A novela A Força do Querer, da Rede Globo, vem chamando a atenção para uma questão ainda pouco debatida: a transexualidade. Na seção "Duas Visões", reunimos os depoimentos de Maria Inês R. Lobato (leia abaixo), psiquiatra, coordenadora do Programa de Identidade de Gênero do HCPA, e o da coordenadora-geral de Promoção de Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, Marina Reidel, que assumiu publicamente sua condição de transexual aos 30 anos. O objetivo desses dois relatos é contribuir para uma visão mais humana e menos sectária sobre o tema.
Recentemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou estudo denominado "Sexual health, human rights, and the law", reportando a dificuldade mundial de acesso aos serviços de saúde por indivíduos transexuais e concluindo que este fato causa grave impacto nas condições de saúde mental.
Presente em todos os grupamentos humanos, a transexualidade não é fenômeno comum, tendo pouca visibilidade e significativa rejeição em sociedades cuja cultura seja marcada por expressões de sexualidade heteronormativas.
Em um mundo que não respeitava as diferenças, os transexuais eram vistos como indivíduos bizarros pelos iguais, tendo de carregar esse estigma, até mesmo por seus familiares. Na pós-modernidade democrática, em que se observa a ética da diferença, as minorias encontraram espaço, naturalizou-se a homossexualidade e, agora, busca-se o mesmo para os transexuais.
No Brasil, em 1998, o Conselho Federal de Medicina regulamentou os cuidados de saúde para as pessoas transexuais (F 64 - CID-10), definindo as bases do tratamento cirúrgico. Após 13 anos de debate judicial, esse tratamento foi alcançado a todos os cidadãos, como inalienável direito à saúde, sendo totalmente pago pelo SUS (Port. 2.803-MS, Nov. 2013).
Há um debate mundial sobre a eventual despatologização da condição transexual e é relevante promovê-lo também aqui. A OMS tem advertido que a condição vista como psiquiátrica, em diversos países, porta o falso argumento de que o único tratamento a ser oferecido é o "psiquiátrico", descartando acesso a tratamentos que visam à transição de gênero. E dito que o mesmo argumento serve de pretexto à violação de direitos fundamentais.
Devido a isso, a proposta da OMS para o CID 11, com lançamento planejado para maio de 2018, é a catalogação da transexualidade como Condições da Saúde Sexual, retirando-a do capítulo dos Transtornos Mentais, o que inibiria mau uso do CID como argumento nas sociedades referidas.
Essa dificuldade não se faz presente no Brasil, atualmente. Mas convém lembrar que a transexualidade não se expressa de forma homogênea, havendo um subgrupo que necessita realizar a cirurgia de redesignação sexual, ou de afirmação de gênero, como é mais recentemente denominada. A cirurgia, antes vista como mutilatória e proibida, é indicada para transexuais que têm convicção de que não pertencem ao gênero designado no seu nascimento e sentem um imenso desconforto com seu corpo. Por óbvias razões, esse grupo precisa de uma codificação pelo CID, acompanhamento de uma equipe multiprofissional, tanto para definir o diagnóstico quanto para adequar expectativas. Não se admite que um tratamento tão complexo e irreversível seja realizado sem todos os cuidados médicos, psicológicos, de enfermagem, sociais entre outros, indispensáveis ao bom prognóstico. Por envolver consequências físicas e sociais impactantes, a intervenção cirúrgica é realizada na maturidade do indivíduo, porém o atendimento pela equipe multiprofissional deve iniciar-se o mais precocemente possível.
Ser transexual não é uma decisão pessoal, é uma condição em que estão envolvidos fatores biológicos e ambientais, tais como muitas características individuais que todos nós temos, querendo ou não. Portanto, aceitar a transexualidade é aceitarmos a nós próprios, com todas as diferenças que fazem de cada um de nós um ser único e insubstituível.