Há nove anos, o dramaturgo Diones Camargo decidiu escrever um longo artigo sobre as carências da dramaturgia no Rio Grande do Sul e como isso afetava a produção teatral gaúcha. Identificava, por exemplo, a falta de centros de formação, inclusive na universidade. Mas o texto acabou não sendo publicado, o que Diones interpretou como a confirmação de sua hipótese sobre a falta de interesse da classe artística nesse debate.
Dramaturgo com atuação desde 2004, Diones jamais retornou ao projeto do artigo, mas o motivo passou a ser outro: a certa altura, ele ficou datado. É que a cena gaúcha tem passado, nos últimos anos, por uma verdadeira primavera da dramaturgia, com o surgimento de um número inédito de autores e autoras, o estabelecimento de dois coletivos e a criação de projetos de capacitação e publicação.
O Grupo de Estudos em Dramaturgia, que Diones coordena desde 2015 na Galeria LA PhOTO, na Capital, teve dois interessados para cada vaga neste ano. Participam nomes como Camila Bauer, Francisco Gick, Marcelo Ádams, Jéssica Lusia e Diego Ferreira. Revelação como autor do texto de Ramal 340, do Coletivo Errática, que ganhou o Prêmio Açorianos de Teatro de melhor espetáculo em 2016, Gick avalia que a necessidade de criar histórias mais próximas da realidade local é motivadora:
– Há um desejo de produzir narrativas que se identifiquem com nossas vivências e que deem conta do nosso momento. É uma questão de olhar para o mundo com os olhos daqui.
Foi o desejo de escrever peças nas quais se sentissem representadas que levou um grupo de autoras a constituírem o Coletivo As DramaturgA, que começou em 2016 com uma pesquisa da dramaturga, atriz e diretora Patrícia Silveira sobre a produção de autoria feminina – então pouco conhecida mesmo no meio teatral – e que hoje reúne 13 nomes. Além de Patrícia, integram o coletivo Carina Corá, Dedé Ribeiro, Elisa Lucas, Fernanda Moreno, Jéssica Lusia, Jéssica Barbosa, Lourdes Kauffmann, Natasha Centenaro, Patsy Cecato, Stella Bento, Vika Schabbach e – ufa! – Viviane Juguero.
A nominata dá uma pista do que une essa cena: a pluralidade. Congregando diferentes gerações, o coletivo conta com atrizes e diretoras que encenam seus próprios textos, pesquisadoras que também são dramaturgas e dramaturgas "de ofício". Outra característica: a paixão pela liberdade da forma. Patrícia identifica potencialidades na escrita contemporânea:
– A dramaturgia de hoje é rica em possibilidades estéticas. Por ser uma escrita muito livre, começou a chamar a atenção das pessoas. Hoje, buscamos reconhecimento como grupo. Acredito que assim temos mais força.
Muitas formas de escrita
Exemplo disso é a publicação de uma caixa com os textos das autoras do Coletivo As DramaturgA, prevista para a Feira do Livro de Porto Alegre deste ano. O lançamento faz parte de uma série sobre dramaturgia da EDIPUCRS, da qual também fará parte uma peça de Altair Martins, autor conhecido por sua obra em prosa. Professor dos cursos de Escrita Criativa da PUCRS, onde pelo menos duas das autoras do coletivo estudaram, Antonio Hohlfeldt atesta a qualidade do que se vem produzindo. Crítico que acompanha há décadas o teatro gaúcho, ele se surpreende com o número de autores em atividade:
– Quando comecei a pesquisar sobre a literatura do Rio Grande do Sul, na década de 1970, havia Ivo Bender escrevendo para teatro e não muito mais. Agora, há realmente uma geração. Não lembro de outro momento em que isso tenha ocorrido.
Essa cena está distante do estereótipo do dramaturgo que escreve solitariamente e entrega o texto prontinho para ser encenado. Há todo tipo de processo: a escrita individual, "de gabinete", que alguns ainda praticam; o processo colaborativo, em que o escritor frequenta a sala de ensaio; e a criação coletiva, em que o grupo assina em conjunto. A artista e pesquisadora Dedy Ricardo chama atenção para a gênese “falada” do texto produzido na dramaturgia coletiva:
– O que me encanta é essa escrita que primeiramente é dita, vivida, improvisada, para apenas depois talvez ser escrita. Muito da vida pode ir para a cena.
Dedy é expoente de outro movimento no qual a dramaturgia gaúcha pulsa: a produção criada por artistas negros. São grupos como a Usina do Trabalho do Ator (UTA), mais antigo, e o Pretagô, mais jovem. O diretor e ator Thiago Pirajira, que atua em ambos, analisa:
– A dramaturgia pode ser pensada como modos de fazer o texto-cena-espetáculo. Nesse sentido, ela eclode não somente a partir de um trabalho específico do dramaturgo, mas das mais diferentes formas, individuais ou coletivas.
Ao que tudo indica, a primavera da dramaturgia recém começa a florescer. A partir do interesse de alunos, o Departamento de Arte Dramática da UFRGS (DAD) deverá oferecer, a partir de 2019, uma habilitação em dramaturgia para os bacharelandos em Teatro, focada na escrita, e não apenas no estudo das peças existentes. Até agora, estão disponíveis habilitações em direção teatral e interpretação, além da licenciatura.
– Vemos no país uma cena forte de dramaturgia contemporânea, feita muitas vezes de modo instintivo. Esperamos gerar um espaço onde essa troca possa ocorrer de modo mais continuado – explica Camila Bauer, diretora teatral e professora do DAD.
Mas ainda restam desafios pela frente. Alguns autores identificam certa resistência de diretores e grupos gaúchos com textos escritos por aqui, o que leva dramaturgos a produzirem suas próprias montagens das peças. Diones Camargo desabafa:
– Apesar dos avanços, o que vejo ainda é uma quantidade absurda de encenadores e atores vasculhando insistentemente as estantes à procura de novos dramaturgos estrangeiros ou garimpando as sobras que chegam do centro do país (leia a entrevista na íntegra).
A conclusão, entretanto, é que o futuro será da colaboração entre todos. É aguardar o terceiro sinal.