Em um campo não muito distante, o Avaí pressiona o Juventus da Itália em uma disputa acirrada, o Grêmio escala Iúra, Oberdan e grande elenco de 1977 e ninguém fala em zebra se a Nigéria ganhar a Copa do Mundo.
Cenas improváveis como essas são vividas semanalmente em uma garagem na Zona Sul e no salão de uma igreja anglicana de Porto Alegre. São um oferecimento de um esporte que talvez você tenha jogado no chão da sala quando criança: o futebol de botão.
O jogo segue vivo, mesmo com as novas tecnologias e possibilidades de diversão eletrônica. Mas agora é coisa de gente grande. E é competitivo.
— Quem não vê, não dimensiona o que é. Imagina um ginásio com 30 mesas, cada uma com um árbitro, e 130 pessoas jogando com uniforme da sua equipe — relata Adriano Pickrodt, descrevendo os campeonatos estaduais realizados no segundo semestre.
Adriano é presidente da Liga Gaúcha de Futebol de Mesa, que tem cerca de 200 filiados, quadro que quase quadruplicou nos últimos quatro anos. São divididos em 11 departamentos oficiais cadastrados para competir em sete campeonatos com a regra gaúcha (há outros botonistas que jogam com regras diferentes; veja adiante). Mas o número de grupos não oficiais formados apenas para se divertir pode passar de 40 no Estado, acredita Adriano.
— Isso é muito em razão da divulgação entre quem joga hoje e quem um dia já jogou — opina. — Essa pessoa acaba conhecendo, criando uma amizade e vai trazendo mais gente.
Em geral, os praticantes têm mais de 40 anos, segundo Adriano. A maior parte já é pai ou avô. As crianças é que hoje nem sabem o que é futmesa. Depois de sair da escola, algumas entram na loja que há mais de duas décadas é referência no assunto na Rua Coronel Fernando Machado, no centro de Porto Alegre, para perguntar o que são os conjuntos expostos na vitrine.
O sócio do Bazar Mimo, Domenico Romano, conhecido como Kiko, 39 anos, culpa a concorrência de jogos eletrônicos e seus gráficos super-realistas para a perda de campo do futebol de mesa entre as novas gerações.
— O que acontece é de pais comprarem o jogo para tentar tirar a criança do videogame — comenta.
Os conjuntos de botão, goleira e bola podem custar de R$ 70 (de acrílico e sem detalhes) a até R$ 1 mil no Bazar Mimo. Esses botões mais caros são de galalite, um tipo de plástico produzido a partir de leite que é importado da Europa. Tem botonistas que acham essas peças “mais precisas”, enquanto tem gente que nem se posiciona, alertando que é um assunto controverso. Dúvidas não há de que o galalite envolve uma questão de status.
Os irmãos James William Pickrodt, 68 anos, e Jony Gilmar Pickrodt, 52, fabricam seus próprios botões na garagem de casa, no bairro Cristal, zona sul da Capital. Um pedaço de galalite vermelho-alaranjado, que vai gerar um botão de cinco centímetros de diâmetro, custou R$ 200.
– É um galalite da cor táxi. É raro – justifica James.
Eles desenham o contorno do botão, cortam com uma serra, lixam, fazem o polimento, criam mosaicos com diferentes cores e materiais e ainda desenham as camisas no Corel (programa de desenho vetorial). Para arredondar a peça, usam um esmeril que James construiu, com uma pedra de afiar faca e o motor de uma máquina de lavar. Também fabricam eles mesmos as mesas, com madeira de reflorestamento.
Essa inventividade para praticar futebol de mesa não é coisa de agora. Com oito anos, ao ganhar um conjunto de botões do Juventude, James não ficou satisfeito: queria um do Grêmio, igual ao do irmão mais velho. Resolveu fazer, ele mesmo, seus botões tricolores
— Eu quebrava meus brinquedos de plástico, aquecia no fogareiro ou no fogão à lenha e colocava dentro de umas fôrmas que vinham na lata de leite ninho. Comecei a fabricar meus próprios botõezinhos, fazia o acabamento deles na laje — conta.
