Ao se formar em Filosofia na Universidade Federal de Pelotas (UfPel), aos 21 anos, Neimar Marcos da Silva precisava tomar uma decisão. Era 2006, e o filho de agricultores de Alpestre, no extremo norte gaúcho, tornava-se o primeiro da família a concluir um curso de graduação. Estudante conhecido em Pelotas pelo engajamento em projetos sociais e pelo envolvimento com diferentes grupos de pesquisa na universidade, Neimar vislumbrava dois caminhos. Em um deles, projetava-se pós-doutor aos 30 anos, com uma vida estável, atuando como professor na área, usando terno e gravata nas aulas, dirigindo um carro, pagando o financiamento da casa própria, saindo com diferentes mulheres e bebendo bons vinhos. Em outro, pulsava o desejo de desbravar o mundo, conhecer pessoas e aprender sobre xamanismo — prática descoberta durante o curso.
Antes de anunciar aos familiares a sua escolha, decidiu dar a eles o que chamou de “cortina de fumaça”. Havia decidido não participar da festa de formatura, mas, para não chocar pais e parentes, contratou um fotógrafo, pôs uma toga e posou para as lentes como recém-formado. Fez várias cópias da imagem e enviou-as para cada familiar. Recebeu as felicitações de avós e tios por telefone. Depois, comunicou aos pais que viajaria “para atuar junto a uma ONG internacional”.
— Pensei: “A vida é tão curta! Vou ficar a minha vida inteira sentado, concluindo teses que ninguém vai ler, produzindo conhecimento morto?”. Foi quando me lembrei de uma frase do Don Juan: “A única coisa que importa na vida é encontrar o caminho do coração”. E eu fiz isso — recorda.
Neimar realmente havia decidido mudar. Além de deixar a carreira de lado, abandonou também as atividades como ator, bailarino e líder social em Pelotas. Queria recomeçar do zero, e em outro lugar do Brasil. A atitude mais radical veio a seguir: rasgou todos os documentos de identificação, cortou e pôs no lixo os próprios cartões bancários. A partir daquele momento, ele se tornaria “ninguém”.
Entre 2006 e 2009, envolveu-se com a ecovila itinerante Caravana Arco-Íris por La Paz – projeto criado no México e registrado na Espanha que promove o desenvolvimento por meio do voluntariado internacional. Selecionado para ser integrante da primeira trupe a desbravar o nordeste brasileiro, explicou aos organizadores a intenção de passar um tempo sem identidade definida. Foi aceito.
Chamado de Ninguém pelos colegas, ajudou a levar teatro, dança, música e artes circenses ao sertão. Montando e desmontando os acampamentos do grupo, ele ampliou o saber sobre permacultura, um sistema no qual são criados ambientes totalmente sustentáveis, nos quais tudo o que se produz e consome, além dos próprios descartes, está em harmonia com a natureza. Ele descobriu essa prática ainda no período da universidade, ao fazer parte dos movimentos estudantil e de agroecologia.
Autodidata, aprofundou o conhecimento sobre o tema por meio de livros. Logo na parada inicial da caravana, em Aracaju (SE), conheceu grupos de agrofloresta e agroecologia. E auxiliou o departamento de permacultura da caravana, tornando-se responsável pelas oficinas sobre o tema – as aulas serviam para arrecadar dinheiro e se manterem na estrada. Ali ele se tornou não apenas um disseminador do conceito, mas também um educador. Com mais experiência, e ainda na Arco-Íris por La Paz, passou a dar aulas de bioconstrução e permacultura em Recife (PE) e Teresina (PI).
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Enquanto esteve ligado à caravana, pouco falou com os familiares. Só os visitava uma vez por ano. A liberdade de ir e vir junto ao grupo itinerante lhe permitiu viajar por quase todos os países da América do Sul e da América Central para compreender o xamanismo. Sempre de carona, às vezes atravessava países a convite dos xamãs – pessoas aptas a servirem chás e plantas medicinais tradicionais de uso milenar, capazes de provocar visões e curas. Hoje, diz ter visitado o submundo de cada lugar para ingressar ilegalmente nos países, sem precisar apresentar os documentos que, afinal, ele não tinha.
— Não tinha dinheiro nem passaporte. Eu vivia num mundo paralelo, mas era muito sagaz. Vai ser ninguém no dia a dia, no olho no olho... Na internet, é fácil ser ninguém — comenta, fazendo referência a quem usa perfis falsos nas redes sociais.
Entre os xamãs anciãos espalhados pela América, Neimar, ou melhor, Ninguém era considerado um mensageiro. Um chasqui, como eram chamados no Império Inca os corredores ágeis que se revezavam, de um posto a outro, na missão de entregar mensagens oficiais. Distante da caravana, produzia artesanato para sobreviver. Aprendeu espanhol e o idioma indígena quíchua, participou de cerimônias importantes do xamanismo e chegou a ser convidado para estabelecer-se no México. Porém, como diz, o Brasil o chamava. Em 2009, já considerado um xamã ligado à linha tradicional inca e respeitado por quem seguia a prática, deixou a caravana para trabalhar com permacultura e estabelecer moradia em Recife, no Ecocentro Bicho do Mato.
