Helena Soares Meireles levou meses até se encorajar a reencontrar o pai após a operação que modificou seu corpo para sempre. Aos 36 anos, a transexual havia passado por uma cirurgia de afirmação sexual, indicada para casos de disforia ou incongruência de gênero, adequando a genitália ao gênero com o qual ela de fato se identificava – desde pouca idade, Heleno, seu nome de batismo, sentia-se mulher.
O procedimento conduzido no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) transformara, depois de mais de dois anos de preparação psicológica e acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, o pênis e a bolsa escrotal em uma vagina. Naquele fevereiro de 2014, Helena, que sempre evitava a maquiagem e as roupas femininas no convívio familiar, tentando disfarçar o que já era impossível esconder, ressurgiu na frente do eletricista aposentado em um vestido longo azul-marinho que deixava os ombros à mostra, sandálias e com o cabelo negro e encaracolado, aumentado com megahair, preso com grampos na lateral. O olhar que o pai dirigiu ao filho, e que a partir de então teria de aprender a chamar de uma nova maneira, entre tantas outras mudanças, era de saudade, não de assombro ou reprovação. Antes de se enlaçarem em um abraço, os dois já estavam chorando.
– Eu achei que você nunca mais viria me ver – desabafou o pai.
A história do ano mais importante da trajetória da transexual foi contada na reportagem especial de Zero Hora “Meu nome é Helena”, publicada há cinco anos. Em entrevistas ao longo de 2013, a professora de artes relembrou as estranhezas e sensações experimentadas desde a infância, quando as partidas de futebol – seu nome teve inspiração em um famoso atacante do Botafogo nos anos 1940 – eram trocadas por brincadeiras às escondidas com bonecas improvisadas e imitações da Xuxa defronte ao espelho, vestindo as saias e os sutiãs da mãe. Heleno sempre se viu deslocado, sofreu com chacotas na escola e contou com a cumplicidade muda da mãe, que eliminava os vestígios que ele porventura deixasse para trás. Certa vez, o pai do jovem estranhou uma calcinha esquecida no banheiro, acreditando que a lingerie ousada era da esposa, e não do filho enrustido.
Por anos, Heleno pensou que fosse homossexual, dada sua atração por homens, até assistir a um programa de televisão que falava sobre transexuais. Passava dos 30, tinha a silhueta modificada pelas doses de hormônios tomadas por conta própria e disfarçava os seios nascentes com faixas apertadas para que os alunos não os notassem. Estava a meio caminho entre o masculino e o feminino, sem conseguir entender que conceito poderia explicar o que sentia. Depois de pesquisas na internet, o jovem procurou um posto de saúde e foi encaminhado ao HCPA.
Heleno se assumiu socialmente como Helena em definitivo ao se mudar da zona sul para a zona norte da Capital, libertando-se do escrutínio dos vizinhos e dos conhecidos de sempre. Como professora, contava sua história no primeiro dia de aula e dava aos alunos a oportunidade de a questionarem sobre quaisquer dúvidas. A educadora conquistou respeito, mas conviveu também com o preconceito – foi rejeitada por colegas e ofendida por estudantes.
Com suspense, o texto de ZH terminou sem contar como foi o primeiro encontro entre Helena e o pai após a operação de outubro de 2013. Ela queria que ele soubesse de tudo antes que a matéria entrasse no ar no site ou estivesse disponível nas bancas. Não teve coragem. Dificuldades de contato entre a jornalista e a entrevistada impediram a apuração dessa informação. O severo e pouco presente chefe do lar, que morreu em 2016, em decorrência de complicações de um acidente vascular cerebral (AVC), descobriu oficialmente, pelas páginas do jornal, que convivera com um desconhecido dentro de casa por quase quatro décadas.
Naquele momento, descobri o lado bom de ser mulher. Estava me sentindo muito forte, empoderada com a minha vaidade, linda, a mulher mais maravilhosa do mundo.
