que suas vozes sejam vertidas para outros idiomas. Esse entendimento sinalizou o grau de risco que temos, no mundo inteiro, da substituição da dublagem artística e artesanal pela IA.
Angela explica que o movimento busca resguardar, também, as vozes dos dubladores, uma vez que são essenciais para a inteligência artificial poder traduzir filmes, séries e games. De acordo com a profissional, a IA busca na imensidão de conteúdos da internet trabalhos em que possa se basear para criar as versões traduzidas das vozes dos artistas. Ou seja, a voz que o espectador escuta até pode ter o timbre igual ao do artista original, mas as entonações nas palavras, por exemplo, serão copiadas de conteúdos existentes no ambiente digital.
— Quer usar a minha voz? Pode, mas tem que pagar por ela. Eu não vou te doar a minha voz, permitir que a usem de graça, porque isso vai tirar a minha profissão — diz Miriam Ficher, dubladora e que eternizou a sua voz no Brasil interpretando personagens de Drew Barrymore, Nicole Kidman e Jodie Foster.
É dentro deste cenário que o Dublagem Viva está atuando, juntamente com entidades internacionais, como a United Voice Artists (UVA), para que o mercado da dublagem possa ser devidamente regulamentado e que, caso a IA utilize as vozes de dubladores para essa "tradução", que os artistas sejam devidamente remunerados. Mas como conseguir identificar se determinada voz está sendo utilizada para compor uma dublagem mecânica?
A porta-voz do Dublagem Viva conta que um sistema está sendo desenvolvido dentro da National Association of Voice Actors (Nava), que faz parte da UVA, para que haja um rastreamento de vozes. Assim, busca-se impedir que a IA simplesmente se aposse deste material e o utilize para criar a tradução, baseada no timbre de um artista, sem pagar os direitos autorais e dar os devidos créditos. É um cenário complexo e que, segundo os dubladores, exige uma vigilância constante, visto que é movido exclusivamente por agentes econômicos com o único objetivo de aumentar seus lucros.
— A crise de 1929, o que foi? Se produzia, se produzia, mas não tinha para quem vender, porque não tinha renda. Quebrou a bolsa, aquela depressão completa. Nós precisamos ter consumidores. Precisamos ter trabalho e renda. Produzia-se muito e não se consumia nada. Se não tivermos renda, é a falência. Quebra tudo. Se a inteligência artificial entrar para eliminar postos de trabalho, é o começo do fim — defende Feier Motta.
Vale ressaltar a grande procura dos brasileiros por filmes traduzidos. A rede GNC Cinemas, por exemplo, calcula que, em suas salas, os filmes dublados e os nacionais representam 70% do total da programação. Ou seja, a dublagem é uma preferência nacional, o que ressalta a importância desse mercado.
As vantagens da IA
Além da economia para os produtores de conteúdo audiovisual, uma vez que a máquina faz o trabalho por um custo muito menor, ainda existem outras questões que fazem com que a IA se torne uma opção cada vez mais próxima. Uma delas é a velocidade de tradução. Segundo o professor e pesquisador de Comunicação Digital da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), André Pase, o avanço dessa tecnologia é "inevitável", apesar de lamentar as consequências que virão junto.
— O principal benefício é o de um produto que é mais universal e com uma produção que é muito mais rápida. É interessante porque, por exemplo, alguma coisa que é produzida no Rio Grande do Sul pode, de uma forma muito fácil, ficar acessível em outras linguagens. Mas qual é a qualidade? E o serviço do humano que fazia isso? Eu fico preocupado não só com essa questão da substituição dos empregos, mas de um arrocho, porque se está competindo com a máquina que faz, sei lá, por centavos — explica Pase.
Para o professor, esse tipo de avanço tecnológico só poderia ser freado em um futuro próximo caso houvesse um movimento popular que brigasse pela tradução tradicional, mas ele próprio acredita que seja difícil uma mobilização para estancar as grandes indústrias que querem lucrar. Se depender do Dublagem Viva, no entanto, o barulho vai ser grande. Apenas no Instagram, o movimento já tem 170 mil seguidores, que querem ouvir as vozes dos profissionais da voz brasileiros e não um produto criado a partir de IA.
