Reportagem publicada originalmente em 10/11/2013
O torpor dos medicamentos que embaralhou as primeiras 48 horas após a cirurgia começa a ceder lugar à lucidez, e Helena é gratificada com a visão do enfermeiro alto e bonito que entra no quarto do oitavo andar do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Ele a cumprimenta, na simpatia balsâmica comum aos que lidam diariamente com o sofrimento. A paciente está enfim livre da dor lancinante que a privou do sono, mas ainda passa quase a totalidade do tempo imóvel na cama. Arriscou os primeiros passos na véspera, mas a tontura a fez recuar. Apesar da insistência do médico, oferecendo-lhe um espelho, ainda não reuniu a coragem suficiente para avaliar o resultado durante as trocas de curativo.
Observando o enfermeiro administrar os remédios, já consegue sorrir e fazer graça em pensamento: imagina-os em um enredo romântico, como se fossem sua ídola da música, a cantora americana Beyoncé, com quem se acha parecida, e o marido, o rapper Jay-Z.
— Vamos tomar um banho, guriazinha?
Na iminência de ser despida para a higienização no leito, a professora tem o devaneio bruscamente invadido por um temor. "Ele vai me tocar, e eu vou ficar com o pinto duro", pensa. Acostumada à anatomia que a delineou por 36 anos, Helena leva alguns instantes até chegar à constatação tranquilizadora: o procedimento que motivou a delicada convalescença impede que o receio de expor uma ereção se materialize. "Não,não vai acontecer mais. Não tenho mais pinto. Já era."
Relembre a versão em PDF desta reportagem:
Helena Soares Meireles, nascida Heleno Soares Meireles, acaba de passar por uma redesignação sexual. Complexa, a cirurgia realizada em 11 de outubro último transformou a genitália masculina em uma vagina, na culminância de uma incrível metamorfose iniciada nove anos antes, quando injeções de hormônio começaram a lhe esculpir contornos de mulher. O momento em que assumiu em definitivo a identidade feminina coincidiu com a admissão no Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig), no Clínicas, há dois anos e nove meses, quando passou a ser orientada por profissionais das áreas de urologia, psiquiatria, psicologia, fonoaudiologia e serviço social, entre outras. Diagnosticada como transexual, Helena foi preparada para a intervenção capaz de aliviar o desconforto feroz em relação ao corpo.
Na transexualidade, caracterizada como disforia de gênero na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (DSM, na sigla em inglês), da Associação Americana de Psiquiatria, há um desacordo entre o sexo de nascença e a maneira como o indivíduo se percebe, em geral desde a infância — um menino se sente menina, e vice-versa. O transexual tem a certeza de pertencer ao sexo oposto. Helena não se lembra de ter se enxergado como homem por um único dia na vida. Fonte de constrangimento, o pênis era um órgão malquisto, uma saliência inadmissível para quem desenvolveu seios e adora exibir as pernas em vestidos justos e curtos.
Cinco dias depois da operação, na véspera da alta, ela se diverte ao projetar a estreia em um biquíni, em dezembro.
— Não sei explicar. Foi mágico. Parece que isso já tinha que estar aqui faz tempo. Me sinto com o dever cumprido. Eu venci. Essa guerra eu venci. Me sinto muito forte, apesar de como eu estou fisicamente. É um mundo todo que se abre. A partir do ano que vem, tenho dois aniversários para comemorar. A sensação é de que um capítulo foi encerrado. Já me sinto outra pessoa.
Brincando escondido
A confusão era comum a cada primeiro dia de aula. Percorrendo a lista de chamada, assinalando faltas e presenças, o professor, ainda sem conhecer a turma, automaticamente alterava o que lhe parecia uma incorreção. Lia "Heleno", mas deduzia se tratar de uma menina, com a grafia comprometida por algum deslize no formulário de matrícula.
— Helena?
— Presente — respondia o garoto, apesar do erro.
— Heleno — corrigia-se o professor, frisando a última vogal, ao localizar o dono da voz.
