Por meses, Cláudia Abreu vivenciou a rotina de seus sonhos: pés no chão e mato à volta, na região serrana do Rio de Janeiro. Passou entre leituras e brincadeiras com os quatro filhos antes de partir para Portugal, onde vai morar por um tempo para acompanhar a filha mais velha, Maria Maud, que estuda Música. Na bagagem, a vontade de viver intensamente a nova fase com o marido, o cineasta José Henrique Fonseca, e seu quarteto – além da primogênita, de 19 anos, é mãe de Felipa, 13, José Joaquim, 10, e Pedro Henrique, nove.
Foi em terras lisboetas que uma das maiores estrelas da TV brasileira completou seus 50 anos.
– Fui rejuvenescendo à medida que fiquei mais velha porque o meu espírito foi ganhando mais sabedoria, fui tendo um olhar amoroso e compreensivo – contou à Donna, em um papo por telefone.
Com o mesmo vigor dos tempos dos primeiros trabalhos – como a mocinha Clara, de Barriga de Aluguel (1990), ou a transgressora Heloísa, de Anos Rebeldes (1992) –, Cláudia encarou o desafio de protagonizar a série de suspense sobrenatural Desalma, que estreou há pouco mais de um mês no streaming Globoplay. O talento indiscutível também lhe permite momentos fora dos holofotes:
– Não tenho essa necessidade de ficar me mantendo em foco, pelo contrário, gosto de sair um pouco do foco. Isso me revigora.
No papel de si mesma, Cláudia abre o jogo sobre a forma de criar os filhos, a nova fase e a carreira repleta de momentos eternizados no imaginário do público.
Fera Radical, um dos seus primeiros trabalhos, entrou para o catálogo da Globoplay. O que hoje você diria para a Claudia daquela época?
É uma profissão que parece fácil, mas é muito difícil. Você tem que ser perseverante. Tenho a sorte de ter tido grandes oportunidades, mas, a cada novo papel, você tem que se renovar e tentar, de alguma maneira, surpreender. Não pode achar que, porque fez papéis marcantes, vai ser sempre assim. É esse eterno recomeçar. Diria isso: pode ir com confiança, porque vai valer a pena.
Seu trabalho em Desalma está sendo muito elogiado, também por apostar em um novo nicho, o do suspense sobrenatural.
Voltar a fazer série era um desejo que tinha. Fiz Anos Rebeldes, e outros seriados como A Vida Como Ela É, Comédia da Vida Privada. Fiquei feliz que tenha sido Desalma. Primeiro, porque tem esse formato de temporadas. E tinha essa novidade de ser um suspense sobrenatural. É um gênero que gosto de assistir, então certamente iria gostar de fazer também. Me agradou muito essa empreitada de um vilarejo que tenha pessoas diferentes, que se comportam e falam de uma maneira própria. Fugir de um naturalismo mais corriqueiro e investir na estranheza. Faço a Ignes, uma mulher que está com um desequilíbrio psíquico e emocional. O fato dela estar tão vulnerável às suas emoções e ser desacreditada por estar em tratamento amplia mais as possibilidades. Isso leva ela para um caminho sem volta pelo trágico.
Como você vê a forma que o tema da saúde mental é tratado atualmente?
Ainda tem muito preconceito. Se você se deprime, ninguém tem muita paciência. Logo a pessoa é vista como problemática. Ainda há um caminho longo para as pessoas entenderem que o tratamento psiquiátrico é como qualquer outro. Você é um todo: corpo e alma. Se está fazendo um tratamento para qualquer problema físico/corporal, por que não fazer para o psíquico? Acho importante esse contexto da discriminação do tratamento psiquiátrico, mas está nas entrelinhas (na série).
Você veio ao Estado para as gravações do seriado. O que deu tempo de fazer por aqui? Fiquei absolutamente apaixonada pela serra gaúcha. Só conhecia Gramado e Canela. Vou todo ano a Porto Alegre em uma pediatra que cuida dos meus filhos, eles têm uma alergia a leite, e ela é a referência. Curto Porto Alegre pelo menos uma semana por ano. Durante a filmagem, fiquei muito encantada pelo parque de Tedesco (em São Francisco de Paula), é deslumbrante. Queria ter ido ao Itaimbezinho. Fui almoçar sozinha em uma vinícola ali perto de Antônio Prado, Flores da Cunha. Comprei vários vinhos e mandei para o Rio. Acho as pessoas na Serra de uma gentileza extrema, uma educação. E não posso deixar de falar de todas as vezes que fui fazer teatro. Ano passado, fui ao Sesi com a peça Pi - Panorâmica Insana, e foi uma alegria. Fui fazer uma peça no Theatro São Pedro em 1990, e depois não tinha voltado mais. Voltei com Pluft, acho que em 2014. Quando cheguei ao camarim, havia um livro do Theatro com um cartão da dona Eva Sopher na página que havia uma foto minha. Ela dizia: “Não demore mais tanto a voltar ao TSP” (risos). Isso me emocionou profundamente.
Você tem amigas de longa data no meio artístico. Que memórias guarda dessas amizades? Você passa muito tempo com as pessoas com quem está trabalhando. Isso propicia amizades muito profundas. A Malu Mader é uma irmã. Desde muito garotas, trabalhamos juntas. Tenho muito orgulho de que a profissão nos uniu e não nos separou. Ela é madrinha do meu filho. A Drica Moraes é uma pessoa fundamental na minha vida, uma das responsáveis por eu ter virado atriz. É uma cúmplice que tive, e passamos parte da quarentena juntas. Nem sempre estamos tão grudadas, mas, quando a gente se encontra, temos uma grande identificação. Como tenho com a Renata Sorrah, que fez minha mãe em Pátria Minha, e nunca deixou de ser minha grande amiga e é madrinha de outro filho meu.
