Em uma pequena, ordeira e devota cidade da Serra, recanto de descendentes do colono italiano, são criadas e produzidas as peças que apimentam a sensualidade das mulheres e incendeiam a imaginação dos homens. Todos os anos, saem de Guaporé para butiques do Brasil e do mundo milhões de calcinhas com rendas e laços, de sutiãs bojudos, de cintas-ligas provocantes, de camisetes e bodies carregados de transparências. São 150 fábricas de moda íntima na cidade, desde pequenas confecções familiares que envolvem duas ou três pessoas costurando na garagem até marcas com cento e tantos trabalhadores, antenadas nas últimas tendências e com mercado no Exterior.
Em Guaporé, respira-se lingerie. Quem chega à cidade já encontra, junto ao pórtico de entrada e abençoada pela estátua do Cristo no alto do morro, uma sucessão de outdoors em que modelos exibem as coleções saídas da fértil e ousada imaginação das estilistas guaporenses. A área central é tomada por lojas especializadas – em um total de 136 –, para atender representantes comerciais, atacadistas e sacoleiros. Por toda a parte, o que se vê são calcinhas e sutiãs, sob marcas como Ellan, Indecense, Doce Delito, Duélle, Framboesa, Tangas & Taças, Affinity, Embelleze, Vislumbre, Vênus, Envolvence, Evidence, Instinto Íntimo, Miragge, Sbelty.
De onde saiu isso tudo? Uma das pessoas mais gabaritadas para contar a história é Loivane Dal Sant, pioneira do ramo e coproprietária da Indecense. Em 1993, aos 23 anos, ela fundou com uma sócia aquela que costuma ser considerada a primeira fabricante de moda íntima de lá, a Elegance. Loivane trabalhava no comércio, ganhava um salário mínimo e sentia-se insatisfeita. Um dia, a colega viu o anúncio de uma empresa à procura de revendedoras de lingerie. As duas compraram algumas peças e começaram a oferecê-las a conhecidas. Depois de algum tempo, estavam ganhando mais dinheiro nas horas vagas do que no emprego formal.
— Pensamos: vamos fabricar lingerie. Mas por onde se começa? Não conhecíamos tecido, não sabíamos sobre maquinário, não existia mão de obra. Partimos do zero, talvez abaixo do zero, porque faltava conhecimento até para saber que estávamos no estágio zero — relata Loivane.
As sócias compraram pano e começaram a trabalhar em casa, mas deu tudo errado: calcinhas e sutiãs não tinham caimento, vestiam mal, ficavam imprestáveis. Faltavam até noções elementares, como o fato de que os tecidos têm um avesso e um direito e que os fios seguem um determinado sentido. Elas perceberam que precisavam de gente que soubesse pelo menos manejar uma máquina de costura. Recorreram a costureiras habituadas a confeccionar vestidos de prenda e, em outro momento, a duas ex-funcionárias de uma fábrica de calçados, peritas em coser solas. No segundo dia, as egressas da indústria calçadista, que representavam toda a força de trabalho da jovem confecção instalada em um porão alugado, já não apareceram para trabalhar. Loivane foi à casa delas e encontrou-as debaixo de uma árvore, sorvendo chimarrão.
— Entramos em greve. Estamos ganhando muito pouco — comunicaram.
Depois de um ano, quando as vendas engrenavam, a sociedade se desfez, e Loivane deixou a Elegance. Com a irmã, Eliane Dal Sant, começou a Indecense, que na época se chamava Intimitá. Foi um retorno ao estágio zero. A família não acreditava na iniciativa, achava que elas estavam malucas e acabariam perdendo dinheiro. Um irmão se opunha:
— Mas vocês vão fabricar calcinha?
Hoje, o tal irmão fabrica calcinhas na Indecense, que tem uma sede com mil metros quadrados de área construída, na qual trabalham 55 pessoas (eram mais de 100 antes da crise), sem contar os terceirizados e os empregados da marca de biquínis. As irmãs Dal Sant investem em viagens a Paris, a Nova York ou à China para pesquisar tendências, lançam uma coleção com 70 conjuntos diferentes a cada semestre e produzem cerca de 400 mil peças ao ano.
Como é que, de uma fábrica de fundo de quintal, nasceu uma potência dessas e, mais do que isso, todo um setor, que emprega 2 mil pessoas (quase uma em cada 10 guaporenses) e corresponde a 15% do ICMS local? Loivane tem uma explicação: segundo ela, a explosão da indústria da moda íntima está relacionada com o outro grande ramo econômico de Guaporé, o das fábricas de joias, com tradição centenária. Essas fábricas escoavam sua produção por meio de atacadistas, que por sua vez trabalhavam com milhares de revendedoras que batiam de porta em porta. Tais atacadistas perceberam que não custava nada agregar um novo produto, as calcinhas e os sutiãs, aos kits das vendedoras, já que o público-alvo era o mesmo. E assim as encomendas começaram a se multiplicar.