Ninguém poderia imaginar que a troca das letras se tornaria a síntese de um drama de mais de três décadas de vida, e o aluno do Colégio Estadual Doutor Glicério Alves, em Belém Novo, em Porto Alegre, só se importava, então, com a chacota que o prenome incomum incitava. Heleno deveria ter sido Leno, mas a recusa do funcionário do cartório forçou a inspiração no lendário atacante do Botafogo nos anos 1940. O filho de um eletricista e de uma dona de casa cresceu sem tomar gosto pelo futebol, em uma residência de Ipanema onde a felicidade estava associada aos raros momentos em que ficava sozinho. Longe da vista dos vizinhos, desinteressado de bolas e carrinhos, Heleno improvisava bonecas com os homenzinhos de plástico Playmobil, criando perucas com fios de linha.Vestia as saias e os sutiãs da mãe para dançar e cantar na frente do espelho, imitando a Xuxa. Sonhava ter cabelo comprido.
— Vai tirar esse pano da cabeça, guri! Parece louco — repreendia a dona de casa ao voltar da igreja e flagrar o primogênito.
Foi um massacre. Fiz aquilo sem pensar na consequência que ia ter. Eu era muito espontâneo, não conseguia disfarçar. Os meninos eram o mais complicado, queriam me bater, não me deixavam chegar perto. E as meninas também não me querendo muito perto porque eu era estranho. Mas eu não pensava, eu queria, sentia vontade.
HELENA SOARES MEIRELES
Professora
A mãe tentava apagar os vestígios, eliminando sem alarde os arremedos de brinquedo de menina que localizava em esconderijos, mas a identificação do filho com a figura feminina logo extravasou para outros ambientes. Provando uma calça de abrigo na loja, Heleno mentiu que a peça, de manequim bem menor do que o habitual, havia servido perfeitamente. Muito apertada nas coxas, parecia uma legging. Para ir à aula, no outro dia, calçou galochas azuis, debaixo de um céu limpo, e um moletom extragrande, como se fosse um vestido. Estava na 2ª série do Ensino Fundamental.
— Foi um massacre. Fiz aquilo sem pensar na consequência que ia ter. Eu era muito espontâneo, não conseguia disfarçar. Os meninos eram o mais complicado, queriam me bater, não me deixavam chegar perto. E as meninas também não me querendo muito perto porque eu era estranho. Mas eu não pensava, eu queria, sentia vontade — recorda Helena em uma das primeiras entrevistas concedidas a Zero Hora, em maio.
As esquisitices repeliam os colegas na escola, e o pai, no pouco tempo que passava em casa, vetava brincadeiras dos dois filhos com outras crianças e aplicava corretivos. Heleno, naturalmente, aproximou-se da mãe. Logo demonstrou talento para o traço. Ocupava as horas de solidão desenhando roupas - aperfeiçoou o hábito até a adolescência, criando o modelo de um longo decotado com fenda frontal com que a amiga Luciana impressionou os convidados de um aniversário de 15 anos. A puberdade intensificou a sensação de estranhamento de Heleno, e ele descobriu que o bom desempenho nos estudos garantia bem mais do que a aprovação antecipada, ainda no terceiro bimestre. Médias entre 80 e 90 o tornaram importante, neutralizando o deboche de quem fitava com estranheza o guri que sempre dançava com a vassoura e nunca beijava ninguém nas reuniões dançantes.
Bem menos espontâneo, refreando o desejo por meninos e se refugiando entre as meninas, quase como um figurante torcendo para não ser notado, Heleno concluiu o Ensino Médio, aliviado, em 1995. Era discreto, não demonstrava afetação, e a incógnita confundia alguns contemporâneos.
— Ele vai ser gay — apostou um estudante ao observá-lo no pátio.
Heleno ainda não sabia o que era.
Helena quer falar. E fala por horas
A partir da indicação de profissionais do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig), Zero Hora contatou Helena pela primeira vez em março. A professora logo aceitou o convite para protagonizar uma detalhada reportagem sobre a transformação de um homem em mulher, da infância à vida adulta. Concordou em compartilhar a rotina, em fotos e vídeo, antes e depois da cirurgia, até então sem data definida.
— Preciso falar — justificou. — Sempre fui uma ostra. As coisas sempre ficaram só para mim.