Hoje aposentado (teve uma empresa de representação comercial), James leva de 40 minutos a até duas semanas para finalizar um botão. Tem alguns que os irmãos vendem ou trocam com amigos — às vezes gastam mais tempo dos encontros no chamado “garajão” negociando do que jogando. Mas há aqueles botões que não vendem por nada. Tipo o Cristiano Ronaldo e o Deco da Seleção de Portugal comandada por Felipão, ou mesmo o Ocimar do clube carioca Bangu.
— Eu digo que, se quiserem ele, vão ter que levar o dono junto. (Os botões ) ficam em uma caixa embaixo da minha cama — confidencia James.
Mas o que fez o colecionador se emocionar foi um par de peças com mosaico verde e cinza. James conseguiu preservar os cantinhos de um conjunto de galalite da Seleção Brasileira de 1958, dado de presente pelos tios, e mesclou com filetes de ficha de cassino perolada e outros materiais. Dessa forma, Zagallo e Garrincha nunca penduraram as chuteiras. Seguem marcando gols, agora com a camisa do Werder Bremen, da Alemanha.
Jony admite que “dá um frio na barriga” na hora de inaugurar um time novo, porque nunca se sabe se vai rolar química entre treinador e atletas de plástico. O Grêmio de 1977, citado no começo da reportagem, ele levou mais de seis meses para conseguir montar.
— Os times representam uma época que, muitas vezes, foi legal para a gente, que marcou alguma coisa. Eu revivo a infância e a adolescência. Lembro de quando ia para os estádios, via os grandes jogadores e me colocava no lugar deles —diz o arquiteto, que reitera o lado lúdico do futmesa, exemplificando:
—Tem aqui o Aldo Serena (pela Seleção da Itália, jogou as Copas de 1986 e 1990). Um botão pequeno, mas que, bah, quando faço gol com ele, me sinto um italiano – diz, rindo.
Colorado gremista
Janeiro e fevereiro é época de Gauchão. Em março, começa o Campeonato Brasileiro. Depois, vêm Libertadores, Copa América, Champions League...
Como nos campos de grama de verdade, não há folga para as mesas de madeira da Associação José do Patrocínio de Futmesa Regra Gaúcha, dispostas por um salão alugado de uma igreja da Cidade Baixa. Termina uma competição, começa outra, e cada botonista vai mudando de identidade para pelear com um time específico daquele novo universo. Não é possível ter dois Real Madrid no europeu ou duas seleções brasileiras quando há Copa do Mundo, por exemplo.
Tem gente que se empolga a ponto de, literalmente, vestir a camisa – como Alexandre Carvalho, que vai à sede combinando com seus botões do Farroupilha. Times como o Mundo Novo, de Três Coroas, também têm chance de desbancar Grêmio e Inter e levar a taça do Gauchão. Sim, há premiação: cada competição tem troféu de ouro, prata e bronze.
O da Libertadores do ano passado tinha pelo menos 70 centímetros – só um pouco menor do que aquele ganho pelo River Plate.Nessa liberdade de ser o que time que se quer, há coisas estranhas. “Barbaridade” é uma palavra que pode vir à cabeça dos gremistas ao descobrir que quem joga com o Tricolor, no campeonato da Associação José do Patrocínio, é um colorado.
O contador Christian Borowski, 42 anos, explica: foi a tia dele, de 83 anos, que pediu para que “trouxesse uma caneca pelo Grêmio para casa”. Valendo-se do respeito conquistado como o último campeão do Gauchão (pelo Glória, de Vacaria) e conformado com o fato de o Inter ser praticamente propriedade de um fundador da associação, o colorado resolveu atender ao pedido da tia gremista e requisitou a camisa do rival.
Pergunto se ele não fica tentado a boicotar seu próprio time, só pelo prazer de ver o Grêmio se dando mal. Christian se ofende:
— Sou profissional! Quero ganhar o troféu!
