Na casa da família Savian, o diálogo com a pequena Antônia, três anos, é rotina. No dia a dia, Henrique, 38, advogado, e Tauãna, 33, médica, procuram dar autonomia e protagonismo à pequena – da realização de tarefas simples, como servir a própria comida, a conversas sérias.
Desde os primeiros anos de vida, os pais buscam desenvolver a inteligência emocional na formação da filha naturalmente. Para isso, lançam mão de estratégias como ajudá-la a identificar seus sentimentos e as causas – Antônia está em uma fase em que, muitas vezes, surge a birra, conforme o casal.
— Percebemos que, socialmente, ela já é uma criança que tem muitas ferramentas. Então, a gente fica contente, porque é para isso que a gente prepara, para que ela possa, de forma independente, saber o que tem de fazer e o que não tem — afirma Henrique.
Quando Antônia está agitada ou irritada, os pais esperam que ela se acalme e, então, explicam determinada situação. Nas noites em que Tauãna está de plantão no hospital e não dorme em casa, o pai justifica que a mãe precisa cuidar de pessoas que necessitam de seu apoio.
— A gente percebe que ela fica triste em um primeiro momento, mas logo já entende. Ela sempre absorve muito bem e entende a maneira de lidar com aquela frustração momentânea — aponta.
Ensinar inteligência emocional para esse público envolve saber reconhecer, entender e expressar as emoções, e regular o comportamento impulsivo.
Estudos apontam que crianças com habilidades emocionais bem desenvolvidas têm menos problemas comportamentais e um melhor desempenho acadêmico, segundo Lisiana Saltiel, psicóloga especialista em psicoterapia de crianças e adolescentes. Além disso, há redução nos riscos de depressão e ansiedade na vida adulta.
Habilidades como autorregulação, empatia e resiliência, desenvolvidas na infância, se tornam fundamentais na vida adulta, salienta Lisiana, também especialista em neurociências com foco em inteligência emocional. Adultos com essas competências têm melhores relações interpessoais, são mais resilientes em crises e apresentam maior satisfação profissional. Esses pontos são a base para lidar com desafios e construir uma vida equilibrada – e com mais saúde mental, sustenta a especialista.
Luciana Fossi, psicóloga que trabalha com crianças e conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, ratifica:
— Quanto mais a criança puder compreender o seu mundo interno e nomear seus sentimentos, suas demandas e necessidades, mais recursos ela terá na vida adulta para lidar com as vicissitudes da vida.
Lisiana acrescenta que uma criança com certa inteligência emocional lida melhor com uma experiência traumática, conseguindo regular as emoções e até utilizar alguma técnica de respiração ou palavra de segurança para se acalmar.
Por outro lado, uma criança sem essas habilidades tem uma tendência a ser mais sobrecarregada pelo pânico, o que agrava os sintomas desse trauma posteriormente – podendo ficar hipervigilante, hiperalerta, com pesadelos e retraimento social.
Crianças que estão desenvolvendo inteligência emocional têm mais facilidade até para ressignificar essa experiência traumática depois, ter uma recuperação mais rápida. Reduz o risco de elas desenvolverem traumas graves.
LUCIANA FOSSI
Psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia
Luciana também destaca o papel fundamental dos pais em situações traumáticas, que devem tentar tranquilizar a criança e passar segurança, protegendo-a visualmente se for o caso, utilizando frases curtas e focando em sua presença.
Como ensinar inteligência emocional em casa
Conforme Luciana, é o adulto que fornece os instrumentos para que a criança possa compreender o mundo externo e o interno. É como se exercesse a função de “tradutor” daquilo que a criança expressa, mas ainda não consegue nomear ou controlar.
É a partir desse processo que a criança passará a ter ferramentas – ou seja, desenvolverá a inteligência emocional e o autoconhecimento para mediar suas emoções e comportamentos.
— Quando a criança se apresenta de forma muito irritada, e os pais conseguem compreender esse comportamento como resultante da privação de sono, e isso é nomeado para a criança, “tu estás brigando pois estás com muito sono ou tu estás chorando pois estás muito cansada, já está na hora de ir dormir — exemplifica a psicóloga.