HELENA SOARES MEIRELES
Professora
Digerido o choque, o pai e o irmão mais velho de Helena conseguiram assimilar o enredo que ela protagonizara em segredo e se adequaram às novas circunstâncias. Ela foi acolhida pela família da qual forçosamente se afastara para colocar a mutação completa em andamento. No começo, eram comuns as confusões com os nomes e as inadequações na fala: Heleno passou a ser Helena, o filho virou filha, as frases deviam ser formadas com sujeito, pronomes e adjetivos no feminino, não mais no masculino. Em relação aos demais membros do seu círculo de relações, e também ao público em geral, uma vez que se tornou uma figura conhecida, a reportagem de ZH poupou Helena do trabalho de ter de recontar sua história um sem-fim de vezes, ainda que também a tenha exposto ao escárnio e à intolerância.
Nas palavras de Helena, 2014 foi o ano em que ela se sentiu a própria “Mulher Maravilha”. Transcorreu bem a recuperação após a alta hospitalar. A mudança anatômica lhe injetou autoconfiança. Tinha a impressão de exalar sensualidade, provocando olhares de curiosidade e desejo por onde passava.
– Naquele momento, descobri o lado bom de ser mulher. Estava me sentindo muito forte, empoderada com a minha vaidade, linda, a mulher mais maravilhosa do mundo – recorda a professora, durante um bate-papo na tarde de 24 de outubro último, em uma praça próxima à Escola Municipal de Ensino Fundamental Senador Alberto Pasqualini, na Restinga, onde leciona.
A experiência do sexo
Uma das grandes expectativas dizia respeito à retomada das relações amorosas e sexuais. Ainda se adaptando à chamada neovagina, Helena imaginava uma “primeira vez” com risco de ser um tanto difícil, exigindo paciência do parceiro, que poderia enfrentar problemas para a penetração e talvez tivesse de se contentar com uma posição apenas.
No verão seguinte à cirurgia, um pretendente foi alvejado por seus encantos. Helena lembrou das palavras do urologista Walter Koff, que realizou a cirurgia de afirmação sexual: se a pessoa era capaz de sentir um orgasmo antes da operação, continuaria sendo depois, pois o clímax sexual é uma função cerebral, e não genital. (Na intervenção, a pele do pênis se transforma na vagina, e um pedaço da glande do órgão masculino vira o clitóris da mulher. Retalhos da bolsa escrotal compõem os grandes lábios vaginais. A preservação de veias, artérias e nervos mantém a sensibilidade ao toque.) Uma noite, na casa da professora, o casal assistia TV na sala quando ele pousou a mão sobre a perna dela.
– Senti a mesma coisa que sempre senti a vida inteira: aquele arrepio, aquela vontade, aquele tesão, aquela sensação boa. Me deu um alívio.
Relembre a reportagem de 2013:
Helena necessitava aplicar um lubrificante e, antes que as carícias avançassem mais, retirou-se por instantes. No banheiro, observou o interior da vagina bem de perto pela primeira vez. Levou um susto. “O médico mentiu para mim! O meu pênis está aqui ainda! Continuo com o pênis! O que é isso? Ele esqueceu um pedaço!”, pensou, atônita.
– Era o clitóris. Eu não sabia que tinha um clitóris – lembra, rindo alto.
A anfitriã ponderou que não deveria desistir e retornou para junto do visitante, que sabia que ela era transexual. Helena venceu o medo, relaxou e não teve dor. Conseguiu encarar o parceiro de frente, algo que se impunha como uma grande dificuldade em outros tempos.
– Foi muito diferente. Me senti livre.
Helena também se envolveu com homens que se aproximaram por acreditarem que ela era uma travesti, com roupas e acessórios de mulher ocultando genitais masculinos. Um deles inclusive desanimou ao vê-la desnuda. Outros jamais perceberam sua transexualidade, algo que a surpreendeu. Em um episódio, a professora foi cortejada pelo segurança de um hospital. Marcaram um encontro para o dia seguinte. Conversavam frente a frente quando ela percebeu que ele a observava com atenção, intrigado.
– Você é travesti? – questionou ele.
– Sou uma mulher transexual.
A cirurgia é para confirmar algo que já está solidificado na vida da pessoa. Ela já se sente mulher ou homem, já vive esse papel. Tentamos evitar ao máximo que aconteçam arrependimentos. É uma cirurgia irreversível. Precisa haver uma adequação de expectativa.
MARIA INÊS LOBATO
Psiquiatra
Helena se tomou de medo. Temia ser agredida, caso o paquera, um tipo forte, se julgasse logrado e ofendido. Ele levantou e caminhou na direção dela. “É agora que vou apanhar”, pensou ela, em pânico. O homem apertou seu ombro e a tranquilizou:
– Não se preocupe. Eu gosto.
