Reportagem publicada originalmente em 10/11/2013
Nervosismo nas últimas horas
Helena aguarda na entrada do Hospital de Clínicas. Está de pé, segurando um papel com orientações para a internação que justifica a presença da mãe, sentada a sua frente _ é obrigatório comparecer com um acompanhante. Na outra mão, um copo de café denuncia um tremor quase imperceptível a cada gole. Veste uma saia curta, e o colorido da blusa e da bolsa aliviam o semblante pesado para as últimas 18 horas naquele corpo. A movimentação do fotógrafo atrai a atenção de pacientes e familiares no saguão, e um riso fraco marca a transição do nervosismo para um constrangimento divertido:
— Parece que sou famosa.
Em 15 minutos, pergunta as horas duas vezes. O atropelo dos dias anteriores à internação a obrigou a protelar a organização da mala _ reuniu calcinhas, sutiãs, pijamas, não sabia direito do que precisaria. O olhar se perde pelos arredores. Pensa em tudo que enfrentou até que esse dia se tornasse possível. Gostaria de acelerar o tempo até o instante em que estivesse acordando da anestesia.
— Estou no automático.
Chega o dia
— Alguma dúvida? — questiona Walter Koff no amanhecer da sexta-feira 11 de outubro.
— Só quero dormir logo — suplica Helena.
Médico e paciente estão no bloco cirúrgico, no 12º andar do Hospital de Clínicas. Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Koff conheceu a cirurgia de redesignação sexual na residência em Urologia, na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Apaixonou-se pela técnica. Desde a década de 1970, realizou mais de 200 procedimentos no Brasil e no Exterior. Pelo Programa de Transtorno de Identidade de Gênero, no qual cada redesignação custa de R$ 3 mil a R$ 4 mil para o SUS, não tem remuneração, assim como os demais integrantes da equipe.
Helena é anestesiada às 7h45min.
***
A mãe veste a mesma blusa amarela da véspera. Não previra o pernoite, acreditara que voltaria para casa, mas mudou de ideia ao saber que a cirurgia estava marcada para as 7h, muito cedo para quem precisa vencer um trajeto de uma hora de ônibus. Ocupa um assento perto da janela, de costas para uma ampla vista da cidade, cenário bem mais convidativo do que o vaivém de doentes em macas na sala de espera. Além de uma muda de roupa, faltou ainda algo com que se distrair durante a vigília que se arrasta ao som distante de um funk na TV.
— Ela estava mais tranquila hoje cedo ou ainda muito nervosa? — pergunta a repórter.
— Quem? — devolve a mãe, estranhando o gênero do sujeito da frase ou apenas sendo incapaz de compreender a pergunta imersa no barulho ao redor.
— O Heleno.
— Não, estava tranquilo. Aparentemente estava tranquilo.
Fala baixo. Vai de monossílabos a construções um pouco mais extensas quando o foco da conversa deixa de ser a cirurgia do filho que não consegue chamar de filha e recai sobre amenidades: a greve dos bancos e dos Correios, os preços no supermercado. Absorta na espera havia três horas, não tinha notado o monitor que informa o horário de início das operações. Levanta-se e observa por alguns segundos.
— Tá ali o nome dele, ó. Enxergou ali? — constata, apontando para "Heleno Soares M. Entrada sala: 7h28".
***
O procedimento tem início às 8h10min. Koff faz uma incisão e extrai os dois testículos e o pênis. A pele do pênis, que será a nova vagina, é invertida — como uma luva retirada da mão, sendo puxada pela base e se virando para o lado avesso. Passa a revestir a parte interna da vagina, portanto, a pele que até então estava do lado externo do pênis. A partir da base do pênis, agora descartado, abre-se um orifício entre a bexiga e o reto, local da vagina no corpo feminino. O médico cria um caminho com os dedos, por dilatação, sem cortes. Ali, insere então a pele do pênis. Não é necessário dar pontos, a vagina recém-construída "grudará" na região ao redor — o processo se completará ao longo dos seis dias em que a paciente ficará imóvel no hospital. Um pequeno pedaço da glande, a ponta do órgão masculino, é transformado no clitóris, e a preservação de veias, artérias e nervos manterá a sensibilidade ao toque. Retalhos da bolsa escrotal compõem os grandes lábios da vagina. Na finalização, a cavidade é preenchida com gaze para o período de cicatrização.
***
Na alternância incessante dos ocupantes das cadeiras, uma senhora se senta à direita da mãe de Helena. O assunto para o início de uma conversa entre desconhecidos parece óbvio em um lugar como aquele. Nas apresentações, cada uma informa por que está ali.
— Troca de sexo — responde a dona de casa, baixando levemente a cabeça, a mão apoiando a testa, encobrindo um pouco o rosto.
O embaraço logo se desfaz.
— E quando você notou? Desde bebê?
— Acho que com uns seis anos.
Amparada no quase anonimato típico dos diálogos entre personagens que provavelmente não voltarão a se encontrar, a conversa flui.