Em encontros nos arredores do Hospital de Clínicas ou em praças e shoppings, falava por horas, expondo minúcias de dramas familiares e intimidades. Externava a expectativa quanto à grande mudança, sem jamais revelar qualquer tom de hesitação.
— A minha essência sempre foi a mesma. A minha essência de mulher sempre foi a mesma. Me olhar no espelho e não ver pênis vai ser ótimo.
Corpo em mutação
A fase universitária coincide com uma descoberta equivocada, mas fundamental à época: dada a atração pelo mesmo sexo, Heleno acreditava ser homossexual. Aos 22 anos, passou a frequentar boates gays, e uma colega se esforçava para lhe arranjar um namorado. Não terminou o curso de Moda e Estilo na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e se concentrou na graduação do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Antes de se formar, começou a trabalhar como professor de Educação Artística em escolas públicas.
Acabou se aproximando de um ex-aluno. Viajavam juntos, divertiam-se em festas ao som de samba. Mas Alexandre (nome fictício) ficava com garotas, e Heleno sofria. Espreitava à distância, até que não conseguiu mais sufocar o que sentia. Foi surpreendido pela reação de Alexandre, que chorou ao ouvir a confissão, devolvendo outra:
— Eu te amo, mas nunca vai acontecer nada entre a gente.
Não se afastaram. Ainda que a atração mútua tenha resultado em pouco mais do que uma madrugada de volúpia clandestina, Heleno tirou dessa relação um impulso decisivo. Percebeu que a paixão lhe despertava outras vontades. Muito antes de ter consciência da transexualidade, sem qualquer orientação médica, apenas copiando a prática de um amigo, começou a injetar estrógeno (hormônio feminino), vendido sem receita. Temeroso no princípio, aplicava-se uma dose a cada dois meses. Seduzido pelo efeito que verificava no amigo, com uma injeção por semana, resolveu aumentar a frequência. Logo se desencadeou a metamorfose que seria intensificada nos anos seguintes: brotaram seios, ainda que disformes, muito pontudos. Doíam ao toque. Os quadris se arredondaram, e o ganho de peso aumentou as coxas, a bunda, a barriga. As calças passaram a denunciar curvas.
— O Alexandre foi o meu primeiro estalo. À medida que fui vendo que cada vez mais eu ia mexendo com ele, mais coragem eu tinha de modificar o meu corpo.
Em ebulição, o organismo irradiava mudanças para o comportamento. Heleno era uma incógnita se debatendo entre um sexo e outro, confundindo os interlocutores. Deleitava-se com a visão dos peitos no espelho, mas os enfaixava para trabalhar, temendo que os alunos identificassem o volume debaixo da camiseta.
— Ele foi se transformando: a maneira de falar, os trejeitos. Foi mudando bastante. Tinha todo aquele ar feminino, um olhar, uma coisa diferente. Mudou, realmente — atesta Valéria da Silveira, secretária do Colégio Glicério Alves, onde Heleno estudou e para onde, anos depois, retornou como professor. — Mas com aquele vozeirão... Deve estar fazendo fonoaudióloga. Acho que por isso a gente demorou tanto para ver que ele era gay — completa.
Um curso de cabeleireiro deu vazão ao fascínio reprimido na infância. Heleno embelezava outras professoras nos períodos de folga em uma das instituições onde lecionava. Trazia produtos e acessórios e montava um salão no corredor. Mostrava a poucas colegas os registros da própria ousadia, levando fotos das participações em desfiles da parada gay. Em um deles, rodopiou em um vestido de cetim rosa com babados, armação de tule e mangas bufantes, equilibrando-se em uma sandália de plataforma de glitter prateado. Saía de casa com um visual neutro, sem chamar a atenção do pai e do irmão, mas se maquiava e soltava o cabelo longo em uma escala antes do destino final. Ao redor da mesa do café, durante o recreio, alguns cochichos o elegiam como alvo.
— Lá vem aquela bicha — disse, certa vez, um professor a outro.
Eleito repetidas vezes como paraninfo ou homenageado nas formaturas, Heleno não encontrava resistência entre os alunos.
