*Esta reportagem foi publicada em 25 de janeiro de 2019.
O prefeito de Torres marchava com secretários e vereadores de um lado. Do outro, liderando a comitiva catarinense, vinha o chefe do Executivo de São João do Sul — hoje emancipado, Passo de Torres era distrito desse município na época. O protocolo previa pompa: os dois se encontrariam exatamente no centro da nova ponte para pedestres, dariam um sorriso cheio de dentes para as câmeras dos fotógrafos e descerrariam a fita inaugural da estrutura sobre o Rio Mampituba.
Nunca chegaram nessa parte.
"O padre dá a bênção... E a nova ponte pênsil despenca." Foi esse o título da reportagem na ZH de 24 de dezembro de 1984. Incluindo políticos, curiosos e o próprio vigário, pelo menos 40 pessoas foram lançadas na água quando a peça responsável por esticar um cabo de aço se quebrou e a ponte inclinou-se para um lado. Algumas pessoas tentaram se segurar, ficando penduradas por um momento, mas acabaram submergindo também.
Como não houve mortes e ninguém ficou gravemente ferido, logo foi possível rir do incidente. E foi exatamente o que a imprensa nacional fez. Historiador e gestor de Cultura de Passo de Torres, Jaime Luis Batista ainda lembra das palavras de Cid Moreira no Fantástico. O apresentador fez referência ao emblemático personagem Odorico Paraguaçu, político de O Bem-Amado que, na novela de Dias Gomes, era interpretado por Paulo Gracindo:
— Um fato "sucupirano" (Paraguaçu era o prefeito da fictícia Sucupira) aconteceu na divisa de Rio Grande do Sul e Santa Catarina: quando os prefeitos iam apertar a mão, a ponte caiu.
Então chefe do Executivo municipal de São João do Sul, Renato Porto Santos, hoje com 74 anos, também tem essa repercussão na memória. Ele garante não ficar ofendido — diz que "foi uma piada mesmo". Questionado sobre o que lembra daquela manhã, não perde a graça:
— Lembro do banho que levei.
De acordo com a reportagem de ZH daquele dia, a ação rápida de moradores e outros presentes, em grande parte pescadores, e o fato de a antiga ponte ficar muito próxima à nova ajudaram para que todos fossem salvos. O jornal ressaltou o pânico na hora do acidente e o alívio pós-resgate. O então secretário de Turismo de Torres deu entrevista garantindo que a prefeitura determinaria uma perícia rigorosa para descobrir se havia ocorrido sabotagem. Entre a população, até hoje, circulam dois comentários: teria "alguma energia negativa" naquele aperto de mão dos dois prefeitos ou a ponte caíra "porque havia muito pecado" sobre ela.
O ex-prefeito Santos é menos fantasioso. Não tem dúvida de que a culpa foi o peso, muito acima do permitido (hoje, a capacidade é de 15 pessoas). Se as reportagens mencionam que havia pelo menos quatro dezenas sobre a ponte, testemunhas falam em mais gente: 60, talvez até 70 pessoas.
O ex-prefeito relata que não foi apurada a responsabilidade "porque não houve vítimas". A peça estragada foi substituída e levou poucos meses para a ponte pênsil ser reaberta. Sem cerimônia.
— Foi botado bem quietinho — confessa Santos.
A inauguração da obra era um evento aguardado nos dois municípios porque a ponte antiga, de 1964, era muito mais estreita e baixa (tinha capacidade para três pessoas por vez). Com maré alta, era comum os moradores atravessarem de um Estado a outro com água pelas canelas. Santos foi um dos que creditam à ponte velha, que ficava a metros da nova, a sua salvação. Conta que deu umas braçadas — aprendera a nadar no Rio Sertão — e a alcançou sem maiores dificuldades.
Mais de duas décadas antes da construção da ponte de concreto sobre o Mampituba, não havia muitas alternativas para ir de Passo de Torres a Torres, ou vice versa. Podia-se, também, atravessar de canoa ou balsa. Ou era necessário dar uma volta de carro "de uns 15 quilômetros", lembra o ex-prefeito, passando pela BR-101.
Aquele mandato foi o primeiro e último de Santos — ele diz que nunca gostou de política. Professor de português, aposentado desde 2006, hoje curte o tempo com os filhos e os netos, dividindo-se entre a moradia em São João do Sul e a casa na praia Rosa do Mar. Calcula que já faz cinco ou seis anos que não passa pela ponte pênsil.
