Se os anos têm um estado de espírito, qual poderíamos atribuir a 2017? Que tipo de humor pairou no ar, influenciando os acontecimentos e a reação a eles?
Podemos de cara descartar a moderação, a empatia, a tolerância, o ânimo conciliador. Parece seguro afirmar que este foi um ano de pavio curto, de ânimos bélicos, de nós contra eles. Em 2017, tudo virou polêmica. Houve muitos ataques e pouca discussão de ideias. Foi o ano em que grenalizaram o mundo.
O Brasil, a Argentina, a Venezuela, o México, os Estados Unidos, a Espanha, o Reino Unido e tantos outros países viram-se transformados em sociedades rachadas, em nações divididas por metades irreconciliáveis. Petistas e antipetistas aqui, pró-Trump e anti-Trump lá, independentistas catalães e unionistas espanhóis acolá, conservadores e progressistas por todo o lado, esse foi o panorama. O mundo aglutinou-se em polos de cargas opostas, que não se tocam e não se falam, que pregam apenas para os convertidos e que, reforçados pelos likes dentro da própria bolha, apenas se radicalizam mais e mais.
Em especial, confira 24 respostas para 12 perguntas que resumem 2017 e projetam 2018
Por que isso aconteceu? Pablo Ortellado, professor de políticas públicas da Universidade de São Paulo (USP), é o mais conhecido pesquisador desse fenômeno de polarização no país e admite que não sabe responder:
— É um fenômeno internacional, que tem muita gente estudando e tentando entender. Mas as causas não são bem conhecidas. Há muita especulação e pouca resposta convincente. Cada um tem uma explicação nacional, como eu tenho uma explicação para o Brasil, mas obviamente essas explicações locais são só um pedaço da resposta, porque o fenômeno está acontecendo no mundo inteiro.
Apesar dessa ressalva, Ortellado arrisca uma interpretação. A hipótese dele é que a esquerda, que se consolidou ao longo do século 20 promovendo a ampliação de direitos, ingressou em uma fase na qual não consegue encontrar recursos para manter essa expansão, porque já não há como aumentar o tamanho do Estado. Sem poder ampliar direitos, não consegue diferenciar-se da direita. Por isso, para se distinguirem, os dois lados abraçaram as chamadas guerras culturais, que são disputas em torno de valores morais. Surge assim o nosso mundo conflagrado por questões como o espaço da mulher, da comunidade LGBTQI e do negro, o aborto, a legalização da maconha, o tipo de educação que se oferece nas escolas, o papel da religião e a existência ou não de limites para a liberdade de expressão.
O ano de 2017 foi, assim, aquele em que uma comissão do Congresso Nacional aprovou uma projeto para tornar proibido todo e qualquer tipo de aborto, em que denúncias de fraudes nas cotas raciais em universidades como a UFRGS racharam o meio acadêmico, em que o parlamento se debruçou sobre um projeto que poderia limitar a autonomia dos professores dentro da sala de aula (o chamado Escola sem Partido), em que Chico Buarque foi acusado de machista, e Ney Matogrosso, de homofóbico, em que homens e mulheres discutiram o assédio e o abuso nas relações — a partir de iniciativas modestas, como o post de uma ex-companheira sobre o comportamento de um integrante da banda Apanhador Só. Nesse panorama, uma simples exposição de arte — a Queermuseu, no Santander Cultural, acusada por radicais de direita de propagandear a pedofilia — conseguiu se transformar no principal tema nacional, desencadear discursos acalorados e ser cancelada por receio de represálias.
— As guerras culturais não substituem, mas somam-se à distinção original entre esquerda e direita e polarizam a sociedade, porque são temas que falam muito fundo nas pessoas — observa Ortellado.
Poucos, mas ruidosos
Os dados mostram, no entanto, que os polos radicalizados representam uma parcela bastante modesta da sociedade. No caso brasileiro, seriam 12 milhões de pessoas. Por que, então, parece que está todo mundo em pé de guerra? Porque esses 12 milhões, em meio a uma esmagadora massa silenciosa, respondem por praticamente todo o embate político nas redes sociais.
