Universos cinematográficos compartilhados são, atualmente, uma sensação em Hollywood. Aconteceu com a Marvel, com a DC Comics, com os monstros Godzilla e King Kong, e por aí vai. Todos, no entanto, compõem grandes franquias do cinema que expandem as suas histórias para várias produções, interligando-as e formando algo maior. No Rio Grande do Sul, um movimento parecido também está acontecendo: é o "Bombachaverso".
Tudo começou quando os irmãos Guilherme e Thiago Suman, ambos com vasta história no nativismo, estudiosos da área e compositores premiados em festivais musicais como a Califórnia da Canção Nativa, decidiram adaptar para as telas a obra máxima do pajador Jayme Caetano Braun, Bochincho. O curta-metragem homônimo foi feito e lançado no ano passado, com roteiro de ambos e direção de Guilherme.
Com estreia no Festival de Cinema de Gramado de 2020, o filme fez carreira em diversos outros festivais pelo Brasil e também fora dele, viajando dos Estados Unidos ao Japão. Assim, por meio do audiovisual, a cultura do gaúcho foi apresentada em lugares em que não se consegue chegar montado no lombo de pingo nenhum.
Agora, chegou a vez de aumentar o universo cinematográfico no qual a bombacha é o traje principal, e não armaduras ou capas. Mais uma vez revisitando obras marcantes para o nativismo, os irmãos Suman decidiram transformar a música de Mauro Ferreira e Luiz Carlos Borges Florêncio Guerra e seu Cavalo em curta-metragem. E a previsão de estreia é ainda para 2021.
O diretor revela que os curtas estão sendo pensados como episódios para que, no futuro, formem uma série. O que falta para que o projeto saia do papel é o suporte de algum canal ou de um serviço streaming, para agregar mais capítulos. A estrutura, de acordo com o cineasta, já está pronta.
— Esse projeto vai restituir o "Bombachaverso", porque os personagens que nós criamos para compor Florêncio Guerra e Bochincho – O Filme estão no mesmo espaço-tempo. E eles se repetem com os mesmos atores, inclusive, levando cicatrizes de um filme para o outro — explica Guilherme.
Desconstrução
Jovens, os irmãos Suman, ambos com 31 anos, atuam dentro do universo nativista há mais de 15 anos. Estão, assim, conectados com as tradições do Estado, mas também com pautas atuais, que buscam mais representatividade. Com seus filmes, decidiram fazer uma releitura da figura do gaúcho e do ambiente que o cerca. Dessa forma, tanto em Bochincho quanto em Florêncio Guerra e seu Cavalo, a ideia é promover a quebra de pré-conceitos, estereótipos e até mesmo fazer uma autocrítica.
— O gaúcho, historicamente, se sabota pelo hermetismo cultural. Ele criou um nacionalismo local, esse bairrismo, que mais atrapalha do que ajuda. A gente está desacreditando, dentro da nossa teoria, o mito do centauro, oriundo do próprio nativismo e do tradicionalismo, que criaram esse gaúcho macho — destaca.
Para Guilherme, o seu trabalho cinematográfico desconstrói estereótipos, mas sem ferir a verdade histórica e sem representar um gaúcho distante antropologicamente. Segundo o cineasta, a figura gauchesca segue presente, falando, pensando e agindo como tal, mas, agora, aproximando-se de um herói do cinema, com suas vacilações e abrindo mão de sua "macheza heroica, farroupilha, inquebrantável e indubitável".
Em Bochincho, o diretor destaca que a posição da mulher gaúcha é reafirmada, sem o uso de expressões que a objetifique. Guilherme ainda enfatiza que a sua obra busca ser diversa etnicamente, com atores e atrizes de diversas origens em papéis de destaque, mostrando a variedade cultural do Estado. Inclusive, mesmo que as suas obras retratem uma época em que a escravidão ainda estava presente no Brasil, ele faz questão de posicionar atores negros como livres.
