Tem lá seu simbolismo o fato de um dos melhores filmes da temporada prestar tributo aos irmãos Lumière, que apresentaram, em 1895, a capacidade que esta arte chamada cinema tem de proporcionar uma experiência coletiva marcando cada espectador de forma singular. Entre os muitos títulos de destaque a estrearem nas salas comerciais em 2017, destacamos aqueles que, mesmo com a concorrência de outras plataformas de entretenimento e com o circuito de exibição moldado para o consumo das superproduções, ajudaram a renovar e a manter firme essa capacidade de encantamento aliada à reflexão sobre os grandes assuntos da contemporaneidade.
O racismo, por exemplo, pautou a badalada festa do Oscar com dois concorrentes – ambos aqui presentes. Crítica social, censura, arte experimental, feminismo, personagens reais que fizeram história como protagonistas ou coadjuvantes. Nossa seleção de 10 longas-metragens ilustra a diversidade temática que o cinema abarca na sua centenária vocação de espelhar o mundo e seguir provocando discussões para transformá-lo em um lugar melhor. A emoção na sala escura segue sendo uma experiência única em sua proposta de comunhão coletiva.
Moonlight – Sob a Luz do Luar
O surpreendente vencedor do Oscar, que destituiu o favorito La La Land, fez por merecer as muitas distinções que recebeu ao longo de 2017. Na periferia de Miami, local onde nasceu e cresceu o diretor Barry Jenkins (hoje com 38 anos), o espectador é convidado a acompanhar três momentos da vida de um jovem negro que sofre bullying na infância, passa por uma crise de identidade na adolescência e é tentado pelo universo das drogas e do crime – até chegar à idade adulta no comovente e impactante ato final. As opressões diversas, incluindo a sexual, dão liga ao roteiro assinado por Jenkins em parceria com Tarell Alvin McCraney neste estudo poético de um dos grandes personagens que o cinema revelou nos últimos tempos.
Afterimage
Um dos grandes realizadores da história do cinema, o polonês Andrzej Wajda morreu em 9 de outubro de 2016, aos 90 anos, poucos dias depois da primeira exibição deste seu derradeiro trabalho. Trata-se de uma despedida à altura do mestre que ergueu sua vigorosa filmografia sobre os pilares do humanismo. Wajda desafiou o cerceamento político e cultural imposto em seu país pelos soviéticos após a II Guerra, assim como o personagem real que homenageia: o pintor Wladyslaw Strzeminski (1893–1952), nome referencial da arte de vanguarda. O filme se passa em 1948, quando Strzeminski (Boguslaw Linda) é perseguido pelo governo, que exige dos artistas engajamento com o realismo socialista. Política interferindo na arte, como se vê, é um embate que volta e meia recrudesce.
A Qualquer Custo
Nem os atores conhecidos (Chris Pine, Ben Foster, Jeff Bridges), nem as quatro indicações ao Oscar (entre elas a de melhor filme) turbinaram a carreira deste excelente faroeste contemporâneo que discute a identidade dos Estados Unidos sob o comando de Donald Trump. Quem não viu o longa – que David MacKenzie dirigiu a partir do roteiro de Taylor Sheridan sobre dois irmãos que decidem cometer furtos rápidos em agências bancárias de cidadezinhas sulistas para liquidar uma dívida da família – não sabe o que perdeu. Destaque para as belas imagens de um Texas ao mesmo tempo moderno e arcaico e para o humor negro, repleto de tiradas satíricas, usado para escancarar preconceitos e abordar outros temas da hora.
Bom Comportamento
Não costuma ser fácil essa transição, mas Robert Pattinson se descolou do vampiro sem sal que o consagrou na saga juvenil Crepúsculo e vem erguendo uma filmografia com projetos não muito badalados comercialmente nos quais entrega robustas atuações. Como nesse filmaço dos irmãos Benny e Josh Safdie, combinação de trama policial com crônica social sobre os tipos marginais que transitam pelo lado B da sociedade americana – a encenação naturalista remete a clássicos da Nova Hollywood setentista. O personagem de Pattinson decide assaltar um banco com o irmão caçula que acaba de tirar da clínica psiquiátrica. Motivado mais por desespero do que por instinto criminoso, o ato tem consequências desastrosas, dando início a uma frenética gincana pelo submundo de Nova York.
