Como tem feito com praticamente todas as áreas da cultura desde que a elegeu como alvo prioritário de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro pauta discussões ao longo do Festival de Gramado. Não houve dia em que as manifestações dos artistas apresentando seus filmes não tivessem menções à escalada da crise do financiamento ao audiovisual.
No fim de semana, o presidente disse em uma live que estava “garimpando” e vetando projetos com captação de recursos já aprovada num edital para TVs públicas, para produções com foco na identidade de gênero. Nesta quarta (21), foram anunciadas a suspensão do edital por completo e a demissão do secretário da Cultura, Henrique Pires.
Um dos afetados nessa “garimpagem” foi Allan Deberton, diretor do longa Pacarrete, que integra a mostra competitiva de longas nacionais. Ele é o produtor de Transversais, que conta a história de cinco cearenses transgêneros. A série concorria à chamada pública RDE/FSA Prodav – edital com o objetivo de selecionar séries para a programação de canais como a TV Brasil, obtendo financiamento por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Para o cineasta, a atitude do presidente configura um desrespeito à classe:
— Está instaurada a censura. Ele mexe com a questão da diversidade de produção, que é característica do cinema brasileiro. Somos reconhecidos internacionalmente por esse motivo. Somos diversos porque falamos sobre vários temas.
O cineasta lembra que certos grupos têm predisposição à hostilidade com a classe artística. Os ataques, destaca, ocorreram logo após as primeiras publicações na imprensa sobre o veto:
— Muitas pessoas foram ao Facebook atacar e falar expressões como “vai parar de mamar na Lei Rouanet”. Ou algo como “que idiotice, tanta coisa para investir, como educação, saúde...”, como se a cultura não tivesse direito de ser incentivada. Isso nos deixa numa posição de criminosos.
Para o diretor, há um conjunto de desinformações no governo Bolsonaro:
— Isso vai fazer o setor recuar muitos anos. É um setor que demorou para chegar onde está. Estamos bastante preocupados com o decréscimo em termos de filmes lançados e produzidos. Já se especula o que vamos fazer no ano que vem. Vamos encontrar meios. Mas é muito cansativo ficar brigando por isso.
Protestos
Na manhã desta quinta-feira (22), durante uma homenagem aos atores Thiago Lacerda, Murilo Rosa e Fernando Alves Pinto, a mesa de debates leu um manifesto assinado por 22 secretários estaduais de Cultura em favor da Agência Nacional do Cinema (Ancine, órgão de regulação e fomento do audiovisual que está no centro das discussões entre o governo e os profissionais do setor) clamando pela realização dos editais previstos em lei. Assinam o texto, entre outros, a secretária da Cultura do Rio Grande do Sul, Beatriz Araújo.
As manifestações contra os atos do governo começaram já no primeiro dia do Festival de Gramado, na exibição, fora de competição, de Bacurau. No palco com sua equipe, Kleber Mendonça Filho, diretor premiado em Cannes este ano, disse:
— Somos profissionais da área da cultura e eu queria passar o microfone para cada um dizer o que faz no filme. Exigimos respeito.
No domingo, profissionais do cinema gaúcho protestaram no tapete vermelho bradando: “Pelo cinema! Pela cultura! Por uma arte livre, sem censura!
Ao longo do festival, muitos profissionais ressaltaram os aspectos econômicos do setor, com número de empregos diretos e indiretos gerados por cada filme presente no evento - mil em Bacurau, 860 em O Homem Cordial, 1.260 em Hebe: A Estrela do Brasil. Equipe e elenco do aclamado Pacarrete seguraram cartazes de protesto e ouviram muitos “Fora Bolsonaro” no Palácio dos Festivais.
O que dizem os profissionais do audiovisual presentes em Gramado
Carolina Kotscho, roteirista de Hebe: a Estrela do Brasil:
É gravíssimo o que está acontecendo, até porque os projetos que ele mostrou estavam atendendo uma rubrica do próprio edital. E você interromper um edital em andamento, já publicado, é gravíssimo. E não dá nem para saber de fato o que ocorreu, se o secretário se demitiu ou foi demitido, é sempre assim, tudo é colocado, desmentido, refalado, mas a verdade é que o edital foi previsto em lei e a gente precisa respeitar a lei.