Intempéries também surgiram pelo caminho. Helena enfrentou uma depressão que a obrigou a se afastar do emprego. A certo ponto, percebeu-se presa em uma crise de identidade: não era mais Heleno, não se sentia Helena. Quem havia se tornado, afinal? Engordou, perdeu o viço, não tinha mais prazer em se embelezar, deixava de tomar banho. Desconfiava de todos, metia-se em brigas. Um assalto a mão armada, em que perdeu o carro e diversos pertences, desestabilizou-a ainda mais.
Maria Inês Lobato, psiquiatra e coordenadora do Programa Transdisciplinar de Identidade de Gênero (Protig) do HCPA, ao qual Helena se vinculou para passar pela transformação e que atende atualmente a 240 transexuais, explica que dois anos é o tempo mínimo de acompanhamento multidisciplinar para os candidatos à cirurgia de afirmação sexual, para que se sintam seguros do que querem. A neofaloplastia, em que se substitui a vagina por um pênis construído a partir da pele do antebraço, não é executada atualmente pela instituição de saúde.
– A cirurgia é para confirmar algo que já está solidificado na vida da pessoa. Ela já se sente mulher ou homem, já vive esse papel. Tentamos evitar ao máximo que aconteçam arrependimentos. É uma cirurgia irreversível. Precisa haver uma adequação de expectativa. Trabalhamos muito isso ao longo da preparação. A própria cirurgia pode ter as suas limitações – comenta Maria Inês, citando problemas como a pouca profundidade da vagina, por exemplo. – Depois do procedimento, é previsto que os pacientes fiquem em acompanhamento por um ano, participando de reuniões de grupo ou individuais. Mas não costumam ficar, a maioria não fica – lamenta a médica.
Apoio em amigos e na religião
Helena não se arrependeu. Apesar de ter abandonado a terapia meses depois da operação, buscou outros recursos. Amparou-se na religião que cultua, de matriz africana. Os colegas de escola e o trabalho a ajudaram a recobrar o fôlego e se reerguer. Hoje, Helena está bem. Orgulha-se do percurso, por completo. Não esconde os longos anos de biografia como Heleno e tem prazer em se apresentar como mulher transexual.
Me descobri. Fiquei muito tempo da minha vida presa em saber quem eu era na sexualidade. Sou mais do que isso.
HELENA SOARES MEIRELES
Professora
Com outras professoras negras, criou o coletivo Quilombelas, que exalta a negritude. Paralelamente, vem dando início a um projeto em que se permite dar vazão a uma de suas grandes paixões, a moda (Heleno chegou a cursar alguns semestres de Moda na Universidade de Caxias do Sul): cria, confecciona e comercializa bijuterias que motivam inúmeros pedidos de encomendas. Os brincos que ela usa nas fotografias desta edição do DOC são de sua própria produção. Com uma carga de trabalho de 40 horas semanais, a professora também pretende ingressar em uma pós-graduação.
– Me descobri. Fiquei muito tempo da minha vida presa em saber quem eu era na sexualidade. Sou mais do que isso – afirma ela, agora com uma pele mais suave, sem a marcante sombra da barba, resultado de dolorosas sessões de depilação a laser.
Da fúria ao bom humor
Helena mora com a mãe, dona de casa com quem mantém uma relação próxima, e o irmão mais velho, o músico Edu Meirelles, 38 anos, em uma residência no bairro Ponta Grossa, zona sul de Porto Alegre. Cinco anos atrás, até as vésperas da publicação de “Meu nome é Helena”, Edu acreditava que o irmão era gay. Precisou assimilar as informações sobre a transexualidade e a cirurgia e não quis, à época, manifestar-se publicamente.
– Um filme se passou na minha cabeça. Fiquei tentando entender aquele processo todo e por que esse processo se deu àquela altura do campeonato. Pensava: por que agora? A explicação fez sentido para mim. Acabei percebendo que isso faz parte de um processo. Tem pessoas que nascem, crescem, vivem e morrem e não conseguem se assumir perante si mesmas. E ela conseguiu. Me trouxe felicidade ela ter conseguido se assumir, ter tido coragem de fazer a cirurgia, de estampar a capa de um jornal que todo mundo assina e lê. Num primeiro momento, confesso que fiquei meio apavorado. Achava que seria um problema – conta Edu, em uma conversa por telefone, na qual se referiu a Helena, naturalmente, como “mana”. – Depois foi muito tranquilo para mim. Quando olho para ela, vejo uma mulher transexual. É uma forma feminina, mas é meu irmão. Ela não mudou o jeito de quando era homem, é a mesma pessoa. Consigo entender isso. Sinto muito orgulho dela.
