Quando Marcelo Tcheli olhou para o formulário de inscrição do Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Canela, naquele 1996, havia categorias diversas: bonecos de luva, marionete... Como encaixar a sua técnica?, pensou.
– É como o Theatro São Pedro em uma caixinha de fósforo – ele tenta descrevê-la.
Não havia nada parecido no formulário. Tcheli matutou e resolveu desenhar à mão, embaixo de todas as alternativas, um quadradinho com personagens rabiscados. Contrariando a formalidade das regras, foi aprovado. Participaria, pela primeira vez, de um dos maiores festivais de teatro de bonecos da América Latina.
De lá para cá, viriam muitos outros. Dentro e fora do Brasil. Anos depois, já conhecido no meio, Tcheli estava em Nabeul, litoral da Tunísia. A multidão o esperava na plateia. Acostumado a apresentar seu espetáculo para um único espectador por vez, ficou nervoso. Correu até banheiro. Lá, espiou pela janela: havia vários camelos "estacionados" do lado de fora, amarrados a pedaços de bambu, no deserto. Os espectadores foram assisti-lo montados nos animais.
– O camelo é a bicicleta deles – pensou. – Ao sair, não sei como sabem que camelo é de quem!
Foi assim, entre descobertas e ousadias, que ele ganhou o mundo. O primeiro festival fora do Brasil de que participou foi na Hungria. Tcheli enviou um vídeo com seu trabalho gravado em uma fita VHS dentro de um envelope para Sárospatak, perto da fronteira com a Ucrânia. Era como se ele próprio entrasse em suas histórias inventadas: a cidade é repleta de castelos, circos de pulgas e teatro. O detalhe é que ele recria tudo isso dentro de caixinhas de fósforos.
A mágica acontece da seguinte maneira. Quem chama para o espetáculo é um sujeito que parece vindo dos anos 1920 – veste colete cinza, calça social, sapato de bico fino e chapéu. Há também uma placa: "Assista, aqui, a um teatro de bonecos em miniatura". O interessado se aproxima e avista uma minibilheteria. É aí que começa a brincadeira. Um boneco recebe o dinheiro do ingresso. Então, o convidado é levado até a frente de uma caixa de fósforos que está posicionada sobre um tripé, daqueles usados com câmeras fotográficas. Ele se senta à frente dessa caixa e põe fones de ouvido. Cobre o rosto com um pano preto, como os dos lambe-lambes. E entra no mundo de Tcheli, no qual vê bonecos sendo movimentados ao som de uma trilha sonora especialmente composta para aquela ação.
– Os espetáculos não têm fala. Só música. É melhor assim, porque fica uma linguagem universal. Posso me apresentar em qualquer lugar do mundo, e pessoas com deficiência auditiva também assistem – explica.
Hoje, Tcheli usa aparelhos de mp3. Mas, nos festivais mundo afora, é comum vê-lo com um aparelho que roda fitas K7. Quando percebeu que isso dava um ar retrô coerente à proposta como um todo, comprou três aparelhos.
– Quando vou a um festival, está todo mundo com iPhone, e eu com um toca-fitão. Arranquei a tampa para mostrar a fita rodando. É fita novinha, e aparelhinho também – diverte-se.
É igualmente comum ver Tcheli vestido a caráter, com sua mala onde carrega seu Theatro São Pedro particular, no Brique da Redenção, em Porto Alegre. Se o espectador, naqueles dois minutos e pouco que duram as apresentações, transgredir as regras e levantar a cortininha, verá os caminhantes dominicais, as bancas da Rua José Bonifácio, as árvores. Mas, se voltar a imergir na brincadeira, viajará por histórias como a de um menino que entra em cena e joga a pandorga no chão. Um vento sopra. A pipa sobe. E logo encontra um fio de alta tensão. O garoto a puxa, puxa, puxa. Ocorre um curto-circuito. A plateia solitária ri. É uma tragicomédia.
Há também a história do gato vagabundo. Quando as cortinas se abrem, um bichano aparece na cena: uma sala com móveis e um aquário com um peixe. Um minissistema de luz garante, sobre a caixa, o mergulho no dia ou na noite. O gato vê o peixe, e tenta entrar no aquário. Nos ouvidos, o som é de barulho de água. O gato mia, esperneia. No final, descobre-se que não era um peixe. Era uma piranha. Outra tragicomédia.
– A pessoa já começa a rir – antecipa Tcheli, orgulhoso.