— Eu via preconceito dos adultos. Quem trabalha com criança não pode ter preconceito. De que adianta passar para um aluno que não pode ser assim e a sua conduta ser diferente? Você está mentindo, né? — questiona Maria Inês Serrano, professora da Escola Estadual de Ensino Fundamental Genoveva da Costa Bernardes, no Lami. — Ele... ela... ela nunca deu bola. Nunca percebi que ficasse mal com esses comentários. Se bem que lá no meu íntimo acho que deve ser arrasador ouvir um comentário assim.
No guarda-roupa, empilhavam-se segredos: as peças femininas eram escondidas entre as camisetas do dia a dia. A mãe mantinha a cumplicidade muda da infância — deparava com estranhezas, mas não reagia. Heleno lavava as roupas comprometedoras à mão, escondido, e as estendia junto à janela do quarto. Ao sair, chaveava a porta. Uma calcinha esquecida no banheiro foi encontrada pelo pai — estranhando o corte ousado, ele repreendeu a mulher, sem desconfiar que a lingerie pertencia ao filho mais velho. Mesmo nos níveis avançados da mutação, o assunto nunca foi discutido em família.
Mãe, você não vai acreditar. Encontrei o Heleno vestido de mulher! Com um unhão gigante, pintado de francesinha. Mãe... ele tem até peito, mãe!
LUCIANA
Amiga de Helena
Amigos de outros tempos se chocavam com o contraste. Luciana voltava do trabalho quando avistou o pai na rua, em Ipanema, entretido com alguém de silhueta curvilínea, cabelo comprido e jeans colado. Em fúria, apressando o passo, ensaiou mentalmente a reprimenda: "Vou contar para a minha mãe que você anda conversando com mulher dentro do estacionamento do supermercado!".
— Pai??
— Luciana, olha quem está aqui: o Heleno.
A empresária demorou a se recompor do susto, a boca aberta, mal contendo um riso nervoso. Anos depois do último contato, ela teve dificuldade para dar continuidade ao diálogo com o aprendiz de estilista da adolescência. "O cara acordou e resolveu se vestir de mulher", imaginou, não concebendo hipótese melhor. Jamais tinha percebido nele qualquer centelha de um conflito de gênero.
— Mãe, você não vai acreditar. Encontrei o Heleno vestido de mulher! Com um unhão gigante, pintado de francesinha — descreveu ela ao entrar em casa. — Mãe... ele tem até peito, mãe!
O silêncio da família
Personagem fundamental na trajetória de Helena, a mãe desmarcou entrevistas duas vezes. Vacilante, acabou aceitando um encontro em uma praça da Zona Sul, em junho, para uma conversa informal com Zero Hora, na qual conheceria detalhes do trabalho em produção. Como o marido ignorava os planos de Helena quanto à cirurgia — e permaneceria alheio até dias depois da operação —, a dona de casa preferiu não receber a reportagem em casa.
Ouviu por meia hora. Usou "ele" para se referir à filha, corrigindo-se em seguida. Alegou que o momento era de muitas dificuldades. Disse que consideraria a possibilidade de dar um depoimento.
Helena tentou convencê-la. Percebendo a crescente fragilidade da mãe no transcorrer do ano, preferiu não insistir. O irmão também não quis se pronunciar, depois de pedir um prazo de 24 horas para tomar a decisão. No final de outubro, transmitiu um recado:
— Minha mãe não vai falar. Ela não vai mudar de ideia.
A descoberta
Assistindo a um programa de entrevistas na televisão, ao lado da mãe, Heleno se viu hipnotizado pelo relato de duas transexuais — uma já tinha realizado a cirurgia de redesignação sexual, a outra ainda não. Falavam sobre a insatisfação generalizada antes da descoberta da condição, a vontade de mudar radicalmente a aparência, a não aceitação do órgão genital de nascença. Aos 33 anos, Heleno nunca havia se informado sobre o conceito de transexualidade — imaginava a modelo e atriz Roberta Close como ícone, uma mulher "pronta", sem rastro de masculinidade. Algo inalcançável para ele, aquela figura robusta de 1m78cm e 95 quilos — 17 acima do habitual — resultantes das doses hormonais, o cabelo comprido emoldurando o rosto tingido pela sombra da barba, alguém que escandalizava os usuários de banheiros masculinos por ter corpo de mulher e urinar de pé. A mãe rasgou o silêncio:
— Isso tudo acontece contigo, né?
