
Um dos nomes mais experientes em atividade na cena teatral integrada por artistas negros no Rio Grande do Sul, o diretor Jessé Oliveira lembra de ter se interrogado, no início dos anos 2000, se conseguiria o número suficiente de atores afro-brasileiros para participar do espetáculo Transegun (2003), dado que conhecia poucos profissionais com esse perfil. Para sua surpresa, começou a ser procurado por diversas pessoas interessadas no projeto.
– Foi aí que me dei conta de que o problema não era a ausência de atores negros, mas sim a inexistência de um mercado de trabalho que lhes desse visibilidade artística – conta Oliveira.
À frente do grupo Caixa-Preta, em atividade desde 2002, o diretor celebra o que chama de "um incipiente mercado de trabalho para atores e encenadores negros no Rio Grande do Sul". Prova disso foi a criação, nos últimos cinco anos, de outros dois coletivos dedicados à cultura afro-brasileira: o Montigente, em 2011, e o Pretagô, em 2014, que está novamente em cartaz com o espetáculo Qual a diferença entre o charme e o funk?, com sessões nesta sexta (25/11) e no sábado (26/11) no Teatro do Sesc Centro, em Porto Alegre.
O reconhecimento da efervescente cena dos coletivos já começa a ser colhido: em setembro, outro trabalho do Pretagô, AfroMe, ganhou o Prêmio Braskem Em Cena de melhor espetáculo pelo júri popular. Na mesma ocasião, o processo de criação de Dança do tempo, da Usina do Trabalho do Ator (UTA), levou a categoria destaque. Embora não se dedique somente à cultura afro-brasileira, a UTA tem se debruçado sobre o tema.
A atriz Dedy Ricardo, da UTA, que atualmente dedica uma pesquisa de mestrado na UFRGS à presença de atrizes negras nos palcos do Estado, situa duas circunstâncias que ajudaram a constituir essa cena: as oficinas artísticas de descentralização realizadas pela prefeitura da Capital nos anos 1990 e, mais recentemente, a política de cotas que fez aumentar a participação de afrodescendentes na universidade. Dedy observa que as atrizes negras trazem um debate singular à cena:
– Além do racismo, elas sofrem com a questão de gênero. Denunciam a sexualização exacerbada da mulher negra que aparece no estereótipo da gostosona ou da "mulata globeleza" e criticam outro estereótipo, o da empregadinha, da mulher negra submissa.
Diretor do grupo Pretagô, Thiago Pirajira defende que o trabalho do grupo não seja enquadrado na categoria limitadora do teatro político ou engajado, mas que seja entendido como arte "e ponto final":
– Se alguém me perguntar o que queremos propor, respondo que é uma celebração da vida. Mas as vidas dos integrantes do Pretagô são perpassadas pela realidade social, atravessadas por diversos tipos de violência, racismo e exclusão. Isso automaticamente paira sobre os nossos trabalhos.
Em comum, os artistas entrevistados para esta reportagem reivindicam, cada um à sua maneira, uma representatividade por meio de um consistente trabalho estético. Oliveira, por exemplo, lembra que um dos objetivos da criação do grupo Caixa-Preta, em 2002, foi propor um trabalho que se diferenciasse do puro ativismo e que fosse criado por profissionais do teatro, e não por pessoas de outras profissões que eventualmente se aventuram na arte. Todo esse esforço se reflete na presença significativa de espectadores negros na plateia, muitos dos quais não costumavam frequentar teatros antes por falta de identificação com os artistas. Gil Collares, diretor do grupo Montigente, afirma:
– A plateia negra, quase inexistente nos teatros e salas de espetáculo na grande maioria de eventos oferecidos por aqui, tem lotado as apresentações do Grupo Pretagô, do Coletivo Montigente, assim como sempre lotou os do grupo Caixa-Preta. É um público que busca se ver no palco, que está cansado de não ser representado. Mas, apesar de nossos esforços para nos manter em cena, ainda somos muito limitados em editais de fomento à cultura e nos projetos de ocupação de salas de espetáculo.
Unidos na pluralidade de abordagens, os artistas negros desejam narrar suas biografias em primeira pessoa. Em outras palavras, querem assumir o protagonismo da cena em um Estado cuja narrativa oficial durante muito tempo apagou a presença de seus ancestrais como sujeitos da história.
QUAL A DIFERENÇA ENTRE O CHARME E O FUNK?
Nesta sexta (25/11) e sábado (26/11), às 20h.
Teatro do Sesc Centro (Alberto Bins, 665), fone (51) 3284-2070, em Porto Alegre.
Ingressos: R$ 30, à venda uma hora antes das sessões.