É preciso considerar a capacidade de compreensão da criança e seu domínio de linguagem, lembra Luciana. Quanto menor a criança, mais simples e acessível deve ser a comunicação. Com o desenvolvimento, ela vai conseguindo compreender a linguagem de forma mais complexa, assim como as diversas emoções experimentadas.
Quando e como começar?
A inteligência emocional pode ser introduzida desde a primeira infância, pois bebês já são capazes de perceber emoções e reagir a elas, segundo Lisiana. A partir dos dois anos, as crianças começam a desenvolver a capacidade de identificar suas próprias emoções, e entre três e cinco, já podem aprender formas de expressar e nomear o que sentem.
O neurodesenvolvimento infantil segue fases nas quais algumas competências emocionais podem ser mais facilmente ensinadas e compreendidas, detalha a psicóloga. Até os três anos, o cérebro está em rápida expansão sináptica, momento em que é possível introduzir a linguagem emocional básica, como "feliz", "triste" ou "brabo".
A partir dos seis anos, o córtex pré-frontal, responsável pela regulação emocional, começa a amadurecer, permitindo que as crianças desenvolvam a capacidade de esperar, controlar impulsos e resolver problemas.
Esses processos dependem muito das interações com adultos e de um ambiente seguro, que valorize e tenha como modelo comportamentos saudáveis, salienta. Os pais podem apoiar as crianças criando um ambiente acolhedor e incentivando o diálogo sobre emoções.
Papel de todos
Pais, cuidadores, escolas e sociedade são essenciais nesse processo. Em países como Reino Unido, Finlândia, Canadá e Estados Unidos, as escolas possuem programas que promovem a inteligência emocional. Já no Brasil, a Base Nacional Comum Curricular incentiva escolas a incluir competências socioemocionais no ensino, lembra Lisiana.
Na escola de Educação Infantil Pais e Filhos, em Porto Alegre, frequentada pela pequena Antônia, trabalha-se com o Método Exclusivo de Acolhimento, que valoriza as emoções – base da cognição, na visão da diretora Magliane Locatelli.
— Começa com o cuidado para entender as frustrações das crianças, permitindo que elas vivam isso de forma saudável e aprendam a nomear suas próprias emoções. A intenção é oferecer um espaço que faça a criança se sentir ouvida e respeitada, tenha a sua inteligência emocional desenvolvida e aprenda a discernir os seus gatilhos e, então, regular as emoções, assim como criar o senso de empatia, ao respeitar o sentimento do outro — explica.
A escola incentiva as crianças a se expressarem por meio da arte. Com isso, é possível identificar tópicos emocionais a serem abordados em rodas de conversa, validando os sentimentos e ensinando caminhos possíveis para soluções de conflitos. Os ensinamentos da escola são complementados pelos dos pais, como no caso da família Savian – e vice-versa.
— O nosso papel não é viver a vida dela, é preparar ela para que viva a vida dela. Estar preparada para quando tiver de sair de casa ou enfrentar os desafios que vai enfrentar. Tornar ela dona de si mesma, pensando, agindo, errando e tomando as consequências pelos erros também — reconhece Henrique.
É importante validar o que a criança está expressando e não julgar nenhum tipo de manifestação emocional, nem mesmo as tradicionalmente rotuladas como “negativas”, como a raiva e a tristeza, conforme Luciana:
— Se a criança está triste ou com raiva e não consegue expressar esses sentimentos de forma adequada, os adultos podem ser um guia, podem orientar o que a criança pode buscar de recursos para expressar esses sentimentos, ao invés de negar que eles possam existir ou até mesmo de dizer que são sentimentos feios ou errados.
O que costuma ocorrer, entretanto, é o oposto: pais ensinam as crianças a reprimir seus sentimentos e a “engolir o choro”, algo que, lá na frente, pode ter uma conta alta – resultando, por exemplo, na fase adulta, em comer a cada gatilho emocional que precisou reprimir na infância, segundo a especialista em inteligência emocional.
A chave seria compreender que as emoções são extremamente importantes na constituição da criança: chorar, postergar desejos, lidar com frustrações, ficar brabo, irritado, com raiva, triste, feliz e até com inveja... são estados emocionais extremamente normais e que deveriam ser esperados e vistos pelos responsáveis como algo comum ao desenvolvimento.