A internet é vista como um grande potencializador da polarização. São vários os mecanismos atuando na web para levar a esse resultado. Para começar, as pessoas tendem a escolher como contatos quem pensa da mesma maneira, formando a chamada bolha: aquele mundinho que dá a impressão de ser o mundo todo. Ali, ideias que na sociedade em geral não são consensuais colecionam curtidas e vão ganhando ar de verdades incontestáveis, porque passam incontestadas. A pessoa que publica um artigo de opinião num jornal, por exemplo, atingirá um público variado e receberá reações positivas e negativas. Na rede social, a tendência é conhecer apenas o aplauso da própria borbulha e mergulhar cada vez mais fundo na radicalização. Os próprios algoritmos das redes ajudam a formar essas bolhas, na medida em que oferecem na linha de tempo de cada um aquilo que, conforme o seu histórico, ele mais gosta.
— No caso do Facebook, isso é bastante cruel. Ele te fecha dentro da tua própria rede. A inteligência artificial vai entendendo o que você gosta e o que você não gosta e vai apresentando só o que você gosta. A diversidade fica de fora. Você tem a impressão de que todo mundo está pensando o que você está pensando, mas esse todo mundo são os seus 10 amigos. O ser humano se faz com o olhar do outro. Ele começa a achar que tem um monte de gente que pensa como ele e reforça esse pensamento, porque não está vendo todas as outras pessoas que pensam de maneira diferente — observa Márcia Siqueira Costa Marques, professora do curso de Mídias Sociais Digitais do Centro Universitário Belas Artes.
Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo, Fábio Malini monitora no dia a dia o comportamento dos internautas e identifica, no mundo todo, com destaque para o continente americano, uma ampliação dos grupos ultraconservadores — associada a fenômenos como as vitórias eleitorais de Donald Trump e do Brexit e ao surgimento da chamada nova direita no Brasil. A esse grupo contrapõe-se o chamado campo progressista.
A informação voltada a um público mais heterogêneo não chega no feed das pessoas. O algoritmo favorece posições marcadas. A informação não checada e a opinião, nas redes, é mais importante do que o fato. Isso vai influenciando todo mundo.
FÁBIO MALINI
Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da UFES
As pesquisas feitas por Malini nas redes sociais confirmam que esses dois grupos não dialogam um com o outro. Além disso, a informação a que têm acesso não chega de jornais ou veículos de comunicação que buscam oferecer uma visão plural, mas de sites que também têm lado. Aqui, mais uma vez, os algoritmos contribuem para impulsionar a polarização. Textos e reportagens equilibrados, que buscam apresentar os fatos em toda a sua complexidade, não bombam. São justamente os posts radicais, que geram reações apaixonadas, os que acabam tendo visibilidade.
— A internet está praticando um modelo de regulação algorítmica da atenção que privilegia os aspectos emocionais e as polarizações. A informação voltada a um público mais heterogêneo não chega no feed das pessoas. A maior parte dos likes e comentários é gerada para veículos que pertencem a um dos lados. O algoritmo favorece posições marcadas. A informação não checada e a opinião, nas redes, é mais importante do que o fato. Isso vai influenciando todo mundo. Mesmo veículos que eram plurais percebem que é mais fácil oferecer fatos para os dois lados. Isso é muito grave. Amplia a temperatura emocional — avalia Malini.
Essa fórmula já bastante inflamável tem recebido grandes quantidades de um elemento explosivo: notícias inventadas, elaboradas de propósito pelos diferentes grupos ideológicos, desenhadas para viralizar. É o já famoso fenômeno das fake news, que exploram a tendência humana a considerar verdade e compartilhar a informação em que já se acredita.
Tudo somado, a polarização é uma bomba que tem tudo para explodir em 2018, concordam os especialistas.
— Normalmente não fazemos previsões, mas nesse caso é fácil. A situação, que é ruim em 2017, no ano que vem vai ficar pior. Vai ter uma exacerbação. Isso é certo como dois e dois são quatro. Os R$ 2 bilhões que a reforma eleitoral jogou na próxima campanha vão ser gastos, em grande parte, para desenhar estratégias e produzir informações para as redes. Os grupos políticos vão jogar toda a força nisso — afirma Ortellado.