Convidamos o ex-prefeito a retornar para tirar a foto que não foi feita em 1984, mas ele recusou:
— São lembranças do passado.
O episódio faz parte do imaginário dos moradores, e o historiador Jaime Luis Batista defende que chega a ser um patrimônio histórico imaterial dos municípios evolvidos.
O acontecimento foi até eternizado em versos, alguns ricos em liberdade poética. Batista reuniu duas trovas (confira abaixo), de um catarinense e de um gaúcho, e convocou integrantes de um grupo de teatro e pesquisa histórica da região para interpretá-las na programação de Natal de Passo de Torres, em 2017, e na Festa de Navegantes, em 2018.
A trova que relata o incidente do ponto de vista torrense é do garçom Janir Silveira da Silva, 67 anos. O homem estava trabalhando no momento da "tragédia" — como ele e outros moradores se referem ao acidente —, mas costurou uma divertida narrativa a partir de relatos de testemunhas.
— Cheguei em casa, peguei um caderno e falei para a mulher: vou entrar para dentro do quarto com essa caneta e tu não me chama para nada.
E parece que veio tudo na cabeça, todas aquelas pessoas torrenses que estavam na inauguração — conta Janir, que se considera um "trovador de pescaria". — Dei umas 200 cópias, foi batido xerox "a reveria".
Um dos personagens citados nos versos é Sérgio Batista da Silva, o Sedinha, 66 anos, hoje conselheiro tutelar de Passo de Torres. Na imaginação do trovador, Sedinha "subiu na ponte com pinta de doutor/ quando foi jogado na água, chegou a perder a cor".
Sedinha foi à inauguração com o irmão e o sobrinho. Aproveitou a folga no hotel em que trabalhava para prestigiar o evento importante, e também estava curioso para ver como era a tal ponte pênsil. Ele garante que foi "o primeiro que caiu na água e o primeiro que saiu também".
— A gente recém tinha subido na ponte, caminhou uns 10 passos e ouviu o estouro. E daí "voemos" por cima — relata o morador, que depois de sair da água não quis mais voltar:
— O pessoal gritava: "Salva Ciclano! Salva Fulano!". E eu: "Não vou salvar ninguém". Nós "tava" de calça comprida, já "tava" apavorado.
O irmão dele, "muito nadador", salvou três pessoas, segundo Sedinha.
— Foi uma história que vai ficar para a história — comenta.
A ponte pênsil recebe gente todos os dias até hoje. Gente que passa apressada porque está atrasada, gente que anda sem pressa fitando a paisagem, gente que pula só pela diversão de vê-la balançar, gente que xinga quem está pulando só pela diversão de vê-la balançar, gente que exibe sua coragem caminhando com as mãos para cima, gente que foi especialmente ali para conhecê-la — a travessia é tratada como "o mais tradicional ponto turístico de Passo de Torres". Tem até quem pare no meio da estrutura e fique um tempão por ali, conversando e tirando selfie.
Era o caso de Daniel Gomes Iglessias, 29 anos, de Igrejinha, que aproveitou a visita junto com a esposa, o enteado e os cunhados a Torres para tirar foto para postar no Facebook.
Assim como a regra de "proibido pular e balançar a ponte", descrita em placa na entrada, a capacidade de 15 pessoas por vez segue não sendo respeitada. Na verdade, quem chega lá nem fica sabendo qual é o limite: no lado de Torres, a placa que indica o número máximo de pessoas teve o número rasurado. Também não se vê fiscalização.
Desde o incidente de 1984, a ponte pênsil foi interditada mais de uma vez e passou por várias obras. A mais recente foi no mês passado, quando a administração de Passo de Torres trocou cabos de sustentação, fez remendos nas tábuas e trocou as telas laterais, segundo informações da Secretaria de Obras.
Há uma instabilidade inerente à estrutura, característica das pontes suspensas como essa. Vanessa Torres, 36 anos, aumentou o ritmo na passada na reta final. Até cogitou fazer o marido buscar o carro do outro lado para apanhá-la na volta, poupando-a de repetir a aventura.
— Fiquei com medo, guria. Balança demais. E não dá para olhar para baixo que desequilibra — diz a moradora de Canoas.
A tática da engenheira civil Mariana Lopes, 24 anos, de Novo Hamburgo, foi exatamente oposta: caminhou devagarzinho, segurando na lateral. Não parecia menos apavorada. Ainda mais quando contei a ela que, na inauguração, a ponte arrebentou.