São histórias infantis, você deve estar pensando. Nem sempre. Quando Tcheli encerrou o espetáculo e retirou os dedos que seguram os bonecos em miniatura por baixo da caixa, já viu marmanjos com os olhos cheios de lágrimas.
As histórias, a trilha sonora e as gravações são feitas em sua oficina, na casa que ele construiu nos cafundós de Maquiné. Trata-se de uma pequena sala cujas paredes são cobertas com caixa de ovos para o isolamento acústico. A janela fica de frente para os morros da região. O bonequeiro grava com violão, acordeom, percussão e flauta. Quando não sabe tocar algum instrumento, convoca os amigos.
Já são 27 histórias na caixinha de fósforo. O apelido da sala: "Estúdio Toca-fitas Records", diz ele. Toda a casa é como uma Disneylândia de um professor Pardal: sistemas de banho, cozinha e ar-condicionado construídos pelo próprio Tcheli. Mas voltaremos a essa história adiante. Por ora, regressemos à caixa de fósforo.
Tcheli começou a entrar para dentro da caixa de fósforo aos nove anos, quando vivia em Canoas, município da Região Metropolitana no qual nasceu. Fazia miniaturas em lâmpadas, casas, carros, bonecos. A avó, Eva Narciso de Oliveira, que o criou desde os dois anos, o incentivava. As estruturas eram construídas com cascas de árvore.
Um dia, ele assistiu a uma peça de teatro de bonecos. Foi para casa com aquilo na cabeça:
– Era muito lindo. Fiz a primeira miniatura dentro de uma caixinha de fósforo. Fiz o teatrinho, botei cortininha. E apresentei para meus sobrinhos. Vi a reação deles. Depois, apresentei na rua. Vi que deu certo. Funcionou.
Aos 17 anos, estava no Brique da Redenção. Vieram Canela e os festivais internacionais. Tcheli chegou ao Domingão do Faustão, da TV Globo. Mas como apresentar a peça Donzela Tiadora, uma de suas mais prestigiadas pelo público, na caixa de fósforo, a uma plateia de milhões de brasileiros pela televisão?
– Colocaram uma lente muito boa na câmera. A gente fez um ensaio, amarrei bem, firmei o tripé. Foi uma grande adrenalina, porque não podia tremer muito, ali, ao vivo, para uma galera – relembra o artista.
Tcheli estava indo bem. Mas, com exceção daquele dia na televisão, sua plateia era sempre formada por uma pessoa por vez. Mesmo em festivais, quando centenas se aproximam em fila, ele apresenta os dois minutos de espetáculo para apenas um observador. Deu tudo certo na televisão, mas foi uma exceção. Sua arte funciona para a fruição individual do espectador, isolado do mundo pelo pano preto que o envolve à frente da caixa de fósforos:
– Eu queria viver daquela arte, daquele jeito. Pensei: quem pode comprar meu trabalho? Comecei a bater nas portas dos lugares, de produtores, de empresas, ia nas prefeituras, comecei a ir atrás, foi dando certo. Logo, comecei a viajar. Cada final de semana, fazia uma capital do Brasil.
Veja, em vídeo, imagens capturadas da visão do espectador através da caixa de fósforos:
Loucuras e invenções
Foi quando Tcheli começou a desenvolver seu lado empreendedor. Descobriu outras técnicas de manipulações de bonecos.
Há centenas. Saiu da caixa. Desenvolveu bonecos com vara, que remontam ao século 8. São os precursores do teatro de marionetes. Também são manuseados por meio de cordas, mas a vara tem papel importante. É com ela que o bonequeiro movimenta membros, olhos e até faz "abrir a cabeça", literalmente, de algum personagem.
– Eles têm expressões de carranca para espantar espíritos ruins na plateia. Por isso, são feiosos – explica.
Assim nasceu José, boneco que leva uma pancada de um policial, quando sua cabeça se abre, exibindo passarinhos – cena que dá uma ideia do caráter lúdico das histórias. Já Quitéria, outra personagem, usa cabelos reais, de seres humanos. João 500 toca violão. Chiquinho, dotado de um dispositivo de vidro com água e alguns tubos de borracha, chora.
– Ele chora até espirrar água na "plateia". Outro dia, em uma cidade, estavam os prefeitos, e molhei eles todos – lembra o bonequeiro. – Foi aquela gritaria entre os engravatados. Os prefeitos tudo diziam "Ahhh". E o Chiquinho: "Tchuaááá" – dá risada.
