Em busca do frescor que tanto almejam os grandes artistas e atravessada por Virginia Woolf, com 35 anos de carreira, Cláudia Abreu se despe dos trabalhos convencionais e se coloca absoluta perante o público. Em uma aposta alta, a atriz apresenta seu primeiro monólogo em Virginia, uma peça que também inaugura sua estreia como autora teatral. O espetáculo, que está em turnê pelo Rio Grande do Sul, já passou por Santa Cruz do Sul e Santa Maria e chega a Porto Alegre para sessões no Theatro São Pedro neste sábado (8) e domingo (9) (confira detalhes ao final do texto).
Na peça, dirigida por Amir Haddad, Cláudia mostra seu próprio recorte sobre a vida e a existência da escritora britânica Virginia Woolf, uma das maiores do século 20, com uma trajetória marcada por tragédias pessoais e uma linha tênue entre a lucidez e a loucura. O espetáculo, portanto, traz temas que se mantêm atuais, como a loucura, o que é ser normal, as dificuldades do processo criativo, bem como a condição das mulheres, marcada por opressões e abusos.
Para a artista, propor-se a fazer isso em seu primeiro texto teatral e na primeira vez sozinha é mostrar que está inteira no palco, não apenas cumprindo mais um trabalho, mas apresentando de maneira sincera algo que criou. A peça, portanto, expõe sua voz e o modo como quer se posicionar em cena, buscando estabelecer uma outra troca com o público — mais cúmplice, pessoal e autoral.
— Nunca fui tão autoral, nunca fui tão dona do meu ofício. Na verdade, de estar ali, interpretando as palavras que escrevi, com aquele assunto que me importa, que quero dizer, a escritora que me interessa — declara Cláudia.
O espetáculo surgiu de um interesse da dramaturga estreante em escrever sobre fluxos de consciência, técnica literária na qual se evidencia o complexo processo de pensamento de uma personagem, marcado pela não linearidade e rupturas textuais. A atriz já havia interpretado uma das obras de Virginia em 1989, em Orlando, montagem assinada por Bia Lessa. Contudo, o contato com a escritora só foi retomado em 2016, através da indicação de uma professora de literatura. Instantaneamente, Cláudia foi atraída tanto pela obra quanto pela vida de Virginia. De lá para cá, fez um mergulho no universo da autora: leu todos os livros, ensaios, contos, diários, biografias e memórias.
Escritora que desempenhou um importante papel na sociedade literária de Londres no período entre guerras, Adeline Virginia Woolf (1882-1941) foi uma das precursoras do uso do fluxo de consciência, que marcou seu estilo. Foi também membro do Grupo de Bloomsbury, círculo de intelectuais. Virginia sofria de depressão e ouvia vozes, o que a levou a cometer suicídio, por não conseguir mais se concentrar para ler e escrever. Entre suas obras, destacam-se Mrs. Dalloway, Ao Farol, Orlando: uma Biografia, entre outras.
A peça se passa nos últimos instantes de Virginia, já embaixo d'água, enquanto repassa a própria vida — acontecimentos marcantes, paixão pelo conhecimento, momentos felizes com os amigos do grupo intelectual de Bloomsbury. Ela revela ainda afetos, dores e seu processo criativo. É, portanto, um inventário íntimo de si mesma.
— Fiquei muito maravilhada por como ela me tocava de uma maneira muito profunda e, aí, quis ler sobre a própria Virginia. Descobri que a vida dela era muito fascinante, apesar de trágica — conta Cláudia, destacando que, assim, seu foco passou a ser os fluxos de consciência da autora.
Neste ínterim, participou de outros projetos — escreveu, cocriou e atuou na série Valentins, atuou em duas temporadas de Desalma, na peça Panorâmica Insana e em filmes como O Silêncio da Chuva — e fez uma pós-graduação. Paralelamente, ia desenvolvendo pesquisas e, na pandemia, escrevendo a peça sobre Virginia. Finalmente, seis anos depois de reencontrar as obras, nasceu o espetáculo.
