— Ninguém vai bater tão duro como a vida, mas não se trata de bater duro, se trata de quanto você aguenta apanhar e seguir em frente. O quanto você é capaz de aguentar e continuar tentando. É assim que se consegue vencer — diz, em um determinado momento, o personagem Rocky Balboa, interpretado por Sylvester Stallone, no sexto filme da franquia do boxeador, lançado em 2006.
A emocionante sequência da qual o trecho foi retirado viralizou na internet e, somando apenas três canais que a postaram no YouTube, são quase 10 milhões de visualizações. Esses vídeos em questão, porém, são dublados e quem se ouve falando, na verdade, é Luiz Feier Motta, responsável pela versão brasileira de Stallone há mais de 30 anos. E o momento inspirador, que exigiu uma interpretação muito sensível por parte do ator norte-americano, também foi um desafio para o seu dublador brasileiro, que classifica essa como a sua performance mais difícil.
Para conseguir entregar uma dublagem à altura da dramaticidade exigida, Motta conta que, ao chegar naquele momento do filme, rodou a cena e apenas a ouviu, em silêncio. Depois, ensaiou diversas vezes até que, após se sentir satisfeito com a sua interpretação, decidiu gravar. E o resultado é um fenômeno até hoje. Marcante, mas a sua carreira vai muito além deste popular episódio.
Completando em 2021 quatro décadas de profissão, Motta, que é gaúcho de Caxias do Sul, tem um longo currículo, e a sua voz é facilmente reconhecida até por aqueles que preferem produções na língua original. Afinal, além de dublador de filmes e séries, ele é narrador oficial dos trailers que passam nos cinemas e emprestou o seu talento para inúmeras campanhas comerciais exibidas na televisão.
— A dublagem está aí para facilitar a acessibilidade a filmes e séries de pessoas que têm dificuldade de leitura, problemas de visão ou, simplesmente, não querem perder os detalhes das cenas enquanto leem. É, também, um instrumento importantíssimo de inclusão social em um país com baixa escolaridade e altas taxas de analfabetismo — explica o artista, que completou 60 anos em 12 de agosto.
A trajetória até o microfone
Na infância, Motta já demonstrava interesse por atuação. Depois de estrelar peças na escola, entrou para um grupo de teatro amador em Caxias do Sul, conquistando protagonismo logo em sua chegada. Ali, na década de 1970, desenvolveu o seu lado artístico fazendo apresentações aos finais de semana pelas cidades da região e, foi neste período, em que também bateu o martelo: interpretar era o queria fazer para viver.
Na mesma época, ao folhear a extinta revista Amiga, viu o anúncio de um curso de formação de atores criado pelo já falecido ator Jaime Barcelos no Rio de Janeiro. Como a capacitação era cara, Motta decidiu participar de um concurso oferecido pela escola, no qual, quem vencesse, ganharia uma bolsa integral para estudar. E, após viajar para se apresentar em solo carioca, em fevereiro de 1981, conquistou o primeiro lugar.
Voltou, então, para Caxias do Sul, pegou a mala, a cuia, uns pilas da rescisão do antigo trabalho e partiu para perto do Cristo Redentor. No entanto, mesmo sem os custos do curso, viver no Rio de Janeiro não era fácil e, logo, o dinheiro acabou e ele se viu em uma situação financeira complicada. Foi então que o seu professor na época, Daniel Barcelos, filho do criador do curso, vendo as necessidades pelas quais o dedicado aluno estava passando, o incentivou a ir para o mundo da dublagem.
Convencido e precisando de renda, Motta foi até a extinta empresa Telecine, apresentou-se, fez um teste e, já no outro dia, começou a fazer os seus primeiros trabalhos em pequenos papéis em filmes de faroeste, sendo a voz do "cara que morria" ou do "cara que caía da sacada do saloon", dando gritos, grunhidos ou, quando tinha mais destaque, soltava um "oi, tudo bem?". Apesar da oportunidade, ainda estava longe de conseguir se manter com o dinheiro vindo dela. Assim, morando ao lado da Rádio Globo, conseguiu um emprego na emissora no período da noite com o qual conseguia pagar as contas. Durante o dia, sobrava tempo para o jovem acompanhar as gravações no estúdio de dublagem e, eventualmente, conseguir uma falinha.
— Eu demorei quase quatro anos para aprender a dublar, o tempo de uma faculdade. Naquela época, não tinha cursinho, você tinha que ir ao estúdio e assistir, assistir e assistir até entender como funcionava. E, eventualmente, um diretor ou outro te dava uma chance fazendo "obas e olás", que são coisas bem curtinhas, como um cara chamando um táxi na rua — relembra Motta.
