Existem basicamente dois tipos de leitores de Grande Sertão: Veredas: os que desistem logo nas primeiras páginas e aqueles que encaram a leitura como uma travessia que nunca acaba. O espetáculo apresentado no 25º Porto Alegre Em Cena, no último fim de semana, pode ter funcionado como um convite para que os primeiros retornem ao livro (sempre é hora), mas é dedicado principalmente ao segundo grupo – aquele tipo de leitor que permanece sob o encanto da obra-prima de Guimarães Rosa para o resto da vida.
A própria diretora do espetáculo, a paulista Bia Lessa, faz parte dessa espécie de leitor que não abandona o sertão rosiano na última página do livro. ("Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera"). Em 2006, quando o livro completou 50 anos, a diretora mergulhou no romance para criar a exposição que inaugurou o Museu da Língua Portuguesa. Ali, o sertão era feito de palavras. Dez anos depois, Bia Lessa voltou ao livro, agora com o objetivo de levar ao palco a aventura do jagunço Riobaldo sertão afora e coração adentro. A montagem estreou em São Paulo em setembro de 2017.
Assim como na exposição, o sertão do palco é mais sugerido do que mostrado. O cenário é uma estrutura tubular que lembra uma jaula. O figurino é escuro, sem adereços, e cerca de 250 bonecos de feltro completam a cena. O único luxo no palco é o próprio texto, e a reverência ao livro comanda a encenação, que consegue atar com habilidade os dois eixos centrais do romance: as reflexões metafísicas do protagonista e a ação vertiginosa no mundo real das guerras e dos amores.
Parte do público assistiu ao espetáculo bem próximo à jaula instalada no palco, com fones de ouvido. Alguns espectadores que assistiram da plateia ou do mezanino do Teatro do Sesi reclamaram do som, amplificado por caixas de som, que teria prejudicado o entendimento de algumas partes da peça. Os que tiveram a sorte de assistir à montagem das cadeiras instaladas no palco tiveram uma experiência à parte. A proximidade dos atores e sua entrega ao espetáculo, combinadas à força do texto de Guimarães Rosa, criaram um ambiente de celebração dionisíaca e sagrada ao mesmo tempo. Caio Blat entrega um Riobaldo multifacetado – doce, bruto, atormentado, triunfante – como deve ser, liderando um elenco coeso e seguro. O resultado é um espetáculo intenso e arrebatador. Como o livro.
Livro e espetáculo em debate no Em Cena
Dentro da programação paralela do Em Cena, será realizado hoje o debate Um Olhar sobre Grande Sertão: Veredas, com a participação da professora Kathrin H. Rosenfield, autora do livro Os Descaminhos do Demo: Tradição e Ruptura em Grande Sertão: Veredas, e a psicanalista Suzana Iankilevich Golbert. O encontro será no saguão do Centro Municipal de Cultura (Erico Verissimo, 307), nesta terça-feira (18), às 15h.