Leia, na íntegra, a entrevista concedida pelo dramaturgo Diones Camargo a GaúchaZH por e-mail, na qual ele analisa a nova dramaturgia do Rio Grande do Sul e as mudanças pelas quais a cena gaúcha passou nos últimos anos.
Poderias comentar qual era a situação da dramaturgia gaúcha quando começaste e que mudanças ocorreram nos últimos anos?
Há muita diferença. Para se ter uma ideia, em 2009 eu escrevi um longo artigo falando sobre as carências na área da dramaturgia em Porto Alegre e as consequências disso para a cena teatral gaúcha. Infelizmente, por causa do pouco interesse pelo tema na época, o mesmo acabou não sendo publicado. Neste texto (que acabou abandonado) eu analisava a falta de espaços de formação e capacitação, tais como os núcleos de dramaturgia tão comuns em outras capitais do país, a lacuna acadêmica de uma ênfase em dramaturgia dentro da universidade pública e até mesmo o fato – que venho insistindo desde então – de um dramaturgo como Ivo Bender nunca ter sido sequer oficialmente indicado para ser patrono da Feira do Livro de Porto Alegre – nem ele ou qualquer outro autor de teatro.
De lá pra cá, algumas dessas lacunas vêm sendo lentamente preenchidas: a ênfase em dramaturgia no Departamento de Arte Dramática da UFRGS, por exemplo, será finalmente lançada no ano que vem; o Grupo de Estudos em Dramaturgia, projeto independente que coordeno desde 2015, continua em atividade e teve um número recorde de inscrições em 2018, com mais que o dobro de interessados em comparação com o número de vagas disponibilizadas.
Ao mesmo tempo, outros tantos retrocessos ocorreram no mesmo período, fazendo com que avanços duramente conquistados fossem aniquilados pelas últimas administrações públicas do município e do Estado, com os dramaturgos não só daqui mas também do resto do país se deparando com a extinção de importantes editais e prêmios de incentivo na área (o Concurso Nacional de Dramaturgia Carlos Carvalho e o Prêmio Ivo Bender são exemplos desse descaso).
O que nos restou foi um edital de um instituto estrangeiro que destina recursos minguados a equipes locais para que estas encenem num mesmo mês duas montagens de um autor europeu escolhido pela instituição e que é recebido por aqui como astro, sem que a mesma sequer se preocupe em fazer o caminho inverso, levando os dramaturgos daqui para experiências criativas num outro país, em interação com outros artistas e num contexto de produção diferente do nosso.
Como descreves a nova dramaturgia produzida no Rio Grande do Sul hoje? Quem são esses autores e suas preocupações?
Considero a dramaturgia recente produzida aqui muito mais ligada a conexões com o que está fora, ao mesmo tempo que não tão distante da nossa realidade, como vinha acontecendo até uma década atrás.
Quando comecei e escrever para teatro em 2004, ano que concluí a primeira versão da minha peça de estreia (Andy/Edie, que se passava em Nova York e trazia à cena ícones da cultura norte-americana tais como Andy Warhol e Bob Dylan), me parecia que a dramaturgia local naquele momento estava – salvo algumas poucas exceções – excessivamente voltada a questões e formas que não refletiam as angústias contemporâneas nem sociais do país. Quando não eram adaptações de autores estrangeiros, permaneciam arredias a outros cenários que não os do pampa gaúcho e mais interessadas em referências, passagens históricas e personagens batidos da história daqui do Sul. Por isso, naquela ocasião, decidi escrever sobre sujeitos inseridos num outro contexto, um contexto mais distante mas paradoxalmente mais ligado aos referenciais da minha própria geração. Era uma vontade artística, claro, mas também uma provocação.
Com o tempo, até mesmo essa necessidade foi mudando, à medida que outros grupos e autores perceberam que havia esta possibilidade de explorar universos que não somente o nosso, vinculados ao tradicionalismo ou temas similares, mas fazendo ecoar na cena o imaginário cultural que pulsava no mundo: exemplos disso são Wonderland, de Daniel Colin e Felipe Vieira de Galisteo (Teatro Sarcáustico), e Milkshakespeare, de Júlio Zanotta, que traziam personagens distantes da nossa realidade imediata mas facilmente reconhecíveis.
Hoje em dia, o que vemos são autores fazendo isto com mais naturalidade e mais profundidade, fazendo reverberar nas suas peças conexões mais amplas, como é o caso de Francisco Gick, que no seu belíssimo Ramal 340 usa como pano de fundo contextos político-sociais diversos para falar sobre isolamento, afastamento e a busca por conexão, sentimentos comuns a todos.
Estamos falando sobre dramaturgia um mês depois da morte de Ivo Bender, que foi nosso maior dramaturgo moderno, mas pouco encenado nos últimos vários anos. Na sua visão, como é a relação da cena gaúcha com a dramaturgia produzida por autores daqui?
