Faltavam poucos prédios para serem demolidos na cidade catarinense de Itá, na divisa com o Rio Grande do Sul, entre eles a Igreja Matriz São Pedro, localizada no ponto mais alto. Era 1995 e não havia mais moradores na área destinada a se transformar num gigante reservatório de água. No dia agendado para a destruição da paróquia, evento acompanhado à distância por ex-moradores, as paredes foram as primeiras partes a caírem. Mas algo na engenharia da demolição acabou não saindo como previsto pelos responsáveis. Quem estava no local testemunhou as inúmeras tentativas de derrubar as duas torres e a cúpula. Primeiro, foram pancadas feitas com a própria pá da retroescavadeira. Em seguida, amarraram cordas nas partes que faltavam e tentaram arrancá-las à força. Em vão. Ao perceberem as dificuldades, os fiéis presentes no local impediram a continuidade do desmanche. Os mais católicos acreditam ter sido um dom divino, aplicado pelo próprio São Pedro — a imagem foi uma das partes a permanecer intacta.
Surgiu, então, a ideia de deixar o restante como um marco da história da cidade. A partir de um plebiscito realizado entre os itaenses, houve o aterramento ao redor das torres. Em abril de 2000, realizou-se a última missa no local. Hoje, elas estão expostas no lago artificial de 141 quilômetros quadrados, que avança sobre quatro municípios gaúchos (Aratiba, Severiano de Almeida, Mariano Moro e Marcelino Ramos) e sete catarinenses (Itá, Concórdia, Arabutã, Alto Bela Vista, Peritiba, Ipira e Piratuba). Mais do que atrativo turístico e parte da memória afetiva de quem viveu na antiga Itá, as torres da paróquia são o símbolo de resistência das comunidades do Alto Uruguai sucumbidas pelas águas para a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Itá, encravada entre o município catarinense e a cidade gaúcha de Aratiba, em funcionamento desde 2000.
Vizinho da antiga igreja, o fotógrafo Reni Moschetta, 69 anos, foi batizado, fez a primeira eucaristia, crismou-se e casou-se na paróquia. Ele, que foi vereador na cidade na década de 1970, recorda com exatidão da tentativa de demolição. Moschetta lamenta não ter gravado em imagens a data. Foi uma das únicas não guardadas pelo ex-agricultor, que há 40 anos trocou a enxada pela câmera fotográfica. Quando o Rio Uruguai foi represado, ele e a mulher, a também fotógrafa Maristela Moschetta, 68, registraram e filmaram a água subindo a cada dois dias no lugar onde ele nasceu, às margens, e na casa da família, ao lado da igreja.
Junto a cerca de mil habitantes, os Moschetta aceitaram a oferta de se mudarem para a cidade construída ao longo de uma década pelo Consórcio Itá (os primeiros se transferiram em 1985) e inaugurada oficialmente em 1996. Ela fica distante menos de um quilômetro da antiga, mas numa área mais alta. Na época, receberam uma casa de alvenaria cujo tamanho era 10% maior do que a moradia anterior, de madeira. Assim como na outra cidade, os Moschetta mantêm a loja de fotografia da família no centro de Itá, mas é comum encontrar o casal admirando as torres da velha igreja. Garantem ser uma forma de manterem o passado vivo.
— Foi um bom negócio porque melhorou para todos de Itá, mas fica a saudade — comenta o fotógrafo, enquanto observa uma fotografia aérea da antiga cidade que, à frente das torres, serve como mapa explicativo para os turistas.
De município baseado na agricultura, Itá aproveitou a mudança forçada para focar no turismo da região inundada pelas águas represadas do Rio Uruguai. A formação do lago artificial atrai visitantes de outras partes do Brasil e do mundo – em busca da vida no campo e de atividades de aventura, como arvorismo. Passeios de barco, diurnos e noturnos, percorrem o lago e apresentam a história da paróquia São Pedro. É a única forma de acessar a estrutura.