Com o sucesso, todo mundo cresceu o olho e quis costurar roupa íntima em Guaporé. Na segunda metade dos anos 1990, costureiras demitiam-se das duas ou três pioneiras para abrir seu próprio negócio. Até hoje, é uma indústria eminentemente comandada por mulheres.
— Havia alguns que faziam piadinhas: “Guaporé, terra da joia e do porta-joia”, essas bobagens. O próprio município demorou muitos anos para aceitar e colocar a indústria da lingerie como um setor industrial como qualquer outro, que gera renda e emprego. Havia um pouco de preconceito, porque a maioria das pessoas que estavam à frente das fábricas eram mulheres jovens, meninas mesmo, e por ter essa cultura, não falo machista, mas de os homens estarem à frente. Hoje a cidade nos vê com bons olhos, até com orgulho — conta Loivane.
Na Indecense, Loivane cuida da administração e Eliane se dedica à parte criativa. É o mesmo arranjo da Duélle, “a marca do beijo”, das irmãs Sandra Krieger Bregolin e Sitânia Krieger. A caçula Sitânia é a estilista e calcula já ter criado mais de 1,2 mil peças, ao ritmo de 70 por ano, tudo catalogado em pilhas de pastas com os desenhos originais. Ela desenvolve uma coleção de inverno, uma de verão e mais duas ou três intermediárias, para aplacar a avidez do cliente por novidades. No desenho, visa o sexy:
— São peças para um público jovem, como foco no sensual, sem muita sustentação. Não é tanto para o dia a dia. Para criar, tem de estar sempre pesquisando, viajando, conhecendo. Às vezes estou tentando criar alguma coisa e parece que não vem nada. Daí estou na cama, duas horas pensando, viajando, e de repente me vem a peça como eu quero fazer. Levanto na mesma hora e vou desenhar, porque no outro dia já não lembro. Tem de montar tudo na cabeça e depois buscar os fornecedores. Às vezes são 14 fornecedores para uma única peça, porque lingerie tem muito aviamento: o bojo, o elástico, o fecho, a alça, o viés de arco. E ainda tem a cor.
Ela explica que uma estratégia certeira é acompanhar as telenovelas, prestando atenção nas roupas de baixo. Quando Bruna Marquezine ou outra global surge em cena exibindo a lingerie, a brasileira vai logo procurar algo no mesmo estilo. Por exemplo: uns seis anos atrás, a Duélle havia lançado sutiãs e calcinhas repletos de tiras, o que era uma tendência lá fora, mas as clientes locais não se entusiasmaram. Daí, apareceu na novela. Bombou.
A moda das tiras, dizem as irmãs da Duélle, manteve o fôlego até 2017. Agora já ganhou um não sei que de cafonice.
— Neste ano, o que entrou foram as coleiras de renda — avisa Sitânia, mostrando um sutiã que se prolonga em uma faixa rendada ao redor do pescoço.
A Duélle tem acesso privilegiado aos meandros da preferência feminina, pela particularidade de ser uma das fabricantes mais internacionalizadas de Guaporé. Do que produz, 20% vai para fora do país: América do Sul, EUA, Espanha, Itália e, em breve, Rússia. As donas aprenderam, por exemplo, que as calcinhas têm de ser diferentes conforme o mercado. As brasileiras e as americanas amam fio dental, mas as primeiras querem-nas baixas, e as outras, altas. Já a italiana não abre mão de uma calcinha arredondada, que tape toda a bunda. Sandra oferece um tour pela loja da marca, no centro de Guaporé, e vai explicando as peculiaridades da clientela:
— A Duélle trabalha com vários modelos totalmente sem bojo, o que é muito usado na Europa, mas vende pouco no Brasil. O bojo dá firmeza, mas as europeias gostam de tudo mais natural, não importa se têm seio caído. Na cor, elas são conservadoras, querem branco, preto, bege, esses tons neutros. Nos EUA, sai bastante sutiã sem o aro, que é a armação metálica que vai na base e dá mais firmeza para o peito, porque lá tem muita siliconada. Também compram muito a calcinha ripple, com um elastiquinho que levanta o bumbum, porque elas não têm muita bunda. O que existe de comum para todas as mulheres é a renda. Renda é paixão mundial.
