– Veeem, veeem, veeem. Óóó, óóó, óóó!
Os sons estridentes emitidos pelo padre Gilberto Giacomoni, 52 anos, podem até assustar. Mas são fundamentais para atrair a atenção dos amigos incomuns que o pároco mantém na pequena Ametista do Sul, extremo norte gaúcho. No ponto de encontro, geralmente nos fundos ou na porta de entrada da Paróquia São Gabriel, ele os espera com as mãos repletas de bolachas doces e broas de milho. É a hora do lanche. Às pressas, desconfiados, os tais amigos surgem olhando para todos os lados. Aproximam-se em uma espécie de fila indiana.
O padre insiste em falar com cada um deles enquanto os alimenta. Inquietos, alguns pulam para a frente da fila para ganhar antes a comida. Outros vão atrás das migalhas caídas no chão. São 25 pavões e 20 galinhas d’angola, todos criados soltos nos jardins da igreja, sem qualquer cerca ou grade que os impeça de passearem pelas ruas do município de 7,5 mil habitantes a 440 quilômetros de Porto Alegre . As guloseimas que fazem a alegria dos animais são produzidas artesanalmente pelas paroquianas. Evidenciam o quanto a amizade entre o sacerdote e as aves faz parte da rotina pacata dos ametistenses.
Tudo começou meio por acaso, em 2001, a partir de uma provocação de Giacomoni à Elvira Reginatto, 81 anos, moradora responsável por receber os turistas na entrada do templo religioso – conhecido no Estado pelas exóticas e belas paredes cobertas de pedra ametista, o símbolo da cidade cuja identidade se confunde com a cultura da mineração.
Dona de um casal de pavões, Elvira costumava distribuir aos vizinhos da região a produção de ovos. Porém, ninguém conseguia manter as aves novas vivas por muito tempo. Apaixonado pela plumagem colorida e pela beleza incomum dos animais, o pároco propôs a ela um teste: colocaria quatro ovos embaixo de uma garnizé. Mesmo duvidando do sucesso da empreitada, ela viu o desafio com bons olhos. Pois quatro pavõezinhos vieram ao mundo, para a surpresa de todos. Dois não sobreviveram. Contudo, apesar das perdas, hoje creditadas por ele à falta de conhecimento sobre o tema na época, o padre decidiu fazer uma nova boa ação: adotou duas pavoas solitárias.
Larguei no pátio e deixei se criarem. Elas começaram a pôr ovos, e fui colocando-os para as galinhas chocarem. Sem que eu me desse conta, a prole foi crescendo
GILBERTO GIACOMONI
Pároco de Ametista do Sul
A cada ano, nasciam novos grupos de aves, que passaram a ser distribuídas em seguida a moradores interessados, criando uma cultura “pavoeira” na cidade das pedras semipreciosas. A única exigência era o criador levar um casal, para não deixar nenhum animal sozinho na nova morada. Até hoje, os pares são vendidos a R$ 200. O dinheiro é investido em melhorias na igreja, na criação dos animais e, principalmente, em ração. Por mês, são gastos 60 quilos de milho — apesar de os bichos preferirem as bolachas e as broas feitas pelas fiéis.
Se o sacerdote decide sentar para tomar chimarrão com um pote de biscoitos à mão, precisa mantê-lo fechado – e com o cuidado redobrado. Basta um descuido para as aves surgirem e, sem cerimônia, tentarem bicar as guloseimas. A comunidade abraçou-as, de modo que é possível vê-las aparecendo na igreja durante as missas e fazendo visitas surpresas à morada de Giacomoni – basta haver uma porta aberta para que elas se sintam convidadas a entrar. Apesar de não chamar os pavões por apelidos, ele reconhece o temperamento de cada um. O de ombros negros é o mais determinado a pular a altura e com a velocidade necessária para conseguir antes dos outros um pedaço de bolacha. Uma das pavoas brancas só se aproxima depois que todos os outros saem, satisfeitos. A parte dela o pároco precisa deixar reservada durante a alimentação dos demais.