No início das visitações, uma ponte ligava a margem às torres, mas atos de vandalismo fizeram com que a prefeitura desistisse da ideia. Desde novembro, a administração municipal está executando serviços de lavação do prédio, pintura de floreiras, escadas e corrimões, melhorias no forro, troca de madeiras, de vidros e uma pintura geral. Por ser a única edificação restante da antiga Itá, a igreja se tornou o principal cartão-postal da nova, de atuais 6,2 mil habitantes.
A história
Engana-se quem pensa que a hidrelétrica em funcionamento na região há 18 anos foi a primeira a utilizar-se das águas do Uruguai para gerar energia. Ainda nos primeiros anos de colonização da região do Alto Uruguai, no início do século 20, pioneiros de várias comunidades, entre elas, Itá, represavam braços do rio para produzirem energia elétrica.
A iniciativa foi deixada de lado pelos agricultores quando eles viram o lucro triplicar com o comércio de madeira transportada em balsas rumo a São Borja, Uruguaiana e Buenos Aires. A área era rica em espécies nobres de florestas de canela, araucária e cedro. Cortadas em toras ou pranchas, as peças iam amarradas em balsas e transportadas numa navegação arriscada entre corredeiras e saltos. Com a abertura das estradas, a partir da década de 1960, o Uruguai foi sendo esquecido como hidrovia.
A potencialidade das águas do rio para a geração de energia só voltou a ser discutida com o fim da extração. Entre 1966 e 1969, o Comitê de Estudos Energéticos da Região Sul desenvolveu estudos para avaliar os recursos hidroenergéticos da bacia do rio Uruguai, montando um programa de construção de usinas hidrelétricas. Comprovou-se que a força hidráulica da região poderia abrigar projetos de geração de energia para grandes populações. No final da década de 1970, a Eletrosul Centrais Elétricas — estatal responsável na época pela geração e transmissão de energia no sul do Brasil e no Mato Grosso — revisou esses levantamentos e comprovou que o relevo em declive da região facilitaria a construção de 22 usinas em toda a bacia hidrográfica, quatro delas no Rio Uruguai. Itá tornou-se prioridade devido ao custo relativamente baixo da energia gerada e ao menor impacto ambiental.
Os estudos de viabilidade da hidrelétrica Itá foram autorizados pelo Departamento Nacional de Energia Elétrica. Em 1981, definiu-se que a área da localidade de Volta do Uvá, a cerca de um quilômetro acima da foz do rio de mesmo nome, em Aratiba, seria o melhor ponto de aproveitamento energético. A conclusão do projeto deu-se quase duas décadas depois. A usina ganhou o nome de Itá porque a cidade foi a única entre as 11 atingidas diretamente que teve o núcleo urbano realocado por completo devido à construção.
Segundo estimativas, na região atingida viviam, em 1985, 124 mil pessoas — 72,9% delas em zonas rurais e 29,1% nas sedes urbanas. Além da reconstrução total da cidade de Itá, foram desenvolvidos 23 programas socioambientais — entre eles, proteção à flora e à fauna, preparação dos municípios para a exploração turística do lago, limpeza da área a ser inundada, recriação de núcleos rurais e resgate histórico e cultural. O Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) é repassado a Aratiba, pois é onde está localizada a casa de força. A Compensação Financeira pelo Uso dos Recursos Hídricos é distribuída entre os 11 municípios no entorno do lago, além de outros 19 — esses recebem quantias simbólicas. Os valores variam mês a mês e de acordo com a área banhada pelo reservatório. Em novembro deste ano, por exemplo, Aratiba ganhou R$ 427.885,84 e Itá, R$ 223.529,26. Marcelino Ramos, outra cidade gaúcha vizinha às duas principais atingidas, recebeu R$ 189.688,91.
A produção energética da UHE Itá, cuja capacidade instalada é de 1.450 MW, é definida pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), que coordena todo o Sistema Interligado Nacional (SIN) e redistribui a energia para outras partes do Brasil.