A permacultura me mostrou a importância do planejamento e de como a ausência deste é a origem de muitos males da sociedade
MARCOS NINGUÉM
Xamã e design de permacultura
Até que se sentiu preparado para voltar a ter uma identidade. Decidiu se tornar Marcos Ninguém, proprietário da empresa Marcos Ninguém Permacultura. Os dois trabalhos, como xamã e designer em permacultura, lhe deram visibilidade no Exterior e amigos famosos, como a atriz e apresentadora de TV Maria Paula.
A convite para falar sobre os dois temas, visitou igrejas do Daime, espaços de terapia, institutos e até universidades em países latino-americanos. Mesmo mantendo a casa no Nordeste, ficava 15 dias do mês apenas viajando a trabalho. Nesse período, ainda viveu em Goiás durante um ano para ser coordenador de um processo de transformação de uma fazenda convencional em estação de permacultura, a Aldeia 2012.
Depois, convidado pela prefeitura de João Pessoa (PB), atuou como coordenador de um centro de estudos ambientais, função da qual desistiu quando tentaram obrigá-lo a fazer campanha política. Em seguida, mudou-se para São Paulo, onde foi professor no programa Gaia Education – uma das maiores referências em educação para sustentabilidade e design de ecovilas, ligado à Rede Global de Ecovilas.
— Trabalho com o conceito de ser um maluco profissional. Vivo a minha loucura e vivo da loucura, com muito profissionalismo — esclarece, convicto.
Apesar de ganhar admiradores em diferentes Estados ao edificar prédios ecologicamente sustentáveis, Marcos sentia o desejo de retornar a Alpestre natal — para onde não voltava desde os 15 anos. Em 2015, de férias no município, ao nadar no Rio Bonito, decidiu estabelecer morada na região.
Ao procurar um lugar para construir um instituto de permacultura, conversou com representantes da administração municipal, que lhe ofereceram o prédio abandonado de uma escola na localidade de Dom José, a 20 quilômetros do centro. A comunidade, que chegou a ter 250 famílias no passado, estava desvalorizada desde a instalação da Usina Foz do Chapecó sobre o Rio Uruguai — que obrigou dezenas de moradores a deixarem suas casas — e da falta de empregos para os mais jovens. Menos de 40 famílias de agricultores, a maioria composta por idosos, seguiam vivendo no local.
Entusiasmado em recompor um lugar praticamente esquecido, Marcos convidou o irmão, o arquiteto e permacultor Clairton da Silva, e amigos de todo o Brasil para um mutirão de reforma.
— Era uma vila inteira abandonada, por causa do impacto da barragem. O tecido social havia se rompido. Um cenário de guerra, uma vila fantasma. Nos desafiamos a transformar o lugar, usando a permacultura como ferramenta — conta, orgulhoso.
Marcos e os parceiros avaliaram o local e trabalharam no design social da nova comunidade. Para estreitar os laços com os agricultores, prestaram assistência na colheita da laranja e do feijão, consertaram problemas estruturais e abriram fossas ecológicas. Marcos comprou duas casas na estrada principal, onde montou o escritório do grupo. É nele que são acolhidos os voluntários e onde foi fundada a Universidade Alternativa de Permacultura, Bioconstrução e Ecovilas (Unipermacultura), que oferece cursos EAD de Design de Permacultura, Bioconstrução, Agrofloresta e Design de Ecovilas.
A Ecovila Dom José, que ele classifica como o maior de todos os seus sonhos, foi montada em um terreno de três hectares. A divulgação na internet de um lugar com as próprias regras para viver em comunidade, com a proposta de casas feitas por meio da bioconstrução, atraiu muita gente. O consórcio é baseado na confiança, com um contraro em cartório e sem envolvimento de agência bancária. Em pouco tempo, surgiram interessados de todo o Brasil.
Os proprietários pagam R$ 2 mil de entrada, e o dinheiro é usado para tornar a terra comunitária – ela é de todos. No acordo firmado com Marcos Ninguém, a cada cinco meses as pessoas desembolsam R$ 2 mil, e uma casa é erguida por semestre. Hoje, a técnica de bioconstrução usada é o superadobe – sacos de polipropileno são preenchidos com solo argiloso e moldados um a um –, com 10% de cimento usado no reboco. No total, o imóvel de 64 metros quadrados, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, custa R$ 50 mil. A meta é erguer 20 casas em 10 anos.
Não há água encanada nem energia elétrica — o proprietário pode colocar, por conta própria, a energia solar fotovoltaica. Entre as moradias, sempre há uma horta ou uma fossa ecológica com sistema de tratamento de esgoto por evapotranspiração, ou seja, quando a água da terra, ao invés de se espalhar no lençol freático, sobe por meio de um filtro feito em camadas com pneus, entulho, brita, areia e terra. Sobre tudo isso, são plantadas bananeiras e taiobas, plantas macrófitas que absorvem muito líquido – dependendo da época do ano, uma bananeira chega a consumir até 30 litros de água por dia. A água do esgoto passa por esses filtros de baixo para cima, sendo limpa no caminho. Os coliformes fecais e outras bactérias que não morrem no processo são eliminados pela mineralização. A água chega às bananeiras já limpa e rica em nutrientes. Não há cheiro, nem moscas. Da superfície, vê-se apenas um jardim.
