Para milhares de gaúchos, o Litoral Norte deixou de ser destino apenas das férias de verão. Assim como ocorreu na pandemia, a enchente no Estado mais uma vez transformou cidades como Capão da Canoa, Imbé, Tramandaí e Torres em refúgios emergenciais ou permanentes.
O fenômeno, comprovado pelo Censo Demográfico de 2022 – quando se verificou que sete das 10 cidades que mais cresceram no RS desde 2010 ficam na região – voltou a ganhar impulso a partir de maio deste ano. Como uma das poucas áreas não atingidas pelos prejuízos decorrentes das enchentes, virou alternativa de moradia. A tendência é traduzida no número de matrículas da rede básica de ensino e na procura por unidades de saúde.
Só em Capão da Canoa, o prefeito Amauri Magnus Germano estima que no momento da crise a cidade passou de 63,6 mil habitantes, indicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para até 200 mil pessoas. Chegando ao inverno, o cenário era equivalente aos dias movimentados de veraneio, com população mais do que triplicada.
— Atendemos a cerca de cinco mil pessoas que vieram. Destas, calculamos que metade não retornou, 2,5 mil, aproximadamente. São pessoas que ou perderam tudo e ficaram aqui, ou compraram imóveis, alugaram, ficaram na casa de parentes e amigos... Muita gente pediu vaga em escolas e creches, e na área da saúde também aumentou muito. Estamos em sufoco por causa disso — afirma o gestor.
A Associação dos Municípios do Litoral Norte (Amlinorte) explica que vem acompanhando as transformações dos últimos anos, com um novo efeito a partir da enchente. Em função dos impactos que a migração gera, cidades estão buscando alternativas junto aos governos estadual e federal, sobretudo na saúde e educação.
— Os prefeitos também estão trabalhando no que diz respeito à redução de receita, situação gerada pelas perdas no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e no Fundo de Participação dos Municípios (FPM) — destaca o presidente da Amlinorte e prefeito de Maquiné, João Marcos Bassani dos Santos.
Pandemia mostrou um novo mundo à família de Michele
Entre as famílias que decidiram adotar um endereço no Litoral Norte, está a da enfermeira Michele Soares, 37 anos. Em meio à pandemia, na metade de 2020, a ex-moradora de Novo Hamburgo decidiu adquirir uma casa em Imbé. Na época, a ideia de passar alguns dias no local era provisória.
— Acabamos ficando cerca de cinco meses, e com uma vontade de “quero mais”. Aqui, adquirimos hábitos diferentes, parecidos aos que tínhamos na infância. Voltamos para Novo Hamburgo e começamos a planejar a mudança definitiva para o Litoral — conta.
Mas o espaço escolhido foi outro: Osório. A região das lagoas chamou a atenção de Michele e do esposo, Anderson Eli Silva, 41. A casa no Vale do Sinos foi vendida e a transição definitiva ocorreu no fim de 2023.
— Em dezembro voltamos a Imbé e, agora, faz cerca de um mês que estamos em Osório. A cidade é o que esperávamos. Há um bom campo no trabalho, é limpa, acolhedora, as crianças têm uma escola com estrutura, e até a questão da saúde nos chamou a atenção. Estamos gostando muito.
Municípios se reorganizam com novas matrículas na educação
Para acompanhar o crescimento da demanda no ensino básico, a Promotoria Regional de Educação de Osório informa que instaurou expedient para prestar orientação aos municípios. Até o momento, as informações são de que Imbé recebeu cerca de 50 alunos, Cidreira ampliou 25 vagas e Osório e Capão da Canoa, cada uma, cadastrou menos de 10 estudantes.
A prefeitura de Imbé confirma o número e acrescenta que o aumento a partir de 2021 foi de mais de 800 alunos. Em Torres, a administração municipal detalha que realizou 20 matrículas após a permanência das famílias. Porém, para além da atuação nesta esfera, o tema também está no norte da Secretaria Estadual da Educação (Seduc).
— A gente já sabe, por exemplo, que teve muita migração para o Litoral Norte, então estamos considerando, nessa análise de demanda, as migrações, para que a gente construa as escolas no local onde faz mais sentido para a comunidade — informou a secretária adjunta da Seduc, Stefanie Eskereski, em entrevista à Zero Hora.
O caso de Capão da Canoa é outro à parte. Em 2023, o município enfrentou falta de vagas na educação. Pelo menos 158 estudantes do Ensino Fundamental iniciaram as atividades somente em julho do ano passado, com aulas se estendendo até 30 de maio de 2024. A dificuldade gerou uma ação civil pública do Ministério Público (MP).
Conforme o MP, as medidas adotadas pelo Estado e pela prefeitura de Capão para o cumprimento da medida liminar continuam sendo acompanhadas. Já com relação à Educação Infantil, há processo judicial em fase de cumprimento de sentença, aguardando o julgamento do recurso.
Pela prefeitura, os últimos dias foram de novidades na educação. Obras de revitalização e ampliação em quatro escolas foram entregues, além da inauguração da Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) professora Regina Rosane Witt Marques, na sexta-feira (28). Com variação no número de matrículas, a administração municipal afirma que o público local é itinerante, o que explicaria a redução de 2022 para 2024.
Estruturas de saúde também sentem os efeitos
Na área da saúde, Imbé destaca que também verificou aumento de demanda. No Pronto Atendimento 24h, em maio e junho (até dia 25), foram atendidas 9.970 pessoas no ano passado. No mesmo período, em 2024, o número era de 11.029, acréscimo de mais de 10%.
O crescimento populacional também se reflete nas estruturas privadas de saúde, como o Hospital LifePlus, inaugurado em Xangri-Lá em 2022, e o complexo de saúde Markho Life Complex, em Capão da Canoa, que recebe obras desde abril.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) comunicou que vai repassar R$ 1 milhão ao Hospital Santa Luzia, também de Capão, para manter o atendimento. Segundo a SES, de forma geral no Litoral, os serviços especializados que estão na gestão do Estado não verificaram aumento significativo.
Outros investimentos na região
- De acordo com a Corsan, entre 4 e 14 de maio, o aumento do consumo de água em Capão da Canoa foi de 36,4% em relação ao mesmo período do ano passado
- Entre as obras realizadas pela companhia no Litoral estão a tubulação que amplia a capacidade de abastecimento à Capão da Canoa, com investimento de R$ 1,9 milhão
- Também foram instalados 12 poços profundos no Litoral Norte, ampliando o volume de água bruta disponível, com R$ 5,3 milhões
- Em Tramandaí, houve investimento de R$ 3 milhões em uma nova adutora e interligação de rede
- A CEEE Equatorial informou que em maio houve aumento de população no Litoral Norte, mas a carga de energia elétrica foi absorvida
- Sobre imóveis na região, o presidente da Associação das Imobiliárias e Corretores de Imóveis de Tramandaí e Imbé (Aiciti), Marcelo Callegaro, explica que o deslocamento de pessoas buscando o Litoral Norte vem se consolidando há cerca de 25 anos
A reportagem tentou contato com a prefeitura de Tramandaí, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.