Comecei a rir. Estava bem assustada, mas já tranquila. Aquele desespero de não saber o que eu era estava muito perto de se encerrar.
HELENA SOARES MEIRELES
Professora
Heleno concordou. Estupefato pela possibilidade de ter deparado com a explicação para o que sentia, buscou informações na internet e se dirigiu a um posto de saúde. Antes que detalhasse a demanda, a atendente se atravessou:
— Nem precisa me dizer que eu já sei: quer fazer a cirurgia.
Contrariada, invocando preceitos religiosos, ela tentou demovê-lo. Desejou jamais precisar telefonar marcando a consulta. Uma semana depois, Heleno foi informado da data: em 21 de fevereiro de 2011, deveria se apresentar para a avaliação inicial no Hospital de Clínicas.
— Comecei a rir. Estava bem assustada, mas já tranquila. Aquele desespero de não saber o que eu era estava muito perto de se encerrar.
Todo o tratamento, com duração mínima de dois anos, é custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo as intervenções cirúrgicas. Não há registro de arrependimentos a partir das 168 redesignações sexuais realizadas desde 2000 na instituição. Grupos terapêuticos formados por homens e mulheres diagnosticados como transexuais promovem discussões quinzenais, e especialistas orientam a terapia hormonal. O uso do hormônio feminino estrógeno interrompe a produção de testosterona, o hormônio masculino. O processo demanda anos, mas as possibilidades da medicação são impressionantes: os comprimidos suavizam a musculatura e a textura da pele, diminuem a quantidade e a espessura dos pelos, afinam a voz, aumentam os quadris e as mamas. Até no comportamento o efeito é perceptível: atenua-se a agressividade masculina, e a nova mulher ganha sutileza. O Clínicas, um dos quatro centros do país cadastrados pelo Ministério da Saúde, está habilitado também a realizar a transformação de mulher para homem (suspensa no momento), sequência complexa de cinco cirurgias que inclui mastectomia (extração das mamas) e a construção de um pênis a partir da pele do antebraço. O novo órgão é implantado ali mesmo, por três meses, para que amadureça fisiologicamente antes de ser transferido para o local definitivo.
Uma reação comum é: 'Onde eu errei?' Ainda hoje entrevistei uma mãe que disse: 'Então a senhora está dizendo que não é porque eu queria uma menina?' Não, não é por isso. O pensamento, o desejo não têm essa força. As famílias também vão entendendo que não é uma opção.
ESALBA SILVEIRA
Assistente social
Nos grupos compostos por quem almeja a transformação, predominam participantes na faixa dos 30 anos, com Ensino Médio completo e renda entre um e dois salários mínimos. A profissão de cabeleireiro é bastante frequente, e o envolvimento com a prostituição não é incomum. Um familiar acompanha o candidato na chegada. Sofrendo com intensa culpa e desconhecimento, pais e mães reviram o passado em busca de tropeços que justifiquem o diagnóstico.
— Uma reação comum é: "Onde eu errei?" Ainda hoje entrevistei uma mãe que disse: "Então a senhora está dizendo que não é porque eu queria uma menina?" Não, não é por isso. O pensamento, o desejo não têm essa força. As famílias também vão entendendo que não é uma opção – explica a assistente social Esalba Silveira. — Elas têm que aceitar, além de tudo, que aquele filho não existe mais. A Maria virou Mário, o João virou Maria. É muito difícil.
Três semanas depois, em março daquele mesmo ano, Heleno pisou em um universo de iguais. Na terapia de grupo, teria à disposição uma plateia sensível ao drama de uma existência oculta. Viu-se rodeado pela ânsia da inconformidade, mulheres em construção que se deformavam com aplicações de silicone industrial e criavam feridas escondendo o volume do pênis e dos testículos com esparadrapo. Poderia trocar confidências, confortar-se pelos episódios de preconceito. Observando as colegas vivendo diferentes fases, o professor sabia que necessitava se lançar à etapa seguinte. Não podia mais ser um meio-termo, uma criatura acanhada e andrógina, intimidada pelo falatório dos vizinhos.