— Isso é inclusão social. O Guilherme fez uma releitura da obra máxima do Jayme e nos coloca diante de uma realidade que poderia ser vista na época em que Bochincho foi escrito. No poema, só tinha o personagem do mulato que tocava gaita. E ficava por ali — conta Sirmar Antunes, que estrela Bochincho vivendo um personagem negro e livre.
De acordo com o ator, existia nas obras do passado uma invisibilidade que, hoje, está se tornando obsoleta, uma vez que a maioria da população brasileira é negra, precisando e querendo se ver nos meios de comunicação.
— E não apenas sendo o lado ruim, o bandido. É muito pelo contrário. Nós somos a coisa boa que aconteceu neste país, somos os construtores da nação. E temos que ser vistos desta forma. Eu, que faço cinema cinema há muito tempo, me sinto incluído quando não faço um personagem que seja estereotipado — reforça Antunes, que também destaca Tabajara Ruas como um cineasta gaúcho que pratica a inclusão em suas obras de época.
Com responsabilidade
Mesmo que os filmes do "Bombachaverso" se adaptem aos tempos atuais, o respeito pelas obras originais é o fio condutor. Para Guilherme, tanto a música quanto o poema que inspiraram os seus curtas fazem parte do imaginário gaúcho. Ou seja, trabalhar com esses materiais, de acordo com ele, mexe diretamente com o sentimento das pessoas.
— A gente está lidando com o que é mais folclórico e quase litúrgico dentro do nativismo, que é o Bochincho e o Florêncio Guerra. As pessoas têm um carinho muito grande. Então, a responsabilidade é enorme — enfatiza o cineasta, que destaca que recebeu benção tanto da família Braun quanto de Mauro Ferreira e Luiz Carlos Borges para adaptar as obras.
Para Luiz Marenco, cantor nativista e estrela de Bochincho, a experiência de ter participado do filme foi "gratificante", ainda mais por ter contracenado com artistas premiados. Para ele, a equipe do curta soube retratar de maneira "impecável" o poema de Jayme Caetano Braun, o qual ele diz que é patrimônio sagrado do Estado, mas também muito apreciado fora dele.
— O Guilherme pinta aquele retrato que o Jayme pintou e o traz para a tela de uma maneira tão sincera, cativante, com muito respeito e dignidade. Que bom que, cada vez mais, a nossa cultura está sendo levada não só para o Rio Grande do Sul, mas para o mundo. Esses guris possuem uma visão autêntica e dos tempos em que estamos vivendo. É maravilhoso o resultado disso — relata Marenco.
Agora, a expectativa de Guilherme é que Florêncio Guerra e seu Cavalo consiga ter os mesmos fôlego e impacto que Bochincho teve. E o começo da trajetória já é promissor: festivais internacionais que ainda estão sob embargo já garantiram a estreia do filme. E, para conseguir trilhar esses caminhos de sucesso, o cineasta faz questão de agradecer, além dos apoiadores dos projetos, à sua equipe criativa, que conta com nomes como Carol Scortgagna no figurino, Duca Duarte no som, Juliano Dutra na fotografia e Alfredo Barros na montagem.
Foi com esse grupo que Bochincho, que atualmente está na programação do Canal Brasil, chegou em um dos festivais que mais orgulham Guilherme: o 10º Almería Western Film Festival, na Espanha. Lá, o seu curta foi representante do Brasil ao lado do aclamado Bacurau.
— Ver que o nosso filme levou para outros países a representação da bombacha é a legitimação do que a gente estava esperando. Só que em uma escala muito maior. É recompensador ver que estamos resgatando obras importantes para o nosso imaginário coletivo e cultural e as reabilitando para uma linguagem mais atual, tornando-as mais acessíveis para as novas gerações. E, com isso, não estamos "desgauchando" o gaúcho, mas mostrando vários jeitos de ser gaúcho — finaliza Guilherme.