Colocar em pé um festival de artes cênicas no Brasil atualmente é não apenas um ato de coragem como uma disposição ao risco, tamanhas as dificuldades financeiras e operacionais enfrentadas. Em meio a tudo isso, o Porto Alegre Em Cena comemorou com dignidade seu primeiro quarto de século de história na edição encerrada neste domingo (23). Com orçamento enxuto, uma triste realidade nos últimos anos, o evento conseguiu trazer à Capital um pouco do que tem sido feito de melhor no país, exibiu uma boa programação local (mérito da safra da cena gaúcha) e ainda contou com atrações internacionais.
Em seu segundo ano como herdeiro de Luciano Alabarse na coordenação-geral do Em Cena, Fernando Zugno propôs novamente um tema, evidenciando aos poucos uma vocação curatorial: se no ano passado destacou-se o protagonismo feminino, desta vez a formação do Brasil e da América Latina foi o foco. A questão esteve explícita em montagens como A Tragédia e Comédia Latino-Americana, Grande Sertão: Veredas, PRETO e Home Visit: Brasil em Casa, mas tangenciou diversas outras produções, já que tem sido difícil não ser político na cena em uma era de crise e desagregação geopolítica. Algumas sessões contaram com manifestações do público em adesão ao movimento Ele Não, contrário ao candidato à presidência Jair Bolsonaro.
Neste ano, o festival reforçou ainda mais sua programação paralela, com conferências, mesas-redondas e oficinas. A troca de experiências das atrações convidadas com os profissionais locais era uma antiga demanda da classe artística. Os espetáculos a que assisti contaram com ótimo público, embora alguns deles não estivessem lotados. Os ingressos puderam ser comprados por preços a partir de R$ 10, mas os melhores lugares dos espetáculos nacionais e internacionais custavam R$ 80. O valor é mais alto do que os bilhetes mais caros de festivais de expressão similar à do Em Cena que ocorrem na mesma época, como o Mirada, de Santos (R$ 50), e o FIT, de Belo Horizonte (R$ 20).
Destaques do evento
A Bergman Affair confirmou-se como a principal atração internacional. O elenco da recém-criada companhia francesa The Wild Donkeys, formado no Théâtre du Soleil, contou uma história baseada na vida dos pais do cineasta Ingmar Bergman (cujo centenário de nascimento é celebrado em 2018) com uma encenação simples, sustentada pelo excelente trabalho de atuação. Olivia Corsini cativou no papel de Anna, uma mulher aprisionada em um casamento sem emoção que encontra em um relacionamento extraconjugal um motivo para viver.
Já a produção chilena 40 Mil Km, do Teatro Club Social, embora bem intencionada e honesta, não conseguiu extrair o máximo efeito expressivo das histórias de imigração inspiradas nas vidas de seus atores. Com habitantes do Chile vindos do Haiti, da Bolívia, da Espanha e da Argentina, a peça refletiu sobre as dificuldades e preconceitos que envolvem os deslocamentos e as crises de identidade resultantes.
Melhor sorte teve A Tragédia e Comédia Latino-Americana, de Felipe Hirsch, uma sequência de cenas baseadas em textos de autores latino-americanos com duração de 3h30min que entregou o que prometeu. Espécie de obra de arte total, com ótima música ao vivo dirigida pelo gaúcho Arthur de Faria, a peça ofereceu um mosaico fragmentado de situações para pensar o continente hoje. O irreverente solo de Caco Ciocler sobre a colonização do Brasil é para ficar na memória.
Igualmente notável foi a adaptação teatral de Bia Lessa para Grande Sertão: Veredas, que lotou duas sessões no enorme Teatro do Sesi. Enfrentando a assustadora sombra da grandiosidade da obra de Guimarães Rosa, o elenco entregou uma montagem comovente, que ressalta a atualidade do romance sem forçar a barra. Caio Blat foi um Riobaldo carismático e bravo ao mesmo tempo, fazendo justiça à complexidade do personagem.
Em um festival que tematizou as contradições da formação do Brasil, há que se destacar o protagonismo de artistas negros em trabalhos como PRETO, da companhia brasileira de teatro, e dois vencedores do Prêmio Braskem Em Cena, entregue a produções gaúchas: A Mulher Arrastada, com Celina Alcântara, e Qual a Diferença Entre o Charme e o Funk?, do grupo Pretagô (este pelo júri popular). Mas ainda há muito a ser debatido – e feito – a respeito da representatividade na cena brasileira.