Soltando a voz
Em meados dos anos 1980, depois de um intenso período de estudos, começaram a aparecer os papéis de destaque para Motta. E ele lembra com carinho de sua experiência ao encarar o seu primeiro protagonista: Tom Cody, personagem de Michael Paré em Ruas de Fogo (1984).
— Depois que você faz o seu primeiro papel principal, porteira aberta: passa boi, passa boiada. Aí, comecei a fazer um monte de papéis bons — celebra o dublador.
Mesmo na boa fase, no final da década oitentista, o dublador diz que cansou do Rio de Janeiro e retornou para Caxias do Sul, onde trabalhou em uma emissora de rádio. Passados três anos, também cansou e decidiu voltar para o sudeste brasileiro. Lá outra vez, deslanchou em diversos trabalhos, seja em dublagem ou em locução. E a lista de locais em que a sua voz podia ser ouvida é extensa: chamadas da Fundação Roberto Marinho, do Canal Futura, do Universal Channel, do canal GNT e, até mesmo, apresentação de um telejornal ele encarou por três meses.
— E me dei bem nessas atividades todas, mas a minha cachaça, digamos assim, é a dublagem — brinca.
Nesta mesma época, em 1992, quando retorna ao Rio de Janeiro, o então dublador de Sylvester Stallone, André Filho, tem problemas com o estúdio Herbert Richers e pede demissão. Com isso, o ator não tinha dublador para o filme Risco Total (1993). Eis que Motta, ao chegar "no momento certo e na hora certa" ao estúdio, fez um teste e foi escolhido para dar voz à estrela hollywoodiana.
De lá para cá, dublou quase tudo do artista norte-americano. Inclusive, em 2021, na versão original de O Esquadrão Suicida, Stallone dá voz ao Tubarão-Rei e, consequentemente, no Brasil, Motta acabou dublando o anti-herói no filme da DC Comics.
— Foi um trabalho curtinho, com poucas falas, mas está fazendo um sucesso enorme. O público comprou o Nanaue, que é o Tubarão-Rei, e a repercussão está sendo divertidíssima — comenta.
A profissão
Apesar de sua forte conexão com Stallone, Motta já emprestou a sua voz para diversos outros atores e personagens, sejam em live-action ou desenhados. Lembra da animação Cavalo de Fogo? Pois é, era ele quem dublava o equino falante. Também foi responsável pela versão brasileira de Wolverine de X-Men: Evolution, que acompanhava o almoço da criançada alguns anos atrás. A lista é longa.
O ator também diz que nutre um carinho especial por ser a versão brasileira de Pierce Brosnan nos filmes da franquia 007, assim como foi Morgan Freeman em duas produções e até o astro do basquete Michael Jordan em Space Jam: O Jogo do Século (1996). Atualmente, o seu queridinho é um personagem do qual muitos têm aversão: John Kreese, o vilão vivido por Martin Kove na série Cobra Kai (2018 - atualmente)
E, mesmo tendo um grande orgulho do que faz, ele destaca que a profissão não é fácil e realizar um bom trabalho requer dedicação e, principalmente, paciência para ouvir o que está fazendo. Para Motta, quem nunca dublou e já chega pegando grandes papéis, como é o caso dos influenciadores que são convidados por estúdios, dificilmente vai conseguir entregar um bom resultado justamente por não terem a vivência.
— Não é para qualquer um. É preciso entender o que se está fazendo, ter consciência do trabalho, que necessita que você seja quase um imitador, mas, também, que mantenha as suas características — destaca.
Segundo Motta, hoje, com a chegada do streaming, que traz produções de diversos lugares do mundo para o país, a "situação está muito boa para quem sabe dublar". Em meados dos anos 1990, o mercado sequer conseguia absorver a quantidade de novos profissionais que eram formados nos cursinhos recém-lançados da área. Ele reforça que, agora, trabalho não falta — o que faltar é tempo para dar conta de tudo.
— A dublagem tem um ritmo industrial, e o dublador ganha por hora. E, dentro dessa hora, é preciso dublar 20 minutos de conteúdo. Isso exige um alto nível profissional e anos de estudo para fazer um trabalho bem feito — explica.
Por isso, Motta decidiu trabalhar diretamente de Caxias do Sul, em um estúdio que montou em sua casa, o que lhe permite ficar próximo da família e de sua terra, mas sem se afastar de sua profissão.
— Sou um apaixonado pelo o que eu faço e, quando fui convencido pelas minhas filhas a entrar nas redes sociais, descobri como sou querido. Aquele menino de Caxias do Sul jamais imaginaria que teria fã-clubes pelo Brasil e seria chamado de "lenda". É muito gratificante esse carinho — diz com a sua voz marcante.