Em cerca de 10 dias, a arte-educadora e integrante do Coletivo Quilombelas Helena Soares Meireles, 44 anos, embarca para um intercâmbio na Espanha. Muito além da bagagem, Helena levará consigo um apanhado de experiências, entre lutas e conquistas de uma mulher negra e transexual, para o Projeto eQUEERdad. É um intercâmbio para formadores da América Latina e da Europa composto por cinco países – Brasil, Espanha, Argentina, Portugal e Itália – e tem como objetivo desenvolver estratégias de comunicação para fomentar o debate sobre a diversidade sexual nos espaços de atuação dos participantes.
O convite para Helena participar do projeto surgiu após interlocuções com a ONG Nuances, entidade que trabalha há mais de 30 anos na promoção, cidadania e defesa de direitos civis da população LGBT+ em nível municipal, estadual e federal. Cada país tem uma ONG responsável por sua delegação, a qual faz parte da equipe internacional que, por sua vez, é encarregada pelo projeto como um todo. No caso do Brasil, é a Nuances.
Segundo a professora relata, o convite para o intercâmbio chegou após ela ter sido vítima de transfobia ao acessar o banheiro feminino em um shopping da Capital. O caso foi compartilhado por Helena em uma rede social.
– A ONG Nuances, que sempre foi próxima a mim, se juntou na denúncia do que tinha acontecido comigo, pois o interesse era de que a situação tivesse caráter educativo. Foi a partir disso que recebi o convite de Perseu Pereira, que faz parte da Nuances. Foi uma surpresa, porque estava vivendo um mar de tristeza e de revolta. À medida em que essas violências são escancaradas, também acontece um movimento de solidariedade e afeto.
E aconteceu comigo, com a viagem e com pessoas que sabiam da minha situação e se prontificaram a ajudar – detalha Helena.
Uma rede de apoiadores se uniu para levantar recursos para as demais despesas que Helena terá fora do Brasil – fora passagens e hospedagem, que já estão garantidas. Com esse objetivo, na última quinta-feira, um jantar solidário foi organizado por colegas e alunos de Helena. Conforme Ana Maria Araújo, colaboradora da corrente solidária, ainda é possível fazer doações por meio de PIX.
– Foi lindo (o jantar), e o que mais me emocionou foi o fato de os meus ex-alunos estarem lá. Essa experiência que nós tivemos na vida escolar impactou e foi importante para o que eles são hoje. Me ver neles, nas apresentações que fizeram, por me conhecerem e serem capazes de ter afeto por mim, sei que também terão por outros homens e mulheres trans. É emocionante saber que esse cruzamento das nossas vidas foi especial – explica.
Para Helena, a demonstração de carinho que ela recebe hoje tem relação com a construção da pessoa que é e sempre tentou ser:
– O que quis manter, como uma mulher de Oxum, foi a beleza do meu caráter, de ter um andar correto, pensando no coletivo. É a resposta do meu caminhar, desse olhar com todas as características que me formam. Essa onda de carinho é o oposto que do eu sofri. Muito além do valor arrecadado, é valor que tem esse afeto.
O intercâmbio ocorrerá entre os dias 8 e 18 de julho na cidade de Trasmulas, no sul da Espanha. No dia 6, Helena embarca para São Paulo, onde encontrará mais pessoas que viajarão pelo projeto.
– Dizer que eu nunca pensei em viajar para fora do país é uma verdade. A expectativa maior é da troca, conhecer outras pessoas e do que isso tudo vai abrir de portas do futuro. Sair de um lugar só de representatividade para trazer outros para esse lugar de representação – afirma.
Atualmente, Helena é docente em uma escola municipal no bairro Restinga e mestranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde vivências na infância, da descoberta, da transição, até os dias atuais, o ambiente escolar esteve relacionado com sua trajetória e é parte dessa relação que ela pretende compartilhar na Espanha.
– Me sinto uma vitoriosa por estar viva, aos 44 anos, num país onde a expectativa de vida de transexuais é de 35 anos. Ter essa idade e estar nesses lugares é motivo de vitória. E a minha trajetória comprova isso, esse processo de ter voltado para a escola como homem negro e ter feito a transição. Mesmo sendo um lugar muito violento, me fez e faz muito feliz. É um ambiente de troca e de conquistas do corpo trans – afirma.
Conhecer a própria história
Há nove anos, Helena passou por uma cirurgia de afirmação sexual, adequando-se ao gênero com o qual se identificava desde criança. O procedimento conduzido no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) foi contado em reportagem pelo jornal Zero Hora. Para ela, a transição dentro do serviço público gerou um impacto em ambientes institucionais:
– Como a gente aprendeu coisas que, hoje, são muito mais fáceis, mas naquela época era um pouco mais complicado. Tudo isso muito conectado com o descobrir-me negra positivamente, depois dos meus 30 anos, quando comecei a conviver com outras pessoas negras que tinham aporte teórico. Passei a conhecer a história do meu povo e conhecer nossos potenciais. O gênero está interligado à raça. Mas, antes do gênero, sempre veio primeiro o preconceito com a pele.
Para este momento de reconhecimento da própria história e do seu corpo, Helena cita a autora Marimba Ani, que faz referência ao complexo sistema de defesa do corpo humano:
– Cultura é nosso sistema imunológico. A partir do momento em que eu conheço a minha história, do meu povo, dos ancestrais, começo a me imunizar.
Para ajudar
- É possível contribuir para a cobertura das despesas do intercâmbio de Helena por meio de doações via PIX pela chave: anamariaandradedearaujo@gmail.com.