Por Maria Amelia Bulhões
Crítica e professora de arte, coorganizadora do catálogo do MAC RS
Todo museu tem como tarefa prioritária preservar e dar visibilidade ao seu acervo, criando referências simbólicas para a sua comunidade. O catálogo de obras do Museu de Arte Contemporânea RS responde a essa demanda. Acalentado há muito tempo, o projeto realizou-se no momento difícil de isolamento físico ensejado pelo controle da covid-19, que ocasionou a suspensão das atividades em museus, galerias, feiras de arte, residências artísticas e ateliês, trazendo demissões, cancelamentos de mostras e redução de vendas, entre outros problemas. Entretanto, toda moeda tem duas faces, e a Lei Aldir Blanc, criada para apoiar o setor cultural neste contexto, tornou possível essa realização. Sob a coordenação de Vera Pellin, André Venzon e minha, contando com uma dedicada equipe de trabalho, desenvolveu-se um projeto adaptado às novas condições.
O catálogo tem versão trilíngue, impresso ou sob a forma de e-book, que está disponível em acervomacrs.com, criado especialmente para o projeto. A exposição que marca o seu lançamento, realizada nos espaços do MAC na Casa de Cultura Mario Quintana, foi documentada em vídeo que pode ser visto no mesmo site.
O catálogo apresenta 1.813 obras de 921 artistas, catalogadas por uma equipe de bolsistas e funcionários do MACRS, fotografadas por Carlos Stein e Fabio Del Re; seu texto analisa a história da arte contemporânea no Estado, a presença do Museu nessa história e a formação do seu acervo.
Um estudo quantitativo aponta tendências no seu perfil. Apesar da predominância masculina (476), há importante presença feminina (423), de transgêneros (3) e não identificados (3), com minoria de negros (11) e indígenas (2). As categorias artísticas estão assim escalonadas: meios gráficos como fotografia (469) e gravura (422) são os mais destacados numericamente, seguidos por pintura (236), desenho (167) e a escultura (126). No tridimensional, além da escultura, há objetos (46) e instalações (38). Nas categorias mais recentes, o vídeo se destaca (82), seguido pelo livro de artista (30), os documentos de performance (13) e a arte digital (14). Apesar de a maioria das obras estar em categorias tradicionais, distintas tendências da contemporaneidade se encontram no acervo.
Em relação às datas das obras, observa-se: 1970/80 (213), anos 1990 (258) e anos 2000 (1.125), proporção que mostra a dominância da produção recente. Em relação ao Estado de origem dos artistas, a maioria é do Rio Grande do Sul (463), com destaque também para São Paulo (112), Rio de Janeiro (27), Minas Gerais (22), Pará (14) e Santa Catarina (12), contando, ainda, com estrangeiros (59). O grande número de gaúchos deixa claro o foco do museu em preservar e dar visibilidade à arte local.
Está aberta, na Casa de Cultura Mario Quintana, a exposição Arte Contemporânea RS, uma proposta de leitura desse acervo, destacando obras que marcam mudanças na produção artística, por suas estratégias, seus recursos materiais, formais ou de conteúdo. São obras que rompem com a visualidade modernista preponderante por longo período, criando fissuras nas tendências conservadoras do sistema da arte local. Ao sugerir proximidades entre as obras, coloca-se para o espectador o desafio de descobrir relações e criar seus próprios caminhos de fruição.
É importante destacar que na arte contemporânea todos os meios de expressão se equivalem e se articulam em complexa convivência, possibilitando que objetos oriundos de diferentes campos se integrem ao circuito artístico. O resultado é um panorama diverso, com obras difíceis de classificar, que se aproximam do banal, que substituem o resultado acabado pelos documentos do processo de trabalho e que adotam o hibridismo como proposta estética, estabelecendo novos paradigmas. Nessa rede, a criatividade tece suas tramas e se articula às conjunturas do sistema de arte, que também se modifica continuamente. No delicado fio da pluralidade, escrevemos nossa história. Radical ou não, a diversidade da produção local é em si mesma um sintoma da contemporaneidade.