Tem pessoas que nascem, crescem, vivem e morrem e não conseguem se assumir perante si mesmas. E ela conseguiu. Me trouxe felicidade ela ter conseguido se assumir, ter tido coragem de fazer a cirurgia, de estampar a capa de um jornal que todo mundo assina e lê. Num primeiro momento, confesso que fiquei meio apavorado.
EDU MEIRELLES
Músico, irmão de Helena
Alguns amigos e conhecidos do passado ainda se atrapalham: até conseguem chamar o Heleno de outrora de Helena, mas escorregam em outros pontos. Por vezes, até mesmo a mãe dela se confunde, geralmente quando menciona a filha em conversas com outras pessoas.
– Você está lindo! – elogiou a mãe de um aluno dia desses.
Com delicadeza, Helena a corrigiu. Antes, talvez ficasse furiosa, mas agora não mais. A porção Heleno segue presente em Helena, obviamente, mas isso não é mais um defeito a ser escondido ou contra o qual lutar. No começo de cada ano letivo, a professora não costuma mais se abrir para a rodada de perguntas dos alunos. Sua condição já não é mais novidade na escola, uns contaram para os outros, e ela deixou de ser notícia fresca. Uma vez, Helena fez uma brincadeira que pegou: estava braba e contou que seu lado masculino atendia por Jorge, para não ter de revelar seu nome de nascença. Quando fica contrariada, agora os estudantes já sabem:
– Hoje ela tá com o Jorge!
Na praça da Restinga, em meio a tantas recordações marcantes dos últimos cinco anos, Helena resgatou uma situação ainda mais antiga, que se passou quando trabalhava na Escola Municipal de Ensino Fundamental Deputado Victor Issler, no bairro Mario Quintana, antes da cirurgia. Em uma das atividades de uma reunião pedagógica, os participantes foram convidados a desenhar e externar uma vontade em um pedaço de papel. “Futuro, amanhã, vida simples, coragem”, escreveu ela junto a um sol que se punha no mar.
– Aquilo representava muito a ingenuidade e o desconhecimento que eu tinha. Quando lembro desse desenho, penso: nossa, a vida de uma mulher nunca vai ser simples. Não existe isso (risos). Eu não tinha essa noção – relata. – Nunca tive repulsa de dizer que sou uma mulher trans. Hoje sempre me coloco como uma mulher negra e trans. Só que ser mulher é muito difícil, é muito complexo, é matar um leão por dia. Ser mulher trans é matar um leão por turno. Negra e trans então... É uma loucura – define.
Amadureci. me entendo mais. Com 41 anos, me sinto muito melhor do que com 21. teve um momento em que eu queria muito esconder algumas coisas. Hoje sei que essa é minha força.
HELENA SOARES MEIRELES
Professora
Ainda que tenha colecionado histórias em seu acervo sentimental, Helena, de 2013 para cá, não manteve nenhum namoro sério. Ela não sonha com família e filhos, mas gostaria de encontrar um companheiro com quem pudesse estabelecer uma relação estável. Enquanto esse homem não aparece, ela não se angustia com o fato de estar sozinha, o que ocorria em outros tempos. Está mantido o projeto de colocar próteses de silicone nos seios, mas não há a pressa de antes.
– Me acalmei muito, entendi muitas coisas que vieram com esse “ser mulher”. Acho que amadureci. Estou com 41 anos e me sinto linda, mesmo estando com a pele mais mole (risos). Coisas de mulher! Sou mais feliz por isso, me entendo mais. Aprendi a me aceitar mais, aceitar as minhas dificuldades, respeitar o meu tempo. Com 41 anos, me sinto muito melhor do que com 21. O que fui tem um peso e uma força maiores hoje. Teve um momento em que queria muito esconder algumas coisas. Hoje não. Hoje sei que essa é a minha força. Eu brinco: quem é que tem a oportunidade de viver duas vidas numa só?