No filme Cinema Paradiso (1988), há um momento em que Totó Salvatore (Jacques Perrin) retorna para Giancaldo, cidadezinha siciliana onde cresceu. Em um cortejo fúnebre, ele observa as ruínas do prédio do cinema de rua o qual frequentou e trabalhou. Pergunta ao antigo proprietário o que aconteceu. E descobre que o local estava fechado havia seis anos.
– Não vinha mais ninguém. O senhor sabe. A crise, a televisão, o videocassete. Hoje o cinema é só um sonho – responde o homem.
Como é possível observar no drama italiano dos anos 1980, não é de hoje que os cinemas de calçada travam batalhas pela sobrevivência. Houve crises econômicas, home vídeo (VHS e DVD), streaming, pirataria, entre outros fatores. Além da concorrência com cinemas multiplex, os complexos geralmente estabelecidos em shoppings, houve também a obrigatoriedade da transição para a projeção digital, nos anos 2010, que sufocou os pequenos exibidores.
Em 2020, veio a pandemia de covid-19 e a determinação de que os cinemas do Brasil suspendessem as atividades em março. Mais uma árdua prova de resistência para os exibidores de calçada. No segundo semestre, houve um processo de reabertura das salas pelo Brasil. As salas gaúchas receberam autorização do governo estadual para retornarem em outubro, desde que seguissem protocolos de segurança (redução da capacidade, distanciamento, entre outras orientações). Contudo, em 30 de novembro, novo decreto voltou a suspender as atividades. Vale ressaltar que já havia cinema no Estado funcionando com autorizações municipais, como em Bagé e Santa Rosa. Por meio da cogestão, os empresários do setor também conseguiram a liberação das atividades em vários municípios, em especial, a partir de dezembro.
Mas os exibidores enfrentam obstáculos em suas reaberturas, como o receio do público em voltar às salas e os adiamentos dos filmes que são as maiores apostas de grandes bilheterias, resultando em uma programação em geral sem maiores chamarizes. Trabalhando para espectadores restritos e inseguros, os estabelecimentos focam na sobrevivência.
A situação, que é delicada para qualquer rede, pode ser potencializada para os pequenos empresários que investem nos cinemas de calçada do interior. Novos investimentos são ameaçados, e salas que atravessaram gerações e se entrelaçaram com suas comunidades correm risco de fechar as portas. Alguns não resistem ou se cansam de ter que passar por mais um processo de reinvenção – vide o Cine Cisne, de Santo Ângelo, que foi fechado após 62 anos de atividades.
Contudo, em meio às dificuldades, o cinema de rua persiste. Ainda é uma realidade no Rio Grande do Sul: há negócios de família, há redes se espalham pelo território gaúcho, há salas que dividem o prédio com o comércio, há espaços com valor afetivo para as suas comunidades.
À espera de novos tempos
As situações delicadas se repetem entre os exibidores do Estado. O Cine Globo tem duas filiais instaladas em cinemas de calçada – em Três Passos e em Frederico Westphalen –, além de operar em Cruz Alta, Santa Rosa e Palmeira das Missões. Segundo o proprietário da rede, Roberto Levy Filho, o público está reduzido por fatores como as restrições impostas àas salas e os constantes adiamentos das grandes apostas.
– Nossa esperança é que comece a retomar ali por maio. Hoje está sendo de cinco a 10 pessoas por sessão. Janeiro estava melhorando, mas ontem (4 de fevereiro, quinta-feira, um dia antes de GZH visitar a sala) foi um dos piores dias. Em Cruz Alta, não teve nenhuma das três sessões: 16h30, 19h e 21h. Não veio ninguém. Foi horrível. Estava chovendo muito forte por lá, mas mesmo assim – lamenta.
Presidente do Sindicato dos Exibidores Cinematográficos do Estado, Hormar Castello Jr., aponta que alguns cinemas conseguiram obter auxílio com empréstimos e leis de incentivo, mas outros estão totalmente descapitalizados. Em sua avaliação, a escassez de produtos para exibição talvez seja a maior dificuldade no momento. Hormar também critica as ações do governo do Estado ao determinar o fechamento das salas.
– Sem a pronta ação das cogestões regionais, os cinemas não teriam conseguido reabrir suas portas. Isso com todos os protocolos de segurança aplicados e demonstrado de forma incansável aos administradores públicos. Ficar sem trabalhar é a sentença de morte de um negócio como a exibição cinematográfica – avalia.
A crítica de Hormar ganha coro com Levy Filho:
– Enquanto os cinemas eram reabertos em outros Estados, por aqui ficavam fechados. Brigamos para continuar trabalhando.
– Como é que igreja pode ficar aberta em bandeira vermelha e cinema não? E os bares com aglomeração? – queixa-se Cristiane Brandolt, proprietária do Cult Cinemas, de Alegrete e Ijuí. – Acho que a recuperação mesmo será em 2022. Em 2021, precisamos que o cinema fique aberto, só, para sobrevivermos. A pandemia tem que acabar para as pessoas retomarem a confiança. E as distribuidoras têm que manter os lançamentos. Uma coisa está ligada à outra.
Levy Filho também vê 2021 como um ano de contenção:
– Vamos tentar trabalhar o máximo para tentar diminuir o prejuízo. A gente tem que se reinventar neste ano.
Para Janete Jarczeski, proprietária do Cine Dunas, no balneário Cassino, em Rio Grande, que se encontra fechado, a perspectiva é de retomada das exibições.
– Mas sabemos que não será como era antes. Que isso sirva de uma grande reflexão para que a humanidade como um todo possa se reestruturar, rever suas atitudes e aí sim avançar.
E o futuro será com as salas de calçada. Mesmo diante das dificuldades decorrentes da crise sanitária, que se soma ao crescimento exponencial de lançamentos pelos serviços de streaming, nenhum exibidor ouvido pela reportagem acredita que esteja próximo o fim da experiência coletiva de assistir a um filme no mesmo espaço.
– Não acredito que o ritual de cinema vá morrer. As pessoas necessitam daquela energia compartilhada, do encontro. É bom e confortável assistir a um filme em casa, mas o ritual de você se preparar e aproveitar a experiência social de ver um filme é outra coisa. Nós somos seres sociais – pontua Janete.
Cristiane frisa que o cinema de calçada superou várias dificuldades ao longo da história, algo que é ilustrado no diálogo de Cinema Paradiso citado no começo desta reportagem.
– O cinema não vai morrer. A pandemia é passageira, embora a gente fique alarmado enquanto se vive nela. Quantas vezes o cinema já não foi ameaçado de fechar? Como quando surgiu a TV. Depois teve os DVDs, a internet, a pirataria. E o cinema sobreviveu.
Como já se expressava no drama italiano oitentista, de alguma forma, o cinema segue sendo um sonho. Ou nem precisa ser exatamente um sonho.
No dia 5 de fevereiro, uma sexta-feira em que GZH visitou o Cine + Arte Tanópolis, apenas um espectador compareceu à sessão das 15h30min. Gabriel Lima, 18 anos, chegou de mochila para assistir a Mulher-Maravilha 1984 pela terceira vez. É um frequentador assíduo da sala, que costuma marcar presença por ali sobretudo nos fins de semana. Por quê?
– Não tenho nada melhor para fazer – ele responde, rindo.