– Hidra o quê?
A pergunta da aluna do 3º ano do Ensino Fundamental Vitória Tainá Batista Lopes, oito anos, interrompe a explicação de Gislaine Oliveira Soares, vice-diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Ary Soares. No pátio da instituição, em Glorinha, na Região Metropolitana, a menina e um grupo de estudantes observam uma engenhoca enquanto ouvem a professora descrevê-la.
— É uma armadura hidráulica. Vocês vão estudar isso em física — completa Gislaine frente aos olhares curiosos das crianças.
Então, o "engenheiro" se aproxima. Muitos ali já o conheciam, mas quem não havia observado o trabalho de Rogers Junior Consul Silveira na 4ª Mostra Pedagógica da escola, no final de setembro, ou nas redes sociais, onde a notoriedade de sua obra extravasou os muros escolares, surpreendeu-se ao vê-lo.
— Foi uma criança que fez aquilo — sussurra uma das meninas, dispersando-se da aglomeração, pouco antes de a sirene alertar para o fim do recreio.
Rogers tem 10 anos e é aluno do 5º ano da Ary Soares, a maior escola de Glorinha, município com cerca de 8 mil habitantes escondido às margens da freeway. É um aluno aplicado, disciplinado, persistente e, agora, famoso. Foi pelas mãos dele que surgiu o mais comentado entre os 60 trabalhos apresentados na mostra: a armadura robótica hidráulica.
Um ano antes, ainda no 4º ano, Rogers já vislumbrava participar da etapa competitiva do evento. É que somente a partir do 5º ano que a mostra tem caráter de competição; antes disso, é somente uma apresentação de trabalhos como forma de incentivar a garotada a desbravar áreas de seu interesse. Os temas são livres e podem ser desenvolvidos individualmente, em duplas ou em grupos. Rogers preferiu trabalhar sozinho.
— Acho que, se eu fizesse em grupo, acabaria tudo nas minhas costas, porque a ideia era minha, então, era mais fácil mesmo trabalhar sozinho — justifica o menino.
Viralizou: veja o vídeo que mostra Rogers operando a engenhoca:
Assim foi. Primeiro, Rogers buscou referências na internet – ele é um contumaz pesquisador sobre assuntos tecnológicos. Queria algo envolvendo robótica e hidráulica, temas que ainda não viu diretamente abordados em sala de aula e que permeiam suas buscas digitais. Encontrou uma mão robótica.
Ok, parecia bacana, mas ele queria mesmo um braço inteiro, quem sabe dois. Um esboço foi colocado no papel e debatido com a mãe do menino, a dona de casa Ângela Cristina Consul, 37 anos. Sem entender bem o intento do filho, ela pediu que ele fizesse uma lista dos materiais de que precisaria, com as devidas medidas para que se fizesse um "orçamento". A família de Rogers mora perto da escola e, apesar de dificuldades financeiras por conta do desemprego do pai, prioriza os estudos. Ângela se enche de orgulho ao falar não só do filho – aluno elogiado pelas professoras – mas também das duas filhas, Myllena, 19 anos, e Jullia, 12. A mais velha já conquistou uma bolsa de estudos em uma universidade particular, e a mais nova, também aluna da Ary Soares, destaca-se como estudante do 8º ano e pelo talento artístico.
— A gente ensina a estudar. Eu não consegui levar adiante meus estudos (Ângela chegou a dar início à faculdade de Pedagogia), mas quero que eles consigam, para ter uma vida melhor do que a nossa — diz a mãe.
Rogers teve à mão tudo o que pediu para a armadura – a maior parte do material veio da reciclagem. Reuniu caixas de papelão, comprou a metragem de mangueira de aquário, aquelas azuis e bem finas, pedaços de madeira e 16 seringas grandes. Por duas semanas, o garoto foi construindo sua máquina na sala de casa ou no espaço que fosse mais oportuno. Fez tudo sozinho, exceto as etapas em que foi preciso utilizar a furadeira, tarefa que coube ao pai. Como se tratava de um trabalho escolar, todos os passos foram acompanhados pela professora Renata Modinger Grzeczinski, coordenadora da parte escrita de todos os trabalhos da turma de Rogers que foram inscritos na mostra. A mãe de Rogers se encarregava de enviar à Renata os avanços da montagem da armadura, até para que a professora pudesse se certificar de que havia uma regularidade na atividade a ponto de não comprometer os prazos para a apresentação na mostra pedagógica.
— Sou formada em Biologia e muito do trabalho dele tinha a ver com matemática e física. Ele fez tudo muito calculado, com um conhecimento que nem cabe para a idade dele, mas que ele foi buscar. Isso mostra como a internet é uma aliada quando direcionada para um bom caminho — avalia a educadora.