A saudade
Do lado gaúcho, a entrada da barragem, a casa de força e os três diques estão sobre os 75 hectares que um dia pertenceram à família do agricultor Sabino Minella, 73 anos. As terras faziam parte da comunidade Volta do Uvá, em Aratiba, que deixou de existir depois da construção da usina. Para saciar a saudade da região, Minella, morador do centro de Itá, vai a cada 15 dias até o belvedere erguido exatamente onde ele costumava pescar.
As nossas terras encostavam no rio dos dois lados. Nós "lidava" com lavoura e um gadinho. Dava para viver bem. De noite, vinha gente de Campo Alegre, Volta Redonda, Linha Cinco, Borboleta Baixa e Santa Cruz para ver filme no clube. Era uma comunidade pequena, mas nos eventos vinham de todos os lados. A Eletrosul prometeu deixar um marco aqui (apontando para o belvedere) lembrando a comunidade, uma gruta, uma coisa. Nunca saiu. E os prefeitos foram prometendo fazer, mas não fizeram
SABINO MINELLA
Ex-morador de Aratiba (RS)
Com a indenização recebida do consórcio, Minella comprou mais de 50 hectares de terra no interior do Paraná. Ele pretendia se mudar com a mulher e os filhos Gilnei, na época com seis anos, Gleison, com dois anos, e Giane, com um ano, para começar uma nova vida em outro Estado. O pai, Carlos Minella, falecido em 2006 aos 92 anos, foi contra a mudança do filho. Durante semanas, ele tentou convencer o neto mais velho a ficar com os avós. A insistência de Gilnei, implorando para ficar perto do avô, fez Minella aceitar a proposta de Carlos.
Nos três anos seguintes, ele trabalhou na abertura e pavimentação da ERS-420, que cruza os diques e a barragem. Depois, na própria hidrelétrica, prestou serviços na central de carpintaria e na casa de força. Minella, que mais tarde elegeu-se vereador em Itá, orgulha-se de ter ajudado a construí-la.
Como recompensa por ter continuado na região, ganhou do pai a casa (feita com madeira canela) sexagenária da família e a reergueu nas terras de Linha Alegre, perto de Carlos e dos irmãos. Só a deixou 15 anos depois, porque os filhos estudariam em outra cidade. A casa foi vendida para amigos, mas permanece com a mesma estrutura. Minella ainda a visita. Ele emociona-se ao recordar a resistência do pai em deixar o pedaço de chão da Volta do Uvá. Carlos foi um dos últimos a sair da localidade, em 1986.
— O meu pai pescava com anzol e até com revólver. Antes do enchentão de 1965, a beira do Rio Uruguai era toda coberta de árvores. Os sarandis e os ingazeiros iam por cima das águas. E tinha um setor aqui que os curimbas (peixe de água doce) gostavam de chupar o barro. O pai ia por cima dos galhos, escolhia quando tinha um bonito, atirava nele e trazia para o almoço. Ele pescou até depois de ter sido feita a barragem — confidencia Minella.
Durante meses, Carlos acordou ainda mais cedo para acender o fogão à lenha como desculpa para não o removerem à nova morada em terras catarinenses. Quando o filho chegava com o caminhão da mudança, o pai alegava estar impedido de sair porque o fogão havia sido aceso. A desculpa arrastou-se por meses, até a família jogar um balde de água no fogão à lenha.
Carlos era um apaixonado pela região. Gostava de caminhar por horas em meio ao campo e de pescar nas margens do Uruguai, onde atuou como balseiro. É dele, junto com dois amigos, uma façanha registrada em vídeo em fevereiro de 1993 e guardada por Minella até hoje.
Um dia antes de o rio começar a ser represado para a formação do lago artificial, Carlos propôs a outros balseiros uma travessia de canoa nas corredeiras revoltas do Uruguai. Para isso, convidaram para um churrasco o único morador da cidade que tinha uma filmadora na época.
Nas imagens desgastadas pelo tempo, é possível ver o senhor de cabelos brancos, pernas finas e mais de 80 anos de vida à frente da embarcação, coordenando os outros remadores e remando junto para não afundarem nas águas turbulentas. Da margem, gritos emocionados de apoio dos que acompanharam aquele momento histórico. Minella era um deles.
