O número de diagnósticos de pessoas com autismo disparou nos últimos anos, afirmam especialistas no assunto. A mudança no modo de identificar o transtorno, disseminação do conhecimento e a inclusão social do grupo são alguns dos motivos que contribuem para o cenário.
O aumento dos casos também envolve adultos, o que é chamado de diagnóstico tardio. A atriz brasileira Letícia Sabatella e a cantora australiana Sia são exemplos de personalidades identificadas com a condição na fase adulta e que deram visibilidade ao tema nos últimos meses.
Adultos com diagnóstico recente dizem que a descoberta ocorreu “por acaso”. Além disso, a condição os ajudou a explicar situações vividas desde a infância, como episódios de depressão e dificuldade no relacionamento com outras pessoas.
O autismo é um transtorno do desenvolvimento neurológico que influencia o comportamento social, a comunicação e a linguagem do indivíduo. Ele é geralmente identificado na infância: na maioria dos casos, as condições são aparentes durante os primeiros cinco anos de vida, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Os dados sobre o assunto são escassos, baseados apenas em estimativas. A OMS acredita que existam 70 milhões de pessoas com o transtorno no mundo, 2 milhões no Brasil. O país terá dados concretos do assunto neste ano, já que o Censo Demográfico 2022 incluiu a pergunta: “Já foi diagnosticado(a) com autismo por algum profissional de saúde?”. O resultado do levantamento, porém, ainda não foi divulgado.
Diagnóstico
Thiago Rocha, psiquiatra e coordenador do Centro Especializado em Neurodesenvolvimento Infantil (Ceni) do Hospital Moinhos de Vento, diz que a compreensão sobre o aumento de pacientes com autismo precisa considerar as mudanças nos critérios de diagnóstico.
Em 2013, o distúrbio passou a ser classificado como Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), com a publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5 na sigla em inglês). Assim, são englobadas subcategorias em um único espectro com três níveis de gravidade.
— As pessoas não passaram a ter autismo: elas já o tinham, só que não eram identificadas, ficavam à margem do sistema classificatório e acabavam não tendo o reconhecimento das características — explica Rocha.
Segundo o psiquiatra Alceu Gomes Filho, coordenador do comitê gestor do Centro de Referência do Transtorno Autista (Certa) de Porto Alegre, o acréscimo de pacientes com TEA está também relacionado ao modo como a sociedade tem tratado o assunto: o conhecimento sobre a condição está disseminado, o que ajuda na identificação. Somado a isso, episódios de discriminação têm diminuído.
Saber que você nasceu com uma condição e não ter ideia disso já na infância é bem complicado.
JOSIANE DUTRA DE SIQUEIRA
Moradora de Novo Hamburgo
— Antigamente, o indivíduo com TEA vivia mais excluído. Hoje nós temos pessoas com autismo trabalhando, com uma vida social mais inclusiva. Por isso também temos uma percepção maior da presença do autismo, tanto nas crianças quanto nos adultos — pontua.
É comum que indivíduos com transtorno do espectro autista apresentem condições concomitantes, como epilepsia, depressão, ansiedade e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Os especialistas esclarecem que não há um medicamento específico para o tratamento.
— A medicação não é utilizada para modificar as características do autismo, e sim minimizar os sintomas, melhorar quadros que podem estar ocorrendo de maneira conjunta. Pessoas com o transtorno do espectro do autismo têm índices mais elevados de comorbidades quando comparados a pessoas sem esse diagnóstico — acrescenta o médico do Moinhos de Vento.
No caso de um diagnóstico tardio, o gestor do centro reforça a necessidade de busca por especialistas em TEA antes de qualquer ação por parte do paciente.
— É importante que pessoas que tiverem sintomas (do TEA) não se automediquem. A indicação é que busquem a rede de saúde, onde há informação certa e os profissionais adequados — diz Alceu Gomes Filho.
Adultos diagnosticados
No caso de Ivan Carlo Andrade de Oliveira, 52 anos, o diagnóstico para autismo ocorreu em setembro após uma pessoa próxima lhe sugerir que o neto dele poderia ter o transtorno.
— Resolvi ler sobre o assunto, assisti a vídeos e comecei a perceber que eu tinha mais características de autismo do que ele — resume o professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amapá.
Ele cita alguns sintomas que o levaram a procurar ajuda profissional: aversão a ambientes barulhentos, dificuldade de relacionamento, inabilidade ao participar de conversas em grupo e desconforto no contato físico com estranhos. Após uma bateria de avaliações, além do TEA, Ivan foi diagnosticado com TDAH.