A primeira peça que o bonequeiro levou para fora do Brasil chama-se Cruzadas. A história narra, com toques de fantasia, a travessia dos portugueses para o Novo Mundo, nos séculos 15 e 16:
– Eles tinham o imaginário de que, nos oceanos, havia dragões, que muitas caravelas saíam e não voltavam. Achavam que o planeta era plano. A pessoa assiste com um olho só. E tem uma lente de aumento, então fica gigante. A história se desenrola no mar, tem uns dragõezinhos que sobem e cospem fogo.
Certo dia, Tcheli visitou um amigo, em Maquiné.
– Vim à noite, não enxergava nada na estrada. De amanhã, quando acordei, vi toda essa natureza, essa montanha, o cânion (avistado de sua casa). Pensei: "É aqui que quero morar".
Nas noites de verão, ele se deslocava com a mala e os bonecos para o centro de Capão da Canoa. Apresentava-se nas calçadas. Ficava quinta, sexta e sábado no município do Litoral Norte. Cobrava R$ 3 por sessão.
– Estava ali bem arrumadinho, não era um artista chinelão, pedindo esmola. Mudei a visão das pessoas – afirma.
Em vídeo, Tcheli apresenta suas invenções:
Os lojistas chegavam a disputar sua presença:
– "Não monta em outro lugar." "Fica aqui na frente da minha loja", diziam.
Cerca de cem pessoas se juntavam a cada noite, calcula. Foi quando, em uma noite, Tcheli chegou em casa com um saco de dinheiro.
– Era um sacão!
No dia seguinte, outro saco.
Ele foi juntando-os e, com o total arrecadado, comprou o sítio que imaginara em Maquiné, uma área de 10 hectares na Estrada do Rio Pinheiro.
– Paguei por isso aqui fazendo teatrinho de rua – orgulha-se.
Tcheli parecia ter deixado de ser Tcheli e se tornava ele próprio um personagem de ficção. Na área sem nada, começou a catar pedras, azulejos. Um dia, examinou uma casa de João de Barro, decupando cada um dos elementos que o pássaro usava: gramíneas, terra, água, pedra… O bonequeiro virava arquiteto:
– Comecei a estudar livros de arquitetura, de bioconstrução. E fui construindo de forma autodidata.
Fez um fogão à lenha com 13 funções. Além de cozinhar, assa pão e pizza, aquece e seca talheres, alimenta uma serpentina que esquenta a água do chuveiro e ainda faz as vezes de defumador de queijos, entre outros confortos.
Também criou um liquidificador a manivela com restos de bicicleta e cortador de grama. Uma volta na roda, e o eixo central dá 53 giros. Surgem sucos, batidas, sem o uso de energia elétrica. No caminho entre a cozinha e o escritório, o Professor Pardal do Litoral Norte empurra o braço sobre um buraco na parede e apanha um ovo, recém-colocado por uma galinha. No escritório, onde as histórias e os bonecos ganham vida, tem ar-condicionado natural: uma tubulação traz o vento que passa por baixo da casa, na direção do Sul para o Norte. A descarga do banheiro conduz os dejetos para um biodigestor, que produz gás metano. É possível cozinhar com gás natural.
Thiele tem apenas o Ensino Fundamental concluído. O que faz chama-se bioconstrução – mas ele só descobriu o termo e seu significado há pouco tempo.
– Não sou arquiteto nem nada. Vou fazendo isso institivamente. Os projetos, para mim, são como os roteiros das histórias – explica.
Aos 42 anos, diz que sua próxima meta é construir um sistema de hidrogênio, que dispensará gasolina de sua motocicleta. A engenhosidade na parede já dá os primeiros resultados.
Quando Tcheli começou a fazer bonecos na caixa de fósforos, alguns parentes acharam que ele era louco. Quando começou a imitar o João de Barro, alguns amigos tiveram certeza, ele diz, com bom-humor.
– Tcheli, você se acha criativo? – pergunto.
– Depois de ver o liquidificador e o fogão de 13 funções, sim, me acho – responde.
Agora, a família tem orgulho de suas invenções. Em determinado momento, ele viu o avô, Darci, explicando a um visitante como funcionava o sanitário compostável.
– Os gases saem por aqui – dizia.
Tcheli observou de longe.
– Fiquei superfeliz. Mostrou que ele acreditava em mim, em algo inusitado – rememora.
Volta e meia, o bonequeiro-inventor fica sabendo que familiares, passeando pelo Litoral, ouvem de um desconhecido:
– Lá em Maquiné, tem um cara que faz bonecos.
– É meu parente – respondem.
Para a felicidade de Tcheli, o bonequeiro, o sonhador, o professor Pardal ou o louco, isso basta.