Poesia Sem Fim
Nome histórico do cinema de vanguarda das décadas de 1960 e 1970, o franco-chileno Alejandro Jodorowsky começou a contar suas memórias em 2013, com A Dança da Realidade, primeiro de uma série de cinco filmes autobiográficos. O segundo, Poesia Sem Fim, estreou no início de 2017. Trata-se de um exercício memorialístico imaginativo, que narra o amadurecimento do jovem poeta e futuro cineasta de maneira caótica e babélica (a la Amarcord), às vezes literal, noutras delirante, conforme as lembranças se organizam na mente do genial realizador de Fando & Lis (1968) e El Topo (1973).
Aos 89 anos, Jodorowsky promete os novos capítulos de sua pentalogia para os próximos anos. Se forem como Poesia Sem Fim, os filmes serão imperdíveis.
Eu Não Sou Seu Negro
Indicado ao Oscar de melhor documentário, o filme de Raoul Peck mostra que as feridas deixadas pela escravidão e pela segregação racial seguem ardendo e pautando as relações políticas e sociais nos Estados Unidos. Seu ponto de partida é o livro inacabado do escritor James Baldwin sobre três importantes líderes da luta pelos direitos civis dos negros, defensores de pontos de vistas distintos sobre como deveria se dar esse enfrentamento e todos eles assassinados entre 1963 e 1968: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. Com a narração de Samuel L. Jackson costurando impactantes imagens de arquivo, a brutalidade do passado é espelhada com a violência que ainda se vê no presente.
Corra!
O título é o de um longa de ação. O custo do projeto, de um típico filme independente norte-americano. Mas Corra!, primeira incursão na direção do conhecido ator de televisão Jordan Peele, é uma mistura de suspense com ficção científica a la Black Mirror que provocou debates sobre racismo e o lado obscuro da evolução tecnológica desde suas barulhentas primeiras sessões, em janeiro, no Sundance Festival – onde foi adquirido pela Universal Pictures, que o transformou em um fenômeno de popularidade em diversos países ao longo da temporada. O horror vivido por um jovem negro, que se torna vítima de uma família de cientistas brancos em uma casa de campo, rendeu algumas das mais memoráveis sequências do ano no cinema.
Lady Macbeth
O argumento da mulher infeliz no casamento que aplaca a solidão afetiva e a pulsão sexual nos braços de um amante é representado por personagens literárias clássicas, como Madame Bovary e Lady Chatterley. Apresentada no romance Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk, do escritor russo Nikolai Leskov, a protagonista do longa do estreante William Oldroyd reforça a galeria acrescentando doses de perversidade e violência ao enredo – e ressaltando os aspectos trágicos da relação de poder e submissão que a personagem vivencia em uma região rural da Inglaterra do século 19. A atriz
Florence Pugh brilha com uma personagem que se revela fascinante entre a resignação e a crueldade que marcam a tomada das rédeas de uma mulher sobre seu destino.
A Morte de Luís XIV
Ator revelado por François Truffaut em Os Incompreendidos (1959) e um dos rostos marcantes da Nouvelle Vague, Jean-Pierre Léaud apresenta no filme do espanhol Albert Serra uma das mais intensas performances de sua longeva carreira. Impressiona a forma como é encenado o processo de decrepitude, agonia e fim da vida do rei da França Luís XIV. Em agosto de 1715, o Rei Sol, símbolo maior do absolutismo, cumpre seus últimos dias no leito do Palácio de Versalhes, cercado pela corte que acompanha o progressivo avanço da gangrena que lhe apodrece uma perna. Registro belo e mórbido que remete, na cenografia e na paleta de cores, a pinturas como o célebre retrato do monarca, por Hyacinthe Rigaud, em exposição no Museu do Louvre, em Paris.
Lumière! A Aventura Começa
Diretor do Festival de Cannes e do Instituto Lumière, Thierry Frémaux selecionou pouco menos de um décimo dos 1,4 mil filmes de 50 segundos (ou menos) que os irmãos pioneiros do cinema lançaram entre 1895 e 1905. A maneira como ele organiza e apresenta esses curtas, em 90 minutos de narrativa, não deixa dúvidas: boa parte do que seria lapidado depois, por nomes como Griffith, Eisenstein, Welles e Hitchcock, entre outros, já estava lá, nos registros dos inventores da mais jovem entre as linguagens artísticas. Lumière! A Aventura Começa é incomum pela forma que tem, mas que, ao ressaltar a capacidade de sedução do cinema desde a sua origem, provoca impacto semelhante ao que os grandes filmes costumam provocar.