Creio que temos, de fato, uma tradição (alimentada pela academia durante décadas) de desinteresse pela dramaturgia brasileira e, mais especificamente, desconhecedora da dramaturgia criada aqui no Rio Grande do Sul. Porém, graças a esforços conjuntos, aos poucos esse panorama vem mudando, mas acredito que é responsabilidade de cada um de nós – autores, leitores, diretores, espectadores e professores – não apenas ter curiosidade pelo que está sendo produzido por aqui neste momento como também exigir que os textos sejam colocados em cena e publicados pelas editoras.
Apesar dos avanços, o que eu vejo ainda é uma quantidade absurda de encenadores e atores vasculhando insistentemente as estantes à procura de novos dramaturgos estrangeiros ou garimpando as sobras que chegam do centro do país. Como toda boa província, no RS a novidade é uma coisa viciante, quase um símbolo de status, não importando se o texto que será levado à cena pouco ou nada tenha a ver com discussões prementes no país; ou pior: que o texto pouco interesse à equipe que o irá encenar e ao público que for assistir à montagem.
Infelizmente, para alguns profissionais da nossa cena, ter o nome de um dramaturgo "sensação" (seja ele do centro do país ou de fora), que pratique alguns truques da escritura contemporânea com desenvoltura, lhes basta; e isso vale para a crítica especializada e para o público, e também para o mercado editorial que vira as costas aos autores gaúchos sem nenhum constrangimento. Acho que foi o acúmulo desses vários fatores que fez que um autor da importância de Ivo Bender, cuja variedade de temas possibilita novas e constantes reinvenções, fosse deixado de lado na última década e meia.
Qual é a importância dos dramaturgos "de ofício" para qualificar os espetáculos como um todo? E será que a falta de uma cena de dramaturgia pode ter prejudicado o resultado de espetáculos no passado?
Tenho certeza que sim, visto que já temos sentido um avanço perceptível na cena local. Se reparamos na quantidade de espetáculos com textos de autores gaúchos sendo levados à cena nos últimos anos, veremos que muitos deles são reconhecidos ou indicados aos principais prêmios de teatro, não apenas nas categorias de melhor dramaturgia (quando há), como também nas de melhor espetáculo.
Mas, acima disso, quando um dramaturgo – ou alguém que se dedica efetivamente à pesquisa e à prática da escrita para teatro – tem a possibilidade de exercer seu ofício e trazer um olhar de fora da cena, isso torna o processo coletivo muito mais rico e fluido. Seja com proposições para a criação em sala de ensaio ou mesmo com um texto já concluído, essa tarefa – quando assumida por um profissional com experiência e percepção clara dos desdobramentos possíveis – possibilita que não apenas os atores e encenadores fiquem livres para se dedicar às suas funções e experimentarem em cena, como também estimula que significados ocultos se expandam através discurso.
Acho que o problema maior dos espetáculos que não tiveram colaboração direta desse profissional é que eles acabaram se limitando a adaptações sem imaginação ou com costuras inconsequentes, às vezes ingênuas, e acabaram perdendo assim aquilo que todos nós, artistas de teatro, buscamos: a capacidade de comunicar o que o próprio grupo quer expressar e gerar uma conexão ao mesmo tempo emocional e intelectual com seu público. Existem exceções, claro, mas até estas provêm de grupos com avançado conhecimento em dramaturgia.
Como se deu a criação do Grupo de Estudos em Dramaturgia, na La Photo, e quais foram os resultados já obtidos?
O grupo foi criado em 2015 a partir de uma necessidade minha de reproduzir pra Porto Alegre um pouco da troca intensa que estava tendo no coletivo S E I S Dramaturgos, que era formado por autores de seis Estados brasileiros. Na época, convidei jovens autores, alguns dos quais seguem até hoje, e nos tornamos uma espécie de propositores do projeto. Mas, como sempre acontece, com o passar do tempo alguns se viram soterrados por compromissos paralelos e acabaram se afastando.
Então, no início deste ano, resolvi dar uma outra direção para o grupo: de coletivo formado unicamente pela nova geração do nosso teatro, abrimos vagas para autores advindos de contextos e idades diversas, com inquietações diferentes que pudessem expandir a nossa troca; a única exigência era que já tivessem tido contato e prática de escrita para o palco e ao menos um texto encenado. O que se viu foi uma avalanche de pessoas interessadas. Assim, selecionamos 10 novos autores e todo mês temos nos reunido na LA PhOTO Galeria durante uma tarde para pesquisar proposições e práticas contemporâneas de escritura dramatúrgica.
Agora o grupo, além de maior, está composto quase que totalmente por dramaturgos ligados ao meio acadêmico – estudantes e professores universitários, tais como Camila Bauer, Francisco Gick, Marcelo Ádams, Jéssica Lusia, Diego Ferreira e tantos outros. Esse contato com a academia deixou tudo parecido mais com um grupo de estudos do que com o coletivo de autores inicialmente pensado por mim – o que explica também a mudança recente do nome. Mas isso não impedirá que em breve façamos apresentações públicas dos textos produzidos nos (ou a partir dos) encontros. Prevalece em todos ali a vontade de imersão prática que norteou minha aposta inicial, e esta segue sendo a diretriz principal do que venho propondo a eles.