Como saber se o desenvolvimento de uma criança está de acordo com o esperado para a idade dela? A resposta é complexa pelo fato de cada um ter características próprias que influenciam na evolução de habilidades. Porém, uma cartilha da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) pode ajudar na tarefa, ao elencar os principais marcos do desenvolvimento de crianças com idades entre dois meses e cinco anos.
O material – que pode ser acessado neste link – foi divulgado em fevereiro e reúne exemplos de atividades motoras, cognitivas, emocionais e de linguagem comuns a cada fase da vida dos pequenos. Não atingir essas habilidades pode indicar atraso no neurodesenvolvimento, o que deve motivar busca por ajuda especializada para evitar prejuízos na vida da criança, dizem especialistas.
A atenção à evolução é por vezes negligenciada por pais e profissionais, sob justificativa de que cada pessoa tem o “próprio tempo”, o que impede o tratamento precoce, segundo os estudiosos.
A cartilha foi elaborada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC na sigla em inglês) dos Estados Unidos, na forma de um programa para identificação precoce de atraso do neurodesenvolvimento, conhecido como Act Early e traduzido para o português por uma equipe da SBP.
Segundo a entidade, apesar de a cartilha ter sido elaborada fora do país, os preceitos são válidos para crianças de diversas regiões do mundo.
— Os marcos do desenvolvimento são habilidades que 75% das crianças normalmente adquirem naquelas faixas etárias (dos dois meses aos cinco anos). Se elas não têm essas habilidades, precisam ser avaliadas, pois pode existir algum fator interno, transtorno ou falta de estímulo — resume Flávio Melo, membro da Sociedade Paraibana de Pediatria e da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Os marcos do desenvolvimento estão presentes também na Caderneta da Criança, distribuída pelo Ministério da Saúde (MS), que auxilia no acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil e todo cidadão tem direito a receber um exemplar ao nascer. Segundo o MS, 12% das crianças brasileiras de até cinco anos têm suspeita de atraso no desenvolvimento e não apresentam os comportamentos e habilidades esperados para essa faixa etária. Por isso, para Melo, o país precisa avançar na construção de uma cultura de atenção ao assunto.
— É uma área que, muitas vezes, não é tratada em consultas de rotina, nas quais se verifica o crescimento da criança, mas não se avalia o desenvolvimento dela. Da mesma forma que o peso pode indicar algum problema, a criança não se desenvolver adequadamente pode indicar uma questão mais séria do que as pessoas imaginam — acrescenta.
Dificuldades motoras, de comunicação e de sociabilidade estão entre os impactos mais comuns na vida de crianças por conta de atrasos no desenvolvimento.
Premissa equivocada
Estudiosos do desenvolvimento infantil buscam mudar uma premissa difundida em todo o mundo de que “cada criança tem seu tempo”, no caso de uma demora anormal para começar a falar ou andar, por exemplo. João Ronaldo Krauzer, pediatra e chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Moinhos de Vento, repudia esse entendimento:
As crianças não são todas iguais, mas existem marcos que devem ser atingidos.
JOÃO RONALDO KRAUZER
Chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Moinhos de Vento
— As crianças não são todas iguais, mas existem marcos que devem ser atingidos. Algo está errado quando uma criança chega aos dois anos e não fala nada. Nessa idade, ela tem que estar falando várias palavras, como “papai” , “mamãe” e iniciando frases simples. Os bebês são diferentes e podem demorar um pouco mais para o atraso ser identificado. Os marcos não devem, portanto, enlouquecer a família, e sim, chamar a atenção para que o assunto seja levado a um especialista da área.
Krauzer diz que identificar atrasos é mais difícil no primeiro ano de vida da criança; por isso, é uma fase na qual a atenção deve ser reforçada. A partir dos dois anos, os pequenos devem desenvolver habilidades mais evidentes, como andar e dizer as primeiras palavras.
As causas que contribuem para o atraso no desenvolvimento são variadas e podem envolver fatores genéticos, neurológicos e ambientais. Uma das mais comuns no momento, segundo o pediatra, é o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de casos saltou de um a cada 150 crianças com oito anos, em 2000, para um a cada 36, em 2020.
Quanto antes detectarmos um atraso do desenvolvimento, maior é a chance de a intervenção ser mais efetiva .
RICARDO SUKIENNIK
Pediatra da Santa Casa de Porto Alegre
O estudo é do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, que desenvolveu a cartilha da SBP. O Brasil não tem um levantamento sobre essa parcela da população, mas Krauzer indica que a situação é também de aumento de casos no país.
— São crianças com dificuldade de relacionamento, que não interagem com os colegas e têm a preferência de brincar sozinho. A escola é muito importante nesse contexto (de ajudar no diagnóstico), porque um professor atento consegue comparar as crianças e alertar os pais para essa situação — aponta o estudioso.
Segundo Ricardo Sukiennik, pediatra da Santa Casa de Porto Alegre e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), o diagnóstico precoce é essencial para minimizar impactos na vida do indivíduo.
— Quanto antes detectarmos um atraso do desenvolvimento, maior é a chance de a intervenção ser efetiva — resume.
Sukiennik acrescenta que o diagnóstico tardio também tem um componente econômico que atrapalha a resolução de uma dificuldade.
— Quanto mais demorar, mais cara é a intervenção, porque é preciso uma equipe multiprofissional, que exige pessoas especializadas. Detectar precocemente, além de ser melhor para criança, é positivo para o sistema de saúde como um todo — pontua.
Para Sukiennik, os pais e profissionais devem ter cuidado com a linguagem, comunicação e socialização dos pequenos.
— Não é apenas identificar se a criança fala ou não. Além disso, é importante observar se ela tem uma linguagem não verbal, se dá “tchauzinho”, se manda beijo, se ela “fala” com as mãos e entende o que os pais falam para ela. Também é importante prestar atenção na socialização, porque tradicionalmente a maioria dos médicos e profissionais de saúde é melhor treinada para detectar atrasos motores — acrescenta.