Não tenho essa necessidade de ficar me mantendo em foco - pelo contrário, gosto de sair um pouco do foco.
Você é uma atriz famosa e muito reservada. Em tempos de redes sociais é mais difícil?
Não mostro a minha casa, a minha vida, os meus filhos. Procuro preservar, porque talvez eles não queiram ser famosos. O anonimato é um direito deles. Minha filha mais velha quer ser cantora e postar a vida dela, e ela tem esse direito. Demorei muito tempo para entrar em redes. Acho que a profissão já nos expõe demais. Ficar o tempo todo em cena não me parece inteligente, porque você acaba gastando demais. Não tenho essa necessidade de ficar me mantendo em foco - pelo contrário, gosto de sair um pouco do foco. Entrei para as redes porque você precisa fazer parte de seu tempo. Não tenho Facebook, nem Twitter. No Instagram, se comunicar através do símbolo, da foto, me pareceu interessante. Tenho um Instagram fechado, em que me relaciono com meus amigos de maneira mais íntima, e o aberto, em que falo mais de trabalho, de posicionamentos que acho importantes, seja de cultura ou de política. Nunca quis me misturar muito com política, mas, neste momento, é importante não deixar dúvidas de que lado você está.
Relembre alguns dos papéis inesquecíveis de Cláudia Abreu
Você e José Henrique estão casados há mais de 20 anos e também têm um negócio juntos. Como dosar trabalho e vida a dois?
Abrimos a Zola Filmes há mais de 10 anos, primeiro com outro nome. Achei que era uma boa virarmos sócios para eu fazer os meus projetos. Uma das primeiras parcerias que fizemos juntos foi o (seriado infantil do canal Gloob) Valentins. Era uma necessidade minha, sendo mãe, de ter mais conteúdo brasileiro para criança. Essa parceria não é somente na vida, de ter quatro filhos e ter projetos pessoais, de morar fora. Quisemos juntar os sonhos profissionais. Independentemente de realizar juntos, a gente sonha e planeja junto. Não tive nenhum problema com a quarentena. Ficamos no sítio, sempre tive o desejo de morar no campo, vivenciar essa vida mais calma e simples. Claro que você não pode ficar alienada. É impossível ficar indiferente ao que está acontecendo porque todos temos medo. Estava tendo momentos de muita leitura, de convivência com a minha família, o que me dava um prazer extremo. Ao mesmo tempo, existe a angústia, algo de que não dá para fugir.
Como é, com o seu marido, educar quatro filhos, administrar uma família grande?
Você se coloca à prova o tempo inteiro educando crianças. Testa seus limites, reconhece preconceitos, onde está antiquada ou moderna. Vai se conhecendo através do outro. Muitas vezes, se reconhece positivamente e, em outras, nem tanto. Educar é você se olhar no espelho também. Com a internet, você tem menos controle de tudo, da informação que chega. Não dá para ter uma postura limitadora. Achava que tinha vindo para ser atriz, mas vim também para ser a mãe dessas pessoas. Nem era tão ligada em criança. Depois que me tornei mãe, descobri um afeto absurdo. É meio clichê, mas é verdade. Os clichês estão aí porque muita gente sentiu a mesma coisa. É muito profundo e único ser mãe, e ser mãe de muitos. Costumo dizer que é mais fácil ser mãe de quatro do que de um.
E como tem sido a temporada em Portugal?
Viemos para minha filha estudar Música aqui. Ao mesmo tempo, estávamos vivenciando um luto doloroso (do sogro, o escritor Rubem Fonseca, que morreu em abril). Era uma renovação, uma lufada de novidade, de liberdade, de ter ficado confinados no mesmo lugar por muito tempo. Quando decidimos vir para cá, a pandemia havia sido controlada de uma forma muito diferente. A gente tinha esperança de que aqui poderíamos ter uma vida mais próxima do normal. As restrições estão começando, e acho ótimo. Quanto mais seriedade e objetividade se tiver em relação à doença, menos gente vai morrer.
Acho saudável que as pessoas possam experimentar ao longo da vida sem ter de se preocupar com idade
Você completou 50 anos em 2020. Se identifica com o conceito ageless (sem idade)?
Totalmente! O homem ficava charmoso, e a mulher, velha. Acho que não existe prazo de validade nem data de obrigação para fazer qualquer coisa. Você vê cada vez mais mulheres engravidar mais tarde, ou trocar de profissão. Acho saudável que as pessoas possam experimentar ao longo da vida sem ter de se preocupar com idade. Curiosamente, eu era muito mais rígida comigo e com meus conceitos quando mais jovem. Fui rejuvenescendo à medida em que fiquei mais velha porque o meu espírito foi ganhando sabedoria, fui tendo um olhar mais amoroso e compreensivo sobre tudo. A vida me trouxe leveza, e não peso. Não me sinto com 50 anos com esse peso que os 50 anos representam, da maneira careta que falam. É muito careta e conservador o que falam da mulher de 50. Que mulher de 50? Sou o que a minha alma representa.
Como você percebe o protagonismo que as mulheres com mais de 50, 60 anos estão ganhando na TV, no cinema e na publicidade?
As pessoas precisam se reconhecer. Há um público gigantesco de 40 ou 50 anos para cima. Elas precisam se enxergar. É representatividade. Quero ver um filme que fale de questões que me interessam, quero me reconhecer em uma personagem. Assistir a um filme e ver que a atriz fala de questões que estou vivenciando. Tomara que todos estejam representados e que a gente possa se enxergar e até compreender melhor as questões de outras gerações. A gente se enxerga na arte. Por isso, é tão absurdo que se trate a cultura de uma forma tão desprezível.