Prestes a finalizar a sexta moradia, Marcos pretende começar o projeto paisagístico de todo o terreno, para ser concluído em seis meses. As casas são padronizadas, e é proibido muros ou cercas dividindo os espaços. Se o proprietário desistir do contrato, não paga multa, mas precisará vender o prédio pelo valor corrigido. O comprador deve aceitar as regras coletivas — como não fazer churrasco na cozinha comunitária.
Marcos ressalta que a ecovila é apartidária e laica:
A grande dificuldade é lidar com um mundo no qual as pessoas estão acostumadas ao individualismo e à terceirização das responsabilidades. Trabalhar isso é complexo. Muitos vivem com a lógica “estou comprando, vocês me devem"
MARCOS NINGUÉM
Logo no começo da comunidade alternativa, ele enfrentou resistências. É que os moradores imaginaram chegar numa área pronta para morar e se sentiram enganados ao verem apenas mato e espaço para construírem as casas. A ideia da ecovila era um trabalho em conjunto. Hoje, com o treinamento dos próprios moradores da região, funcionários são contratados para o serviço bruto e têm a orientação da equipe de permacultores.
— Reconheço que usamos muitos gatilhos mentais do marketing, e as pessoas acharam que era a Disneylândia rural, tudo pronto, só desfrutar. Vendemos o projeto e a filosofia de vida, divulgamos como uma alternativa ao sistema e à sociedade. Não deixamos claro que a ecovila ainda estava em construção, e que ainda havia muito trabalho a ser feito — admite Marcos. — Nossa meta é provar que é possível, sendo um novo modelo de casa popular, de assentamento. Uma nova Cohab, mas ecológica.
Ao jogar-se mais uma vez ao desconhecido, Marcos desafiou a si próprio a valorizar as terras em Dom José: desembolsou R$ 10 mil por hectare, mesmo que seu valor fosse R$ 4 mil. Deu certo: hoje, um hectare em Dom José custa R$ 30 mil.
Quem mais comemora são os agricultores locais que, aos poucos, foram se adaptando ao modo de vida de veganos, adeptos do xamanismo e de outras vertentes espirituais holísticas, como budistas e hare krishnas, que chegam buscando paz e conhecimento.
Há um ano, Marcos organizou no local o Encontro Nacional de Comunidades Alternativas. O evento atraiu 700 jovens de todo o Brasil. A movimentação despertou a atenção de quem estava acostumado ao silêncio e a passagem apenas de bois e vacas pela estrada de acesso a Dom José. Os participantes acamparam nas terras da ecovila e, numa noite de vendaval, foram acolhidos no salão de festas da igreja da localidade, contando com a ajuda dos agricultores.
Nascido e criado em Dom José, Elias Bach, 60 anos, comemora a renovação da região. E elogia os forasteiros recém-chegados:
— O bom é que eles não comem carne. Não me preocupo porque não vão matar minhas galinhas e meus boizinhos. Pelo contrário, ajudam a cuidar dos pintos que fogem. São silenciosos e não comem nem as bergamotas do chão. São os melhores vizinhos.
Totalmente adaptado ao ritmo da comunidade rural, Marcos Ninguém ainda ajudou a fundar a Tabacos Dom José, uma empresa criada para representar os produtos gerados de forma agroecológica pelos pequenos produtores.
Hoje com 35 anos, solteiro e pai de Morena Flor, quatro anos, que mora com a mãe em São Paulo, Marcos define-se como um intelectual orgânico – lembrando o conceito criado pelo italiano Antonio Gramschi sobre quem se mantém ligado à comunidade de sua origem, atuando como porta-voz desta. E já quer se aposentar. É que o caminho percorrido não foi curto. Bem antes de se tornar xamã e especialista em permacultura, ele fez a primeira horta sozinho — tinha cinco anos. Viveu com a família no interior do Mato Grosso até os seis, começou a trabalhar como mecânico aos 11, iniciou-se na dança, no teatro e no circo aos 16. Aos 17, fundou a ONG Organização Brasileira de Revolução Social e Artística (Obras) para atender a mais de 500 adolescentes carentes de Pelotas. Em seguida, trabalhava com produção cultural e de eventos e dava aula de teatro na UfPel, até que, aos 21, viu sua primeira peça, Tu Mesmo — A Perda de Si na Busca do Outro, ser montada no teatro.
— Meu sonho é “sair de cena” aos 40 anos para apenas viver na ecovila — projeta. — Gosto mesmo é de fazer algo que sei que fará a diferença, não importa se vou ou não ganhar dinheiro. O mais importante é ter propósito.
Por fim, faz um convite, usando um vocabulário peculiar para se colocar como parceiro em eventuais empreitadas alternativas:
— Quer aprender sobre permacultura? Vem para cá e trabalha comigo. Vamos hackear o sistema, e não bater de frente com ele.