Aposta em segmento
Os últimos anos, de crise econômica, foram complicados para o setor – afinal, em um momento de aperto a calcinha de renda é uma séria candidata a ser o primeiro item cortado da lista de prioridades. As vendas despencaram, as empresas cortaram pessoal, houve quebradeira. Mas em paralelo a isso surgiu uma esperança de tempos melhores: a lingerie deixou de ser roupa íntima, que deve manter-se oculta pelo bem do decoro, para franquear acesso a todos os olhares. Isso abriu perspectivas animadoras.
Na Ellan, por exemplo, uma empresa fundada em 1996 por Marília Morás e Elimara Coradi, o carro-chefe das vendas até cinco anos atrás eram os espartilhos, peça íntima e provocante por natureza. Agora, o que vende são os bodies, transparentes ou não, que podem ser usado como lingerie e como roupa para sair – e até para trabalhar.
— O espartilho é uma peça ocasional, que só se vai usar em um momento especial, enquanto o body você sai com ele para a balada e ainda usa no momento especial. Une as duas opções no mesmo produto — explica Elimara.
A transformação da roupa íntima em referencial de moda, que faz parte da composição do look, representa uma vantagem para os fabricantes do Guaporé porque não é qualquer confecção que detêm a tecnologia da lingerie, para não falar no know how de sustentação dos peitos.
— Estamos apostando muito nessa tendência de a lingerie aparecer. A juventude mudou e vai para a balada assim, com a lingerie e uma casquinho por cima. Quando chega lá, a menina tira o casaquinho, porque ela sente muito calor. As peças que temos hoje, se eu lançasse três anos atrás, seria excomungada — comenta Elimara.
Em novembro, a área de criação da Ellan estava às voltas com as peças-piloto da coleção inverno 2019, que haviam recém sido testadas e aprovadas e devem chegar às lojas em março. As peças-piloto são protótipos feitos à mão e o teste envolve o uso, geralmente por uma funcionária, para avaliar se a peça é confortável, se deforma, se desgasta, se machuca, se o elastano arrebenta.
— Cada coleção é uma aposta, porque projetamos com um ano de antecedência o que as pessoas vão querer. Teve algumas que a gente errou bastante, teve outras que errou menos, teve outras que acertou mais — diz Elimara.
Um grande acerto foi o da Vislumbre, das primas Cassiana e Rejane Dallagnol. Eles fundaram a fábrica em 1999 e, por mais de uma década, comandaram um empreendimento modesto, com apenas quatro ou cinco funcionários. Em 2010, aventuraram-se no segmento plus size, lançando peças sexy, mas em tamanhos extragrandes, e tudo mudou. Agora elas têm 56 funcionários, sem contar os terceirizados, e fazem 30 mil peças por mês. A linha plus size corresponde a 70% da produção.
As primas fizeram jus ao nome da marca: vislumbraram que as mulheres de formas mais generosas estavam deixando a vergonha para trás e valorizando o próprio corpo, mas só encontravam calcinhas e sutiãs basicões no mercado. Queriam design, tecidos rendados, alças largas, transparências, laços e cores, mas só viam isso em peças pequenas demais.
Atender a esse desejo não foi simples. Cassiana e Rejane descobriram que os fornecedores só faziam bojos até o tamanho 50 – o raciocínio era de que uma mulher de fartas mamas não teria por que buscar um sutiã com enchimento. Tiveram de insistir com os fabricantes – hoje, trabalham com bojos até a graduação 58. Rejane relembra outra complicação:
— No começo, a gente pegava o modelo P e fazia no tamanho 54. Mas a cliente começou a dizer: não veste. A modelagem é diferente. Na base da tentativa e erro, tivemos de desenvolver uma tabela de medidas própria, porque isso não existia.
Os tamanhos extragrandes também são de fabricação mais laboriosa. Tome-se como referência Tom Portela, 23 anos, que desde 2012 especializou-se no chamado “traverte”, a costura final do sutiã. Como exige mais força, costuma ser um dos poucos setores da indústria da lingerie com maior presença masculina. Quando começou no serviço, Portela finalizava entre 200 e 300 sutiãs por dia. Como queria um aumento salarial, começou a treinar os movimentos em casa, nos finais de semana, sem a máquina, e aumentou sua marca para 700. Na Vislumbre, viu a produção retroceder para 400 peças.
— No plus size, tem de abrir mais os braços, fazer um movimento amplo, e a costura também é maior — justifica.
Portela é de Guaporé e nunca teve dificuldade de arranjar emprego graças à indústria de lingerie. Quando a economia está aquecida, aliás, é preciso importar mão de obra – de outras cidades, de outros Estados e até de outros países (há quase 40 senegaleses na cidade). Entre os forasteiros, está Cláudia Elis Baraúna Alves, 33 anos, originária de Brotas de Macaúbas, cidade do oeste baiano distante 2,7 mil quilômetros de Guaporé.