Maurício Farias, diretor de Hebe: a Estrela do Brasil:
A cultura é o território livre do diálogo, é uma manifestação espontânea, e isso é uma coisa incontrolável. É uma manifestação que se reflete de várias formas, na música, no cinema, na arte. E acho que a pressão de um governo que tenta controlar a produção cultural de seu país, tenta dizer o que o povo deve falar para si mesmo, o que deve sentir, é uma imposição só vista em governos autoritários e não democráticos.
Zeca Brito, diretor de Legalidade e do Instituto Estadual de Cinema (Iecine-RS):
Acho que cabe a todo brasileiro nesse momento histórico procurar interpretar o Brasil para entender o que está acontecendo. Não cabe na dinâmica institucional ter a censura como paradigma de futuro em um país que só existe devido à diversidade e à diferença.
Fernando Alves Pinto, ator de Legalidade e Vou Nadar até Você, ambos exibidos em Gramado:
A gente chegou hoje a um ponto em que a produção cinematográfica no Brasil está saudável, mas nunca foi fácil. A produção cresceu, apareceram outras mídias. Eu procuro ser otimista. Antes do último corte, no governo Collor, a qualidade do cinema nacional não era a de hoje, e não havia tantas formas de pôr uma história em circulação. Por isso eu acho que o indizível que está no Planalto não vai conseguir nos paralisar.
Iuli Gerbase, diretora do curta A Pedra:
As notícias estão muito chocantes. As pessoas veem um orçamento, por exemplo, ‘esse filme foi R$ 2 milhões’, e imaginam um diretor pegando essa quantia e botando no bolso, quando na verdade tu empregas 200 pessoas. Espero que, se eles são tão ignorantes e não dão bola para a cultura, que pelo menos o lado econômico bote alguma coisa naquela cabeça. A censura acho absolutamente ridícula. Todo filme vai ter sua censura (classificação indicativa), 16 ou 18 anos, e os pais escolhem se levam seus filhos ou não. Em 2019, eu não esperava por essa.
Lázaro Ramos, ator homenageado com o troféu Oscarito:
Profissionais da indústria cinematográfica estão se mobilizando e fazendo uma coisa importantíssima, que é dar informação: os números que o cinema movimenta, os empregos que são gerados, os números de espectadores, o prestígio que é gerado nos festivais. Se ficarmos só focando naquele que está desinformando, a gente pode estar ampliando uma voz que não está de acordo com a verdade.
Mauricio de Sousa, desenhista homenageado com o troféu Cidade de Gramado:
Eu tenho uma desculpa para isso: isso é fase. Sempre houve momentos em que os artistas são hostilizados, não são entendidos, ou não são aceitos. Há momentos e depois as coisas passam. Fases. Se você não aceita como criativo que isso é uma fase, fica desanimado. Pode perder o entusiasmo para criar. Vamos continuar criando independentemente do ambiente.
Andrea Beltrão, atriz de Hebe: A Estrela do Brasil:
Não se pode parar de fazer cultura e não se pode parar de fazer cinema por vontade de uns e de outros. É a identidade de um povo, um país. São as nossas histórias. Não calarão. Há uma tomada de posição muito perversa em relação à cultura e à classe artística. Acho que a cultura provoca reflexão, pensamento, ela traz conhecimento, traz identidade. Isso está incomodando muito nos dias de hoje. Paciência. Segura a pemba!
Allan Deberton, diretor de Pacarrete:
Está instaurada a censura. Além do presidente ser homofóbico como demonstrou ser e racista com as questões que levaram ele a colocar no saco as produções nacionais que foram aprovadas no edital da EBC de TVs públicas, isso configura um desrespeito à classe, preconceito nato. Ele mexe com a questão da diversidade de produção que é característica do cinema brasileiro, nós somos reconhecidos internacionalmente por esse motivo. Somos diversos porque falamos sobre vários temas. A classe não vai se deixar abalar por esse tipo de declaração e atitude porque nós somos muito mais fortes do que isso, principalmente consolidados e respeitados pelo que fazemos. Temos números que provam a qualidade do nosso cinema. Temos valor de produção que estão impressos a esses filmes.