— Tinha que ficar sozinha. Me isolei de todo mundo. Não queria ninguém que me remetesse ao meu passado.
Trocou a Zona Sul pela Zona Norte. Mudou de emprego e depois de endereço. Afastou-se de amigos e restringiu até o contato com a família — nas raras visitas, circulava pelo antigo bairro com os vidros do carro fechados. Queria um recomeço anônimo. Exilou-se em um apartamento de três peças no Rubem Berta. Virou Helena.
As primeiras negativas
Helena avisa que deve partir para um compromisso em 40 minutos. Acomoda-se em um banco da Praça da Alfândega, em uma tarde de julho. Inicia uma reflexão sobre a aceitação da transexualidade e a maneira como o seu entendimento da condição evoluiu. Imagina a vida dentro de alguns anos, quando a cirurgia terá ficado para trás.
— Achava que, com toda essa mudança, eu iria poder apagar o passado. E aí a vida e o tempo me mostraram que não. Ninguém tem futuro se não tem passado. Eu sou o homem e a mulher, sou os dois. Descobri que gosto do meu tamanho, da minha voz. Hoje me acho linda, extremamente sensual, gosto que as pessoas me olhem.
Verifica as horas, precisa ir. Diz que não será possível abrir a casa onde mora para uma sessão de fotos, dali a quatro dias, conforme combinado antes. Também não quer voltar a ser observada em aula, com os alunos _ afirma que tem enfrentado jornadas de trabalho muito estressantes. Avisa:
— Eu escolho o que vou mostrar.
Professora Helena
Uma garrafinha plástica cortada pela metade circulava entre as mesas, servindo de urna para as perguntas redigidas pelos alunos. Entre todas as novidades que os recepcionaram na volta das férias de verão, a mais intrigante estava ali, postada diante da turma de 9º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Deputado Victor Issler, no bairro Mario Quintana.
— Nasci mulher no corpo de homem — definiu a professora de Artes, narrando sua trajetória na primeira aula, antes de ordenar qualquer tarefa.
Helena se dispôs a responder a questionamentos elaborados com respeito, mas ainda assim se reservaria o direito de silenciar caso a demanda a deixasse desconfortável. Não era necessário se identificar. Começou a desdobrar os pedaços de papel. "Qual o seu antigo nome?" Alegou que isso pertencia ao passado, não quis revelar. "Como contou para os pais?" "É casada?" "As unhas são postiças?" Constrangidos, alguns optaram pela trivialidade: "Tem irmãos?" Leu em silêncio e ignorou o mais despudorado: "Já deu para alguém?" Seguiu adiante. "Esse cabelo é seu?"
— Se está comigo, é meu — brincou, puxando o riso da plateia.
Helena estabeleceu a troca desde que assumiu a vaga, em abril de 2011: entrega sinceridade, recebe respeito. Precederam sua estreia um telefonema da Secretaria Municipal de Educação para a escola, alertando sobre a peculiaridade da funcionária, e um breve alvoroço.
— A primeira imagem que vem na nossa cabeça é a da Isabelita dos Patins, né? — diverte-se a diretora, Sandra Hass Siebel, citando a famosa drag queen. — Nosso medo era: como ela vai se portar? Se for uma coisa escandalosa, a gente vai ficar retraída, vai ser complicado. Mas não. Sempre teve uma postura muito adequada.
Mesmo reservada, a novata causou estranheza. Os colegas hesitavam em abordá-la na hora do recreio, relutavam para iniciar os diálogos mais corriqueiros, pressentiam incômodos.
— Que banheiro ela vai usar? — questionou uma professora.
— O feminino — disse Sandra.
Diante da contrariedade da colega, a diretora gracejou:
— Se ela tiver que agarrar alguém, vai ser um professor, não você.