O princípio da armadura robótica hidráulica está explícito no nome: é a pressão na água das seringas que garante o movimento dos braços da estrutura, que conta com uma "central de controle", em que cada uma das alavancas determina uma ação da armadura, como subir e descer os braços e pincelar objetos. Para movê-lo, o mecanismo precisa ser uma extensão do corpo.
Rogers precisa vestir a armadura para demonstrar as habilidades da peça. O nível adequado de água nas seringas foi testado até que se chegasse ao melhor desempenho motor e, nesse ponto, a persistência e a disciplina do garoto foram predicativos importantes para se chegar aos objetivos.
— Eu chegava em casa depois da aula, descansava um pouco, fazia os temas, se tivesse, e ficava a tarde nesse trabalho. Era uma ideia que eu queria colocar em prática, e agora já tenho até outros projetos, inclusive para a mostra do ano que vem — entusiasma-se o guri.
O entusiasmo de Rogers com o trabalho contaminou a família e a própria escola, que entende a repercussão da armadura robótica hidráulica – um vídeo na internet recebeu centenas de visualizações – como um incentivo aos estudantes para se envolverem em projetos tecnológicos e também uma ferramenta à instituição na busca de recursos. A Ary Soares começou somente neste ano a ofertar aulas de robótica e, por enquanto, as atividades estão restritas ao 8º e 9º anos do Ensino Fundamental. A escola pensa em ampliar essa oferta, mas ainda há obstáculos a serem vencidos antes disso. Um deles, segundo a diretora Carime da Silva Gil, é garantir o bom funcionamento do laboratório de informática. Os computadores estão lá, a instituição tem wi-fi disponível, mas há problemas técnicos que não permitem que os aparelhos tenham internet de qualidade.
— A gente internet na escola, mas, se os professores disponibilizarem para todos, não funciona. Os computadores do laboratório de informática estão sem — conta Carime.
Robótica cresce nas escolas
A Ary Soares é a maior escola de Glorinha, com 513 alunos distribuídos entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Também é a instituição municipal mais nova da cidade, com apenas 10 anos de atividades. A escola está inserida em um cenário em que a aproximação dos conteúdos com a tecnologia vem ganhando importância, ainda que as dificuldades não desapareçam desse cotidiano. As instituições municipais têm autonomia para fazer suas feiras de ciências e mostras pedagógicas. Via de regra, todas envolvem temas livres – na Ary Soares teve de feminismo a um projeto de cisternas para a escola – e a comunidade é convidada a conhecer os trabalhos em uma apresentação aberta. Os prêmios são simbólicos, como medalhas ou mesmo um passeio.
— A gente sempre busca parceiros, para dar um prêmio bom para os alunos e para que seja também educativo, como uma visita a um museu — diz a diretora.
Todo o frenesi que o trabalho de Rogers provocou é reconfortante para quem trabalha e estuda na escola pública, mas também precede uma preocupação. Como a família do garoto não tem condições de bancar uma formação específica em robótica e a própria escola reconhece suas limitações para desenvolvê-la lá adiante, o receio é de que o pequeno inventor não encontre um caminho estimulante, à altura de suas pretensões, como a de se tornar um engenheiro hidráulico.
— Claro que estamos maravilhados com toda essa repercussão, porque é um retorno sobre o nosso trabalho. Mas a gente torce para que ele arrume uma bolsa, tenha um incentivo maior para poder seguir em frente. Que esse talento todo dele não se perca no tempo — almeja Carime.
A rede municipal de ensino de Glorinha, como em outros municípios, apoia-se muito na rede estadual quando se fala em Ensino Fundamental, e algumas iniciativas do Estado estão sendo compartilhadas com os municípios. Desde o ano passado, as Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) contam com Núcleos de Tecnologia, os chamados NTEs. A 28ª CRE, que inclui Glorinha, tem se destacado com o projeto Roboed, em que ajuda a formar professores para o ensino de robótica e impulsiona esses conteúdos dentro das escolas. Segundo a coordenadora do NTE da 28ª CRE, Suziane Toffoli, atualmente há mais de 350 escolas desenvolvendo projetos de robótica na rede pública do Rio Grande do Sul, cada uma seguindo um eixo de trabalho, como iniciação científica, robótica para Séries Iniciais com sucata eletrônica e material reciclável. Ainda neste ano, pelo menos 26 escolas técnicas agrícolas e 12 de Ensino Médio integral devem receber novos kits de robótica.
— A secretaria (estadual da Educação) tem promovido diversas formações para professores na área de robótica desde o ano passado. Podemos dizer que o trabalho nesse campo se espalhou pelas escolas gaúchas — comemora Suziane.