— Eles desceram o rio de canoa naquelas correntezas mais fortes para mostrar que tinham prática no rio. Era um local que ninguém passava, mas eles passaram. Desceram para fazer a última viajada porque já haviam passado em coisa pior. Para eles, não tinha perigo nenhum. Ficou de recordação para todo mundo — suspira o agricultor.
Na manhã seguinte, o rio começou a secar nas terras que foram da família.
A espera
Em Aratiba, mais de 600 famílias foram atingidas diretamente pela obra. Destas, 450 aceitaram o reassentamento e as demais receberam indenização. A menos de 5 quilômetros de onde um dia existiu a comunidade de Volta do Uvá, outra localidade luta para não ser extinta. Antes da UHE, Lajeado Ouro, era uma das mais prósperas da região. Tinha cem famílias de agricultores, time de futebol, coral, conjunto musical e uma escola de ensino fundamental incompleto.
Para não ser engolida pelo lago, a comunidade foi realocada pela concessionária, ficando a três quilômetros de onde existiu por quase um século. Os próprios moradores auxiliaram na mudança de casas, propriedades inteiras e até do cemitério local, transferindo 80 ossadas (30 delas não identificadas) para nichos. O novo ginásio de esportes ganhou as madeiras das paredes e do forro do antigo clube.
Em 1993, a comunidade produziu um mapa da antiga localidade. A intenção era reconstruí-la nas margens da ERS-420, principal ligação entre Aratiba e Itá, nos mesmos moldes. Mas isso não ocorreu. A maior parte das famílias mudou-se da região depois do pagamento das indenizações. E a nova instituição escolar, reinaugurada em 2001, acabou fechada por falta de alunos.
Hoje, há apenas uma criança de nove anos e dois adolescentes de 14 anos em fase escolar entre as 10 famílias que resistem na área. Os três estudam no centro de Aratiba. O abastecimento de água segue de poço artesiano, algumas famílias ainda aguardam as escrituras dos novos terrenos e a pavimentação dos 21 quilômetros restantes da estrada jamais saiu do papel.
– Nos encheram de promessas para deixarmos o nosso lugar. Estamos esperando até hoje. Somos vizinhos do progresso, mas o progresso não chegou aqui – desabafa o agricultor Julio Bierck, 55 anos, morador de Lajeado Ouro que fez parte da comissão de transferência dos moradores da região.
Por meio de nota, o Daer informou que “a pavimentação da ERS-420 está dentro do Programa de Acessos Municipais. O trecho começou a receber os serviços em meados de 2014, no entanto, não houve recursos para dar continuidade aos serviços na época. A situação ainda é essa, não há fonte de recursos para dar prosseguimento às obras”.
O prefeito de Aratiba, Guilherme Granzotto (PT), afirma que a região não conseguiu prosperar, como em Itá, por falta justamente da pavimentação. Se houvesse asfalto, acredita, surgiriam os interessados em investir no turismo nas margens do lago. Quem chega à região, depara com terra e pedras na rodovia, enquanto que do outro lado do lago, em solo catarinense, todas as vias de acesso foram asfaltadas.
Dono de 63 hectares em Lajeado Ouro, Julio Bierck é vizinho do lago artificial e pensou em construir um camping na região. Desistiu de investir devido à falta de estrutura da rodovia estadual, que por conta da obra também foi desviada do trajeto original e passou a cruzar por dentro das terras de Bierck.
Ele lamenta o possível fim do povoado onde se criou. E chora sentindo a falta dos tempos do futebol aos domingos e dos bailes semanais, que lotavam o clube local. Até a festa do padroeiro São João Batista deixou de ser realizada anualmente por escassez de participantes.
Temendo a extinção de Lajeado Ouro, Julio começou a ouvir os relatos dos mais velhos e está reunindo entre moradores e ex-moradores as fotos, os documentos e todos os registros que reforçam a existência da área. Mesmo sem qualquer experiência na produção literária, ele pretende escrever um livro para ser deixado às gerações futuras.