LISIANA SALTIEL
Psicóloga especialista em psicoterapia de crianças e adolescentes
Dicas práticas para o desenvolvimento de inteligência emocional
Com alguns processos, atitudes, e ações no dia a dia, os pais podem contribuir diretamente para o desenvolvimento da inteligência emocional das crianças, de acordo com a faixa etária. Confira algumas dicas da psicóloga Lisiana Saltiel:
De dois a quatro anos: identificação de emoções
Nessa idade, o objetivo é ajudar a criança a reconhecer e nomear emoções de maneira simples.
- Jogo das emoções: use fotos com rostos que mostrem diferentes expressões emocionais (feliz, triste, bravo, surpreso). Peça para a criança identificar as emoções e relacionar com momentos em que ela se sentiu assim.
- Nomeando emoções: durante o dia, quando a criança expressar uma emoção, ajude-a a nomeá-la. Por exemplo, "você está brabo porque o brinquedo quebrou? É frustrante quando isso acontece, não é?".
- Histórias: leia livros infantis com personagens que passam por diferentes emoções. Pergunte como eles se sentem em certas partes da história, ajudando a criança a entender e identificar emoções no contexto.
De cinco a sete anos: expressão emocional
Nessa fase, as crianças já conseguem falar sobre seus sentimentos e começam a aprender formas de autorregulação.
- Respiração do balão: ensine a criança a respirar fundo, imaginando que está enchendo um balão com ar ao inspirar e esvaziando-o ao expirar. Esse exercício simples ajuda a regular a respiração e acalmar em momentos de raiva ou frustração. Como opção pode ser dito para "assoprar a velinha" ou "cheirar a florzinha".
- Diário das emoções: incentive a criança a desenhar ou escrever (se já for alfabetizada) sobre como se sentiu durante o dia. Isso cria um espaço seguro para expressar emoções e refletir sobre elas.
- Jogos: brinque de jogos que exijam esperar a vez e colaborar com os outros. Isso ajuda a criança a desenvolver paciência, empatia, resiliência e a entender as necessidades dos colegas.
De oito a 10 anos: empatia e solução de problemas
Nesta idade, as crianças já conseguem se colocar no lugar dos outros e encontrar soluções para problemas emocionais.
- Situações: crie cenários como “um amigo não quis brincar” ou “alguém me chamou de um nome ruim” e pergunte à criança como ela se sentiria e o que poderia fazer para resolver. Isso ajuda na tomada de perspectiva e resolução de conflitos.
- Árvore da calma: ajude a criança a desenhar uma árvore e, em cada folha, escreva estratégias que ela possa usar quando estiver triste ou frustrada (por exemplo: respirar fundo, contar até 10, conversar com alguém). Ela pode usar o desenho sempre que sentir que precisa se acalmar. Uma opção é a "garrafa da calma", no lugar da árvore.
- Jogo do espelho: esse exercício ajuda na empatia e consciência corporal. Uma criança faz uma expressão facial, e a outra deve imitar. Ao fim, discutam como cada expressão pareceu e o que ela transmite, ajudando a entender melhor as emoções dos outros.
De 11 a 13 anos: refinando habilidades emocionais
Os jovens podem explorar mais profundamente seus sentimentos e desenvolver empatia e habilidades de autorregulação.
- Diário: peça que o pré-adolescente escreva sobre situações em que sentiu felicidade, tristeza, frustação ou outro sentimento negativo, o que fez para lidar com isso, e o que pode fazer de diferente, se for necessário. Esse exercício desenvolve autorreflexão e compreensão emocional.
- Mapa de gratidão e sucesso: ajude a criar um mapa no qual ele anota momentos e conquistas que trouxeram felicidade ou orgulho. Esse exercício é indicado para construir resiliência emocional e um senso de autovalor e autoconfiança.
- Resolução de conflitos: proponha situações fictícias de conflitos para serem resolvidas por meio de conversas encenadas. Isso ajuda a praticar o controle emocional e a habilidade de resolver conflitos de maneira saudável. Recomenda-se temáticas como bullying, cigarro eletrônico e outros que sejam de curiosidade deles e que abram um espaço para trabalhar essas questões em casa.