Helena foi se enturmando, entre as conquistas e indisposições inerentes à atividade de todo educador. Tornou-se uma ouvinte frequente dos dramas dos estudantes, estreitando laços. Mantinha a distância apropriada, que não permitia que liberdades em demasia abalassem o domínio de classe. Atraiu a simpatia das meninas pela vaidade, com o cabelo volumoso bem cuidado, os esmaltes coloridos, as bijuterias, a maquiagem. Encorajou-se com o andar do tempo: perdeu o medo de mostrar o pé tamanho 39-40, meteu-se em sandálias. Crianças a interpelavam com pedidos de beijos e, vez ou outra, solicitações para um esclarecimento:
— Você é menino ou menina?
Um dia, conduzindo uma turma em fila até o refeitório, Helena captou um burburinho. Sempre teve mais dificuldade para esclarecer os pequenos, pela limitação que a pouca idade deles lhe impunha na hora de dissertar sobre a sexualidade. Interrompeu o percurso e pediu a atenção do grupo:
— Só um pouquinho, vou explicar. Eu nasci menino e agora sou menina.
Espalhou-se um silêncio. Todos a encaravam, estáticos, aguardando a continuação, ansiosos pelo adendo que diluiria a imensa dúvida que atrasava a refeição. Retomou-se a caminhada.
— Até ela se perdeu — conta, rindo, a orientadora Aline Fátima Costamilan.
Comentários pejorativos se restringiam às rodinhas de conversa no pátio, principalmente nos primeiros meses. Helena, muitas vezes, fingiu não ouvir. Uma das situações que anularam a desenvoltura da professora ocorreu quando um menino de 13 anos a enfrentou dentro da sala cheia, chamando-a de "travecão".Abalada, sem saber como reagir, saiu em busca de auxílio. Localizou a supervisora Gislaine Zambeli, e retornaram juntas. Gislaine ressaltou a importância do respeito à individualidade, a soberania de cada indivíduo para escolher o que vestir e com quem se relacionar. O ambiente serenou. Outro dos casos mais explosivos se deu com um garoto de 16 anos, indisciplinado com todos, mas especialmente com a titular de Artes. Incomodava, recusava-se a executar os exercícios, entrava e saía da sala a todo momento. Aline convocou Helena e ele para uma conversa. Insolente até na hora de prestar explicações, o adolescente desdenhou:
— Não tenho problema nenhum com ela. Tá cheio de putão assim lá na minha vila.
A mesma turma que em março se encantou com a sessão de confissões representou também a maior provação de Helena no decorrer de 2013. Era um grupo ruidoso, bolinhas de papel voavam de um lado a outro. A professora não teve sossego nem depois de desabafar: enfrentava uma fase difícil, por isso perdia a paciência.
— Como a turma era agitada, ela gritava. Quanto mais ela se irritava, mais a gente irritava _ lembra uma aluna.
O clima bélico amainou a partir das férias de inverno. Em 3 de outubro, os alunos decidiram formalizar a reconciliação: atraíram-na para uma festa surpresa com bolos de chocolate e de cenoura, pastel e refrigerante.
— Sora, em nome de todos, eu queria pedir desculpa. A nossa turma é a que mais incomoda e a que mais vai sentir a sua falta — discursou a porta-voz.
Em lágrimas, Helena também se desculpou. Era o seu último dia de trabalho. Começava ali o período da licença de saúde para a cirurgia.
Introspecção durante o luto
À procura de um imóvel para alugar, Helena não encontra brechas na agenda, e as entrevistas se tornam cada vez mais espaçadas. "Não confunda minha introspecção com tristeza. A lagarta, até transformar-se em uma linda borboleta, precisa de seu tempo no casulo", escreve no Facebook. Confessa que, no princípio, deixou-se seduzir pela vaidade, mas agora teme a repercussão da reportagem. Nunca, entretanto, manifestou o intuito de desistir, sempre reafirmando a disposição de participar.
— Estou vivendo um luto. Muita coisa não vai voltar mais, mas não vejo a hora. Estou feliz — comenta, em setembro, quando aceita mostrar um álbum de fotos antigas. — Só não gosto de ficar pensando se vão me cortar aqui, tirar ali.