— Ai, meu Deus — balbuciou.
Vendendo saídas de banho ao lado da ponte há 20 anos, a ambulante Maria Zenaide de Castilhos, a Dona Maria, afirma que já testemunhou de tudo por ali. Já viu gente derrubar a chave do carro no Mampituba; acompanhou muitos chapéus saírem voando da cabeça dos donos e afundarem lentamente no rio; já presenciou o episódio em que um barco mais alto passou, encostou na estrutura da ponte e dela arrancou três pedaços de madeira.
— Uma mulher que estava na ponte teve que ir para o hospital, deu queda de pressão quando atravessava — recorda Dona Maria.
Com prática em cruzar a ponte, ela caminha rapidinho e sem se segurar. Atravessa até com café quente na mão. E, quando tem gente que pula para ver a ponte tremer, repreende:
— Se não parar eu vou pegar pelas perninhas e atirar dentro do rio!
Ela fica indignada. Já cansou, também, de perguntar se o turista ia gostar que ela fosse para a cidade dele "estragar as coisas históricas e bonitas".
Noto que do lado da ponte pênsil há imagens de Nossa Senhora Aparecida, Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes. Pergunto a Dona Maria se ela acredita que a ponte está mais segura agora.
— Com santa, sem santa, o povo é muito capetinha. Acho que tinha mais é que cair mais umas cem pessoas — pragueja, sem deixar de achar graça.
TROVAS DA “TRAGÉDIA”
A seguir, os versos de Genésio Gomes, que relatou o ocorrido do “ponto de vista catarinense”, e, na sequência, a visão do gaúcho Janir Silveira da Silva
Sábado, 22 de dezembro de 84,
foi o dia que Clóvis prefeito bom e sensato
tentou mas não conseguiu
apertar a mão do Renato
Estava sendo inaugurada a ponte pênsil do Passo
as colunas de concreto sustentavam os cabos de aço
seguia a multidão marcha lenta passo a passo.
Umas 50 pessoas estavam lá reunidas
pois confiamos que a ponte foi muito bem construída.
Ali, não foi percebida essa falha material
oculta aos olhos da gente a principal responsável
pelo horroroso acidente com sustos e arranhões
O padre veio benzer
o fotógrafo preparado
o Renato daqui pra lá
o Clóvis do outro lado
até eu que assistia fiquei emocionado.
Quando no meio da ponte
separados pela fita
estavam todos chegando
numa alegria infinita
de a ponte está pronta
a hora estava predita
(...) Aquele estouro esquisito
aquele barulho estranho
a ponte que se despenca
com todo aquele tamanho
antes que as mãos se tocassem
foi todo mundo pro banho.
O acidente sinistro
não passou de um grande susto
pois o destino é irônico
e muitas vezes injusto
material de terceira sempre é maior o custo.
O Sedinha subiu na ponte com pinta de doutor
quando foi jogado na água chegou a perder a cor
eu não caí na água
estou molhado é de suor.
A inauguração da ponte
Ficará em nossa história
Terminou num banho frio
Pra refrescar a memória
E a próxima inauguração
Será um dia de glória.
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A 22 de dezembro um fato foi registrado
inaugurava-se uma ponte que separava os dois Estados
ao invés de cortar a fita o cabo é que foi cortado.
O senhor Jaime do Farol
homem muito delicado
quando caiu naquela água
nadava desesperado
ao invés de nadar para o sul
nadava para o outro lado
querendo bater o recorde
que era do Ricardo Prado.
O senhor prefeito da cidade
homem bom e inteligente
fez de tudo o que podia para salvar
aquela gente que gritava
desesperada naquelas águas correntes.
O vigário da paróquia
ficou muito assustado
vendo o que acontecia
rezava desesperado
os daquela ponte estavam cheios de pecado.
O povo que ali estava
assistia o inaugurado
quando o cabo escapou
viram o que estava errado
procuraram socorrer quase todos os afogados.
Quando o cabo estourou ninguém conseguiu sorrir
só um segurou o cabo porque não pode cair
é um professor falado o nosso amigo Sadi.
O senhor padre Sérgio, o Vigário
homem do Nosso Senhor
quando caiu na água
rodava como motor
Perdeu óculos, relógio e cachimbo
coisas de muito valor.
Me desculpem, meus amigos
por eu ser indelicado procurei fazer o certo
mas sei que saiu errado espero que os senhores
não fiquem incomodados.