— Acho que a grande qualidade dela é que ela escreve de uma maneira muito sofisticada, mas, ao mesmo tempo, consegue traduzir muito bem as sensações muito profundas e sensíveis que ela consegue ter das coisas, da existência — descreve.
Momento diferente
Cláudia visualiza este como um momento diferente em sua carreira, mais maduro, no qual se sentiu preparada para dar um salto sem redes e se propôs a realizar novos feitos, com um projeto que inaugura novidades e desafios. Em sua visão, não poderia fazer uma personagem tão profunda sem a vivência pessoal e teatral que acumulou ao longo dos anos. Além disso, o fato de levar o espetáculo a diferentes lugares e lançar um livro sobre ele são realizações marcantes para a atriz. E a dedicação tem gerado bons frutos: Virginia foi um sucesso em São Paulo, com ingressos esgotados, e recebeu uma calorosa recepção em Belo Horizonte, conforme a dramaturga.
A Virginia dos palcos já estava tão impregnada da Virginia da vida real que incorporar a personagem foi apenas um caminho natural para Cláudia. Durante o processo de escrita, ela já interpretava a autora, experimentando, para isso, diferentes técnicas, que iam da escrita tradicional a improvisações e gravações.
A atriz conta que acabou se servindo do desejo de escrever e que o monólogo, o primeiro de sua carreira, foi o formato mais adequado à proposta. Embora aprecie o jogo cênico com outros atores, ela foi percebendo, ao longo do processo de escrita, que não faria sentido ter outras pessoas interpretando vozes fora de Virginia, visto que elas estão dentro dela.
— Ficaria um teatro tradicional. E ela não fazia uma escrita tradicional. Ela é modernista exatamente porque inovou a forma de escrever, então eu não queria fazer também uma encenação que não tivesse uma conversa com a modernidade da escrita dela — explica.
Assim, Virginia estabelece uma conversa com a própria estrutura literária de sua inspiração: a peça de teatro conta a vida da escritora alternando os fluxos de consciência — ou seja, são muitas as vozes que contam a história: há a voz dela, vozes que ela evoca da família, do marido, da amante, dos amigos de seu grupo literário.
— A vida dela foi muito extraordinária, teve tragédias, abusos, opressões, mas, ao mesmo tempo, teve uma superação, de poder construir uma obra brilhante, apesar de todas essas dificuldades emocionais, psiquiátricas, e ainda assim, apesar de tudo isso, de internações, ela conseguiu ser uma das grandes escritoras do século 20 — pontua Cláudia.
Exatamente por esse motivo, interpretar o monólogo não é uma tarefa fácil. Um dos desafios da atriz é precisamente trocar essas personagens, que são na verdade fluxos de consciência, de maneira sutil, como na literatura original, na qual Virginia Woolf não anunciava que mudaria o narrador. Portanto, a artista não pode fazê-lo de modo caricato, para se manter fiel ao estilo da autora.
Turnê e novos trabalhos
Apesar de frequentar o Estado a trabalho — Desalma foi gravada na serra gaúcha, e a atriz apresentou Panorâmica Insana no Porto Alegre em Cena em 2019 —, retornar ao Rio Grande do Sul continua sendo motivo de felicidade para a artista, especialmente com a realização de uma turnê. Porém, se houvesse condições, a agora dramaturga gostaria de incluir ainda mais cidades no roteiro.
No horizonte, há ainda outros projetos pela frente: um filme de Marcos Bernstein a estrear, sob o título provisório Terapia da Vingança; também está escrevendo um roteiro junto ao ator gaúcho e colega de elenco em Desalma Ismael Canappele. Contudo, no próximo ano, o foco principal continuará na peça a qual se dedicou a conceber, com visitas a outros Estados, como da região Nordeste, e retornos a alguns, a exemplo de São Paulo. Uma turnê em Portugal também está nos planos da multifacetada artista.
"Virginia"
- No sábado (8), às 21h, e no domingo (9), às 18h.
- Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/nº, Centro Histórico), em Porto Alegre.
- Ingressos a partir de R$ 20, à venda pelo site.