A quatro dias da cirurgia, o organismo acusa o estresse: ela sofre com uma crise alérgica e dores nas costas. "Gosto daqueles que vivem... sobrevivem. Gosto daqueles que enfrentam... não se intimidam. Gosto daqueles que sentem medo... e o vivenciam", diz um post na rede social. Na véspera da internação, Helena concorda com uma breve sessão de fotos no dia seguinte, à entrada do hospital.
— Mas eu não vou falar nada — adianta.
Os amores
Heleno e Helena construíram um histórico de poucos envolvimentos amorosos — resume — se a paixões platônicas de adolescência e a relacionamentos precocemente interrompidos na fase adulta. Quando se percebiam apaixonados, os parceiros desistiam, sem coragem para assumir o namoro em público. Com Alexandre, o ex-aluno, talvez a única paixão, o desfecho foi semelhante. Em plena transformação física, Heleno o confundia. Com uma pressão cada vez mais intensa por parte da família do amigo para que se apartassem, o professor se surpreendeu com a forma como expressou a desilusão à época, ainda sem ter consciência de que era transexual:
— Eu me apaixonei como mulher, eu estou sofrendo como mulher, mas não te preocupa porque vou me levantar que nem homem.
Sempre foi muito difícil para mim me relacionar com um homem. Nós dois ali éramos iguais. Não queria virar de frente, não permitia que ele me tocasse. Era uma coisa que me denunciava. Agora vou reaprender. É o máximo que vou chegar perto de viver como uma mulher.
HELENA SOARES MEIRELES
Professora
Desde que assumiu a nova identidade visual, Helena é cada vez mais exaltada pela crescente feminilidade, envaidece-se com cantadas, mas continua carregando porções masculinas. Nos intervalos de dois ou três dias entre as aplicações de cera, a maquiagem disfarça a barba rala. O pomo de adão não é tão proeminente, e a voz acaba por ser o vestígio mais evidente. Helena parece se esforçar para impor um tom mais suave, principalmente quando tosse ou ri. Nem tudo, entretanto, é manipulável — as horas de sono são ritmadas por um ronco forte.
Um passeio pelo Centro, há dois anos, é ilustrativo dos enganos que ainda ocorrem. Helena começou a trocar olhares insistentes com o segurança de uma agência bancária. Ela na calçada, ele do outro lado do vidro. Sorriram.
— Entrega lá para ele — pediu ao amigo que a acompanhava, passando um bilhete com o número do celular.
Enviaram-se mensagens de texto insinuantes durante uma semana. Faziam planos, imaginavam o fervor do primeiro encontro, anteviam um compromisso sério. Então ele a convidou para um lanche após o expediente. Helena chegou 20 minutos antes e sentou para aguardar. No celular, o toque anunciou um torpedo: "Olha para trás", pediu ele, aproximando-se sem que ela percebesse. Helena se virou, a tempo de testemunhar o instante exato em que o sorriso do pretendente se diluiu em incredulidade.
— Você deveria ter me falado — lamentou o segurança.
Helena também não escondeu o choque.
— Para mim, você tinha visto aquele dia, quando eu estava na sua frente. Na distância em que a gente estava, achei que você tivesse percebido.
Saíram andando, ele três ou quatro passos adiante dela. Era desapontamento, não fúria, mas Helena temeu a possibilidade de ser vítima de uma reação violenta à medida que avançavam por uma área menos movimentada. Ela forçou a despedida, abreviando a vergonha do encontro fracassado, na urgência de buscar um lugar onde pudesse chorar. Retomaram o contato, sem qualquer romantismo, pouco depois. Tiveram um relacionamento secreto de quatro meses.
— Sempre foi muito difícil para mim me relacionar com um homem. Nós dois ali éramos iguais. Não queria virar de frente, não permitia que ele me tocasse. Era uma coisa que me denunciava. Agora vou reaprender. É o máximo que vou chegar perto de viver como uma mulher. Hoje eu vivo como uma mulher, mas isso me incomoda. No momento em que não existir mais isso, vai ser um alívio. Não quero mais nada sigiloso.