VAR de improviso
O cenário de uma rodada de Gauchão de futmesa é vibrante: na terça-feira em que ocorreu a visita da reportagem, em pleno janeiro, havia 10 mesas sendo usadas simultaneamente. E pode haver até mais jogos ao mesmo tempo: a associação dispõe de 16 mesas, para atender a 32 participantes de cada campeonato. Outras seis ainda ficam guardadas para serem usadas em caso de urgência (uma invasão de cupins, por exemplo).
Os jogos são divididos em dois tempos de 15 minutos. Na hora da partida, para minha surpresa, há pouco barulho. Vez que outra, um “Feitooooo!”, “Puts” ou algum palavrão (leve) interrompe a concentração dos vizinhos de mesa.
Quando o cronômetro avisa o final do jogo, cabe aos jogadores ir até as listas coladas em um quadro negro para atualizar o placar. Os 10 botonistas melhor ranqueados nas competições da associação vão compor um time para o campeonato estadual por equipes da Liga Gaúcha de Futebol de Mesa no segundo semestre.
— É como se estivesse indo para Tóquio (jogar o Mundial) — compara Zilmar Pujol, um dos diretores da associação.
A Associação José do Patrocínio conta atualmente com 40 sócios. Não tem condições de aceitar mais ninguém em razão do espaço físico — tem até uma pequena fila. Cada associado paga R$ 25 por mês, dinheiro usado para custear o aluguel do espaço, e mais um extra para comprar as taças. É claro que se encontrar todas as terças-feiras à noite também constitui um pretexto para fazer jantares e churrascos.
— O mais legal são as amizades que se formam — afirma Gladimir Pereira Badino, o Miro, 50 anos, diretor da associação.
As esposas é que muitas vezes não entendem por que eles dedicam tantas noites concentrados sobre uma mesa de nem dois metros de comprimento movimentando botões de plástico com uma ficha.
Miro explica que a diversão vai além de reviver a infância e adolescência. De acordo com ele, o futebol de botão se assemelha ao xadrez no que diz respeito à estratégia – o praticante tenta forçar o outro a se deslocar e abrir caminho para o jogo, ao mesmo tempo em que faz movimentos pensando em inviabilizar o lance do adversário – e diz que lembra também a sinuca, quanto à atenção a ângulos. Tudo à imagem e semelhança do futebol de campo, é claro.
O futebol de botão segue tanto os passos das partidas nos gramados que até se estuda instalar o árbitro de vídeo (VAR) nos campeonatos da Liga. Mas, como o orçamento é bem menor, proporcional ao tamanho dos atletas botões em comparação aos atletas de carne e osso, um celular gravando sobre a mesa vai ter de resolver o problema.
O Estado isolado
Reportagens da década de 1940 já citavam o “cotidiano desaparecimento de botões das preciosas caixas de costura” de mães donas de casa e até mesmo campeonatos oficiais de futebol de mesa em Porto Alegre, a partir de uma iniciativa de jovens da Cidade Baixa. Mas os tempos áureos do esporte, na avaliação de Enio Seibart, 74 anos, autor do livro Loucos por Futebol de Botões (2015), foram os anos 1950 e 1960.
Ele acredita que o auge do futebol de mesa no Rio Grande do Sul está relacionado ao funcionamento da Scharlau, fábrica criada para fazer puxadores de móveis que acabou se especializando em botões de galalite.
— A Scharlau fazia de 200 a 300 botões por dia. E vendia tudo. Eram encontrados em ferragens, bombonières, papelarias, além das lojas de esportes. Minha turma, de Cachoeira do Sul, via quem ia para a Capital, juntava os trocos e encomendava — rememora. — Era praticamente a única fábrica, mandava o excedente para Rio de Janeiro e São Paulo.