— Não houve uma grande mudança na minha vida com diagnóstico porque eu já desconfiava. Mas foi interessante em outros sentidos, principalmente em relação a outras pessoas: nem todo mundo entende determinados comportamentos, então agora ficou mais fácil de explicar — pontua o morador de Macapá.
Josiane Dutra de Siqueira, 42 anos, também recebeu o diagnóstico para TEA e TDAH em setembro. Esse foi um processo iniciado em 2022: quando fazia estágio em uma escola, teve contato com um aluno com TDAH. Quis “entender” o menino e começou a pesquisar sobre o assunto. Nos estudos sobre autismo, ela se identificou com as características comuns do transtorno, em especial na parte de interação social e episódios de depressão.
— A princípio, isso me deixou em pânico. Saber que você nasceu com uma condição e não ter ideia disso já na infância é bem complicado. No entanto, aos poucos, estou buscando ressignificar todas as fases difíceis que atravessei — afirma.
A demora na descoberta do autismo pode tornar o tratamento ainda mais desafiador, pois adultos com essa condição têm especificidades relacionadas não somente à idade, mas também a padrões.
MIRIAM BELQUIS
Neuropsicóloga da Clínica Noah
A moradora de Novo Hamburgo diz que tem acompanhamento de uma psicóloga e relata que está em “processo de aceitação”.
— Tenho tentado me preservar mais, já que tenho conhecimento e ferramentas para reduzir a carga que carreguei por tantos anos. É algo recente, que estou buscando compreender — acrescenta.
Demanda reprimida
A necessidade de atenção especializada ao grupo de novos diagnosticados adultos motivou a criação do Centro de Referência do Transtorno Autista (Certa) em Porto Alegre. A instituição começou a funcionar em maio deste ano. São ofertadas 300 vagas para tratamento e acompanhamento de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) de crianças até 12 anos na Capital. Segundo Alceu Gomes Filho, a ideia é que seja criado o Centro+, dedicado para pessoas acima dos 12 anos.
— Passou a ser uma necessidade grande da sociedade, hoje, contemplar adolescentes e adultos, tanto no diagnóstico quanto no tratamento. Existe uma demanda reprimida em Porto Alegre, que, por um lado, é positiva, pois mostram que as pessoas estão mais atentas para o assunto — pontua o coordenador do comitê gestor do Certa.
Segundo ele, a criação do espaço já é estudada por profissionais da prefeitura da capital gaúcha. A estimativa do momento é que o centro comece a funcionar entre o final de 2024 e o primeiro semestre de 2025.
Desafios
Segundo Miriam Belquis, neuropsicóloga da Clínica Noah e especialista em atendimento de adultos com autismo, a condição prejudica o paciente em diversas fases da vida. E o diagnóstico tardio dificulta, entre outros aspectos, o tratamento profissional farmacológico e o treinamento de habilidades sociais, pois o paciente já está fase adulta quando é diagnosticado.
— A demora na descoberta do autismo pode tornar o tratamento ainda mais desafiador, pois adultos com essa condição têm especificidades relacionadas não somente à idade, mas também a padrões, que, muitas vezes, não são suscetíveis às mesmas intervenções de que os jovens com autismo podem se beneficiar — assinala a neuropsicóloga.
O diagnóstico de TEA é clínico, feito a partir das observações do paciente e de entrevistas com os pais, no caso de crianças. Os profissionais que atuam no tratamento da condição incluem neurologistas, psiquiatras, psicólogos, fonoaudiólogos e psicopedagogos. Não existe uma abordagem padrão: cada paciente tem um acompanhamento focado nas necessidades individuais.
— Na psicologia é possível trabalhar com abordagens que auxiliam no desenvolvimento do paciente, mas principalmente auxiliá-lo a melhorar dificuldades características do autismo, como o desenvolvimento de habilidades práticas, autoajuda, socialização, comunicação, organização, análises de situações e habilidades de mudança de pensamento — acrescenta Miriam.
Além de acompanhamento qualificado voltado aos pacientes que têm o transtorno, afirma a neuropsicóloga, a atenção dos familiares é decisiva para a qualidade de vida do paciente e o sucesso de seu tratamento.
— É importante que a família do paciente diagnosticado com autismo mantenha um canal de comunicação aberto, para entender melhor o processo e o próprio desenvolvimento da pessoa adulta com TEA, que é bem específico. É muito importante ter estabelecido objetivos claros e também metas: uma vez definidos, a terapeuta e/ou a equipe multidisciplinar que o atenderem e a sua família devem trabalhar juntos em prol da qualidade de vida da pessoa com TEA — finaliza a especialista.