Cláudia chegou à cidade gaúcha em 2006, para visitar uma conterrânea. Era para ficar uma semana, mas preencheu ficha em uma fábrica e dois dias depois já estava trabalhando. Especializou-se na auditoria: examinar e medir as peças já prontas, em busca de defeitos. Atualmente, todas as calcinhas e sutiãs da Vislumbre precisam do ok da baiana. Em geral, audita umas mil peças por dia:
— Descarto bastante, tem dias que chego a tirar cento e poucas. Os defeitos mais comuns são buracos, costura desregulada, ponto de viés caído fora, medidas erradas. Dá para arrumar 70% disso, que volta à produção.
Subida de patamar
A lingerie é poderosa. Espicaça, exerce atrações fulminantes, transforma vidas, põe comida na mesa e carro na garagem das famílias, como se pode constatar em uma estrada afastada do centro de Guaporé. Ali, à beira do asfalto, erguem-se duas edificações, lado a lado: uma modesta casa de alvenaria e um espaçoso prédio de quatro pavimentos, em fase avançada de construção. Eles testemunham a transição da MZ Moda Íntima de uma empresa que funcionava espalhada por sala de estar, cozinha, garagem e quartos de dormir, amontoando vida doméstica e empresarial, para um novo patamar: em 2019, com a transferência da casa para o prédio, haverá andares separados para estacionamento, loja, fábrica e residência.
A MZ começou em 2003, quando Elenir Zampeze Marangón, contrariando a vontade do marido, Claudiomir Marangon, abdicou do salário garantido numa fábrica de eletrônicos para trabalhar em casa e ficar de olho nos filhos pequenos, Lucas e Letícia, que andavam sempre pela rua e geravam preocupação para a mãe. Elenir nunca havia manejado uma máquina de costura, mas resolveu costurar lingerie. Quatro anos depois, Marangon também se demitiu, de uma indústria de joias, para ajudá-la na empreitada. Com os filhos ao redor, atazanando, eles confeccionavam algumas peças, fechavam a casa, colocavam a família inteira no carro, os dois pequenos brigando no banco de trás, e percorriam cidades da região para oferecer a produção a lojistas.
Mais tarde, com os filhos entrando na adolescência, o casal viajava sozinho. Os irmãos ficavam na fábrica, que agora já tinha os primeiros colaboradores.
— A gente ficava cuidando dos funcionários — diz Lucas, o mais velho, hoje com 22 anos.
— Acho que era mais os funcionários que ficavam cuidando deles — brinca Elenir.
Com uma produção de 10 mil peças mensais e clientela formada principalmente por sacoleiras, a MZ ainda conserva características de um negócio em família, tocado com alguma informalidade, mas ao mesmo tempo se profissionalizou e adotou técnicas avançadas de gestão. As reuniões de “diretoria” seguem acontecendo na mesa da cozinha, durante o almoço entre pais e filhos. Ainda é Elenir quem desenha as lingeries. As primeiras peças sempre são para ela e para Letícia, 19 anos, que passam uma semana usando os novos modelos de calcinha e sutiã antes de darem o aval para a produção. A promoção não é feita por meio de catálogos com mulheres atraentes, como nas empresas maiores, mas por meio de fotos das peças encaminhadas à clientela via WhatsApp.
Ao mesmo tempo, a empresa cresceu para comportar 14 funcionários (cinco são parentes e oito, vizinhos), adquirir maquinário moderno e expandir instalações. Lucas resolver estudar Engenharia de Produção, na Universidade de Passo Fundo (UPF) e aplicou na empresa tudo o que aprendeu sobre gestão da qualidade, destinação de resíduos, leiaute, contabilidade, atendimento ao cliente etc. Por estes dias, apresenta seu trabalho de conclusão de curso, que é, naturalmente, o processo de expansão da MZ. Letícia, por sua vez, planeja estudar gestão de recursos humanos, para também aplicar os conhecimentos na confecção da família.
Impressiona que tudo isso, todas essas histórias guaporenses, todo esse mundo que surgiu de umas poucas mulheres voluntariosas trabalhando dentro de casa, está assentado em algo básico, prosaico, cotidiano: calcinhas e sutiãs. Como é possível? Diz Loivane Dal Sant, pioneira da Indecense:
— Fazer calcinha e sutiã... Sutiã são dois bojos, uma cinta e duas alças. Calcinha é frente e costas, cavada ou mais fechada, uma rendinha aqui, outra ali. Não tem muito mais o que fazer, não dá para fugir dessa base. Mas aí a gente vai lá e coloca alma nisso.