De tão carinhoso com as aves, Giacomoni começou a ganhar dos moradores outros tipos de galinhas para serem criadas. Hoje, quem chega à principal igreja da cidade depara, além dos pavões, com várias galinhas exóticas e galos circulando junto com cães e gatos às voltas do templo. Todos convivem harmoniosamente, o que é comemorado pelo criador.
— Graças a Deus, nunca incomodaram. Eles acabaram se tornando uma das atrações turísticas do município. É uma coisa bonita, porque famílias locais trazem as crianças, e quem está visitando Ametista (o município recebe turistas de olho no misticismo que surgiu com a cultura da extração de pedras semipreciosas) fica impressionado, porque não entende como pode aquele monte de pavões soltos no centro de uma cidade — orgulha-se, sempre bem-humorado.
As aves de Giacomoni identificam-se com moradores específicos de Ametista do Sul. Se uma delas, por acaso, resolver caminhar pelas calçadas e ruas, será cuidada por todos. Um exemplo foi no dia em que a reportagem de Zero Hora chegou à cidade. Na praça central, um morador se aproximou para alertar a equipe que, se cruzássemos com os pavões na avenida principal, deveríamos deixá-los passar, sem a necessidade de fugir deles.
— São domesticados — justificou.
Não é incomum ver turistas assustados ao verem as aves caminhando tranquilamente entre os pedestres. A psicóloga Thaíse Kunzler, 34 anos, de Chapecó (SC), e o professor Cícero Bondan, 41, de Três Passos, passaram alguns minutos apenas admirando as aves, a menos de um metro de distância, antes de ingressarem na igreja.
— É algo muito peculiar deste município. Não lembro de ter presenciado situação parecida em outra cidade. Achei o máximo — comentou Cícero.
– Eles são bem tranquilos, não se importam com a nossa presença – acrescentou Thaíse.
Os motoristas locais, acostumados à circulação do grupo, param os carros nas faixas de pedestre quando as apressadas galinhas angolanas, que gostam de caminhadas mais longas, atravessam a pista. Curiosamente adaptadas ao trânsito, elas saem em fila e, quando necessário, são capazes de aguardar o momento certo de cruzar a avenida principal da cidade. Até hoje, conta o sacerdote, houve apenas um atropelamento. Naquele dia, a vítima se transformou no almoço da paróquia.
Os pavões preferem ficar entre as rosas e os arbustos do jardim paroquial, durante o dia, e no alto das árvores mais próximas, à noite, podendo ser vistos até sobre a antena parabólica da casa do padre ou sobre o telhado da igreja. É entre outubro e dezembro, período de reprodução, que os machos ficam mais galantes. Para cortejarem as fêmeas, cantarolam sem parar e abrem as caudas em forma de um leque, que pode chegar a 2m50cm de diâmetro. Nessa época, os gritos vociferados em coro pelas aves são mais frequentes. A agitação é maior, mas o ritual do acasalamento é o período mais bonito dos pavões, já que eles passam a maior parte do tempo com a plumagem aberta. Por temporada, as pavoas chegam a pôr até oito ovos cada, chocados depois de 28 dias – em alguns casos, na peculiar Ametista do Sul, por outros tipos de aves.
— Já coloquei alguns para serem chocados neste ano. Vou criando até me correrem daqui, porque eles berram — afirma o padre. — O povo já está acostumado, mas eu fico muitas vezes preocupado com os vizinhos, que nesse período não conseguem dormir por conta da cantoria.
Para conhecer melhor as aves, Giacomoni fez pesquisas e conversou com especialistas e criadores. De segunda a sexta-feira, diariamente, ele se dedica aos pavões no final tarde, depois das visitas às comunidades mais distantes da região. Na igreja de Ametista do Sul, as missas ocorrem na primeira sexta-feira do mês, e uma vez por semana no sábado e no domingo. Há, ainda, as missas de corpo presente — num único dia, Giacomoni reza até quatro destas. Quando ele está ausente, a tarefa de manter as aves atendidas é de Elvira, que toma conta do grupo como se fossem dela.