***
A operação é concluída em três horas, às 11h10min. Helena perdeu 1,5 litro de sangue com a dissecção dos genitais, o que exigirá uma transfusão. Não houve intercorrências. Ainda de touca e com o traje verde-água e azul da cirurgia, Koff abre a porta do bloco cirúrgico às 11h47min, a máscara pendendo do pescoço. Relata que tudo correu bem.
— Ficou muito bonito, inclusive.
Helena não quer contato visual
Koff aceita mediar a negociação com Helena para uma entrevista no hospital. Tenta pela primeira vez três dias após a cirurgia, quando a dor começa a abrandar.
— Ela prefere quando sair daqui. Estou em dúvida, não sei se é a posição final dela. Vou tentar amanhã de novo — reporta o urologista.
Na terça, boletim semelhante:
— Ela não aceitou hoje. Talvez concorde amanhã, possivelmente. Disse que vai decidir amanhã.
O médico identifica uma sensível abertura na quarta:
— Ela concordou que você ligue. Acho que vai acabar permitindo.
Por telefone, Helena é enfática: não permitirá qualquer contato visual. Horas antes da alta, solicita à chefe de enfermagem da ala sul do 8º andar que nenhum integrante da equipe forneça detalhes sobre o período de internação.
— Não estou a fim, não quero, estou cansada. Quero ir embora. Só.
Oito dias depois de ser liberada, posta no Facebook uma imagem captada no quarto do Clínicas. Deitada, sorri para a câmera.
Reencontros
Prosaica, a maior descoberta da nova vida se apresentou oito dias depois da alta, na manhã de uma sexta-feira, dentro do banheiro da casa recém-alugada na Zona Sul, onde Helena voltou a se estabelecer. Não tomava água desde a tarde da véspera, quando se livrou da sonda vesical e da bolsa coletora de urina. Apesar do receio, não podia mais adiar. Sentada no vaso sanitário, começou a rir. Urinava como mulher, sem sentir dor ou ardência. Continuou achando engraçado por dois dias, a cada xixi.
É uma revolução, uma mudança que não é só minha. É a mudança da minha família, da história da minha família, dos desencontros da minha família.
HELENA SOARES MEIRELES
Professora
— É uma loucura. É completamente diferente.
Transparece na voz a leveza de um momento feliz. Na saída de uma consulta, uma prescrição médica a levou a uma sex shop, onde comprou um molde de silicone para duas sessões diárias de exercícios, a fim de evitar a retração dos tecidos. Em cerca de 30% dos casos, são necessários retoques posteriores à cirurgia. Entre as complicações mais comuns, estão o fechamento do canal uretral, ocasionando dificuldade para urinar, e a diminuição da vagina, que fica com a abertura estreita ou pouca profundidade.
— No orgasmo, não muda nada. Se ela já tinha orgasmo na relação antes da cirurgia, vai continuar tendo depois. O orgasmo é uma função cerebral, não é uma função genital — explica o urologista Walter Koff.
Helena cumpriu um ciclo na Zona Norte: partiu em busca do isolamento que lhe permitiria abandonar uma identidade e conquistar outra. Nas poucas ocasiões em que atravessou a cidade para visitar a família, optou por trajes discretos. Não usava sapatos de salto e peças curtas ou apertadas demais, mas era indisfarçável o fato de que havia se transfigurado. Virou mulher, mas o pai nunca deixou de chamá-la de filho. Para o irmão, Helena era o "mano".
Há 10 dias, o irmão enxergou Helena de vestido pela primeira vez, quando surgiu na casa dela sem avisar, demandando explicações. Fora informado do diagnóstico de transexualidade e da cirurgia pouco antes. Queria ouvir de Helena o que ignorou por mais de 30 anos. Choraram muito.
— Foi meio no susto, mas acabou sendo menos doloroso do que eu achava. Ele saiu aliviado. É uma revolução, uma mudança que não é só minha. É a mudança da minha família, da história da minha família, dos desencontros da minha família. Para eles, vai demorar ainda. Não tenho nenhuma pretensão de que, de uma hora para outra, eles comecem a me chamar de Helena. Respeito o tempo deles.
O pai dividiu o sobressalto com o filho — ambos tomaram conhecimento da extraordinária mudança após ela ter sido concretizada. Encorajada pela conversa com o irmão, Helena decidiu apressar a etapa subsequente. Precisava enfrentar o pai antes da publicação de sua história em Zero Hora. Planejava encará-lo no último domingo. Concordou em fazer um relato sobre o episódio, à noite, quando também seria acertado o horário para uma sessão de fotos no dia seguinte — a primeira depois da redesignação sexual. No tom sereno que guiou toda a última entrevista, admitiu, antes de se despedir, estar com medo do embate. Mas confiante.
Na noite de domingo, a ligação não atendida acabou direcionada para a caixa postal. "Oi. Não tô podendo e nem tô a fim de falar. Também não sei se sairei amanhã, devido à chuva. Me liga amanhã", justificou, 20 minutos depois, por mensagem de texto.
Na segunda-feira de sol, de novo, Helena não respondeu à chamada.