— Qual vai ser a lembrança de uma pessoa daqui há 30, 40 anos? "Ah, eu gostava muito daquela voz, a B-55". Eu tenho muito medo da IA, porque eu acho que ela, se dominar, vai estagnar um trabalho. Se você pegar um filme dublado há 30 anos, comigo mesmo, eu dublava de um jeito e, hoje em dia, eu dublo de outro. Você vai mudando e evoluindo, assim como os atores vão mudando o seu estilo de interpretação. E a gente vai acompanhando. Uma máquina, será que vai evoluir também? — questiona Miriam Ficher.
O caso da série "Rio-Paris"
Enquanto os dubladores se organizam para tentar frear o avanço da IA em seu ofício, a tecnologia vai ganhando espaço. Tanto é que já foi utilizada por grande empresa do país. A plataforma de streaming Globoplay surpreendeu a classe ao empregar a tecnologia para fazer um voice over — técnica de tradução em que, diferentemente da dublagem, as vozes dos atores são gravadas sobre a faixa de áudio original, que pode ser ouvida em segundo plano.
Tal técnica, geralmente, é utilizada para produções documentais, que é o caso de Rio-Paris: A Tragédia do Voo 447, lançada no último 31 de maio e que reúne depoimentos de familiares de vítimas da queda do avião da Air France, em 2009. A aeronave saiu do Rio de Janeiro com destino a Paris, na França, mas caiu no mar. Todas as 228 pessoas que estavam a bordo morreram. A série, que tem direção de Rafael Norton, emite um comunicado sobre o uso da IA antes de cada episódio. A mensagem é:
"A versão em português das entrevistas concedidas em língua estrangeira para este documentário foi feita a partir da voz dos próprios entrevistados, como uso de inteligência artificial, respeitando-se todos os direitos e leis aplicáveis. O conteúdo das dublagens é fiel às entrevistas originais. Os entrevistados que não aceitaram a dublagem foram legendados."
— A gente ficou bem assustado e um pouco incomodado porque a Globosat é uma das distribuidoras de conteúdo que assinaram uma cláusula de proteção para não fazer uso irregular das vozes. E, principalmente, por ser uma empresa grande, nacional, que dá esse start em desmerecer o trabalho da dublagem brasileira. Embora a gente já soubesse que existia intenção de fazer algum tipo de uso, não esperávamos que fosse tão imediato, até porque não existe regulamentação. Ou seja, qualquer trabalho que é feito com IA está meio irregular, desregrado — afirma Angela Couto.
A representante do Dublagem Viva ainda explica que, mesmo que a voz sintética utilizada na série Rio-Paris utilize a base da voz do entrevistado, a IA busca por nuances de interpretação da língua na qual ela vai ser gerada. Assim, Angela ressalta que a ferramenta tem que buscar este tipo de composição em dados biométricos disponíveis na internet, o que acarretaria em violação de direito autoral. Além disso, o movimento calcula que cerca de 50 profissionais perderam trabalho com a utilização da IA na série.
O Globoplay foi procurado pela reportagem e emitiu, por meio de sua assessoria de imprensa, a seguinte nota sobre o caso da série Rio-Paris:
"A Globo sempre esteve na vanguarda da inovação tecnológica e não tem sido diferente com a adoção da inteligência artificial. Antes mesmo de as ferramentas disponíveis estarem sendo aplicadas pelo mercado, realizamos testes e desenvolvemos soluções internas que estão em experimentação e uso, especialmente em apoio aos talentos, aos processos produtivos e à acessibilidade. Assim como em nossas demais atividades, sempre de forma ética, com transparência, buscando a qualidade e respeitando a questão dos direitos. Foi o que aconteceu, por exemplo, em Rio-Paris: cumprimos o compromisso assumido com algumas empresas de dublagem de não utilizar as vozes de seus dubladores através de processos de IA ou para o treinamento de IA."