Giacomoni conta que já fez “pavãozinho de pata quebrada voltar a caminhar” — preparou uma tala com palito de dente até ele ter forças suficientes para andar sozinho — e, além disso, fez aquilo que considera ter sido o “parto” de uma pavoa: chocado, o ovo não se partia nem mesmo com as bicadas do animalzinho insistindo para sair; foi necessário que o sacerdote quebrasse um pedaço da resistente casca para ajudar. O momento foi filmado por fiéis, e as imagens já chegaram a ser usadas, em uma escola local, durante uma aula de ciências.
A admiração de Giacomoni pelos pavões vai além dos jardins da paróquia. Logo na entrada da casa, ele mantém um vaso com centenas de penas recolhidas durante a troca da plumagem – os pavões começam a perder as penas em janeiro. Na sala de visitas, no alto da parede e próxima à imagem de Jesus crucificado, está a miniatura de um pavão, presenteada por um fiel. Mas a extravagância maior só é percebida por quem decide olhar as pinturas murais encomendadas por ele para o teto do templo religioso.
— Começamos no final de 2003, quando decidimos incluir as pedras preciosas nas paredes da nova igreja. Então, pensei: “Vamos botar também os pavões, já que eles são da igreja e estão no pátio. Se, um dia, não tiver mais pavão por aqui, pelo menos teremos uma recordação eterna” — explica.
Giacomoni explica que muitos altares têm o desenho da ave, cujo significado, dentro da liturgia, é o de ressurreição. Devota fiel, Elvira tem a certeza da conexão divina entre o padre e as aves exóticas. Desde a chegada dele à Ametista do Sul, em 2000, a comunidade católica ressurgiu na cidade. Foi o padre quem teve a ideia de transformar uma mera capela para 50 católicos em um dos mais requisitados templos do Estado. Ousado, propôs aos fiéis uma igreja diferenciada e ornamentada com o que de mais precioso há na região: as ametistas. As doações de pedras e as festas promovidas para arrecadar fundos garantiram a finalização da obra em 2008, após cinco anos de obras. Na campanha, liderada pelo pároco, foram arrecadadas 50 toneladas de pedras.
Hoje, a igreja tem capacidade para 400 pessoas sentadas. Além das doações de minerais, foram desembolsados R$ 800 mil.
— Nosso padre fez renascer a crença e ainda ajudou a aumentar o turismo na cidade. Os pavões estão com a pessoa certa — vibra Elvira.
Impulsivo, como ele mesmo se define, Giacomoni também está contando com a ajuda dos fiéis para construir um mirante de 54 metros de altura com vista para as montanhas que cercam Ametista do Sul. Uma pirâmide e uma cruz com nove metros de altura no alto da torre darão o toque final à obra, cujo custo chegará a R$ 1 milhão. A inauguração está prevista para 2020.
Para quem, desde a infância humilde no interior do município de Planalto, sonhava em dedicar a vida à Igreja Católica, Giacomoni foi além das graduações em Filosofia e Teologia, concluídas respectivamente em Viamão e Passo Fundo: ergueu uma nova paróquia e se tornou conhecido pela comunidade e pelos visitantes como o “padre dos pavões”.
— É uma coisa fabulosa. Além da igreja, temos algo diferente também no pátio, que ajuda a ornamentar, dar beleza e vida. Me fortalece — emociona-se. — Na casa do pai, tínhamos muitas galinhas e gansos. Minha experiência veio de lá. Comecei com esses pavões e essas galinhas exóticas por brincadeira. Agora, tem turista que vem perguntando: “Onde é que a gente vê os pavões do padre?”. Podemos dizer que eles são muito queridos pela sociedade e mais ainda pelo padre, porque cuido com amor e com carinho.