E até nessa modalidade o ego bairrista se inflama: o Rio Grande do Sul é considerado um dos pioneiros no país. A primeira federação oficial de futebol de botão de mesa constituída no Brasil foi a Federação Rio Grandense, registrada em cartório, em Porto Alegre, em 1961. Em 1988, o Conselho Nacional do Desporto reconheceu o futebol de botão como esporte legítimo. Naquela mesma década, conta Enio, havia departamentos de futmesa dentro de grandes clubes de futebol do Rio Grande do Sul.
Ele mesmo participou da criação do departamento colorado. O futebol de botão funcionou em sala do térreo do Estádio Beira-Rio, embaixo da rampa de acesso às arquibancadas superiores, sendo transferido depois para o alto da Churrascaria Saci e, posteriormente, para salas do Ginásio Gigantinho.
Mas, se o gaúcho se orgulha de ser precursor, também se considera vítima de uma grande traição. Explico: a regra usada para o futebol de mesa é algo crucial, porque determina quem pode jogar campeonatos nacionais. Há cinco modalidades oficiais do jogo aceitas pela Confederação Brasileira: paulista, carioca, baiana (que é a adotada oficialmente pela confederação), “do dadinho” (com uma bola quadrada parecida com um dado) e “sectorbol”.
Praticada por todos os personagens citados nesta reportagem, a gaúcha sequer é considerada.
— No final da década de 1960, as federações baiana, paulista e carioca se uniram e deram rasteira na gente. Deixaram a regra gaúcha de fora e decretaram a baiana como a oficial brasileira. Não aceitamos. Então, os gaúchos ficaram sozinhos, independentes, querendo se separar do Brasil, como na Revolução Farroupilha — diz Enio.
A diferença entre a regra gaúcha e a brasileira passa pela dimensão das mesas (1m80cm contra 2m20cm de comprimento) e o tamanho dos botões (cerca de 4cm contra até 6cm) e das goleiras (13cm por 3,5cm no Estado, 15cm por 6cm na regra brasileira).Um dos sonhos de Enio é ver essas barreiras ruírem. Há anos ele se dedica a tentar introduzir uma regra unificada, que mescle características da brasileira (baiana) e gaúcha.
— Dizem que sou um Dom Quixote brasileiro, um sonhador. Mas eu persisto, pela esperança de evitar que o futebol de botão desapareça. Porque isso já está acontecendo.
Ele acredita que o futmesa corre risco, especialmente devido à baixa renovação de botonistas. Enio viu essa dificuldade dentro de casa: nenhum dos dois filhos joga botão. Nem os afilhados e sobrinhos. Agora, quer ganhar netos, que seriam sua “última chance”.
— Até agora, nada dos herdeiros. Para quem eu vou deixar meus 20 times de galalite?
O futebol de mesa na regra gaúcha
O jogo ocorre sobre uma mesa de no máximo 1m80cm de comprimento. Cada equipe é integrada por 10 botões e um goleiro (a única peça retangular). O botonista pode ser chamado de jogador ou técnico.
Cada partida tem 30 minutos, divididos em dois tempos. Os botões são movimentados com uma ficha ou palheta. O ato de comprimir a ficha ou palheta sobre o botão, fazendo-o deslizar no campo, na direção desejada pelo técnico, é chamado de lance. O objetivo, bem como no futebol de campo, é usar os lances para fazer gols.
Lance: salvo exceções em razão de infrações, há apenas um toque ou "fichada" por jogador na regra gaúcha.
Impedimento: é o lance em que um ou mais botões ficam em campo adversário, tendo à frente apenas o goleiro. O botão colhido em impedimento é removido manualmente para sua posição originária e perde o direito de efetuar o lance.
Falta: quando o botão bate no adversário, inclusive o goleiro, antes de bater na bola.
Mão: quando a bola fica parada em cima de um botão. Se aconteceu no campo de ataque, o botonista que sofreu a falta pode chutar a gol.
Cavada: é o ato de arremessar a bola sobre o botão adversário com o